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Entenda: operação da PF reacende suspeitas de inteligência 'paralela' no governo Bolsonaro; OAB e PSOL cobram informações

Investigação sobre uso de sistema de rastreamento de celulares aponta para monitoramento de desafetos do presidente

Brasil de Fato | Brasília |
Sede da Abin, em Brasília
Sede da Abin, em Brasília - Antônio Cruz/Agência Brasil

Nesta sexta-feira (20), a Polícia Federal prendeu dois servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e afastou outros três, incluindo o secretário de Planejamento Paulo Maurício Fortunato Pinto, terceiro na hierarquia do órgão, em uma operação para investigar o uso ilegal de um sistema de rastreamento de celulares durante o governo de Jair Bolsonaro.

Também foram cumpridos 25 mandados de busca e apreensão. A suspeita dos investigadores é de que a Abin tenha utilizado ilegalmente um sistema adquirido pelo governo federal para rastrear as localizações de jornalistas, políticos, advogados e desafetos do governo. 

A operação deflagrada na sexta, chamada de Última Milha, e uma investigação sigilosa da Abin sobre militares do gabinete pessoal de Bolsonaro que levantaram dados pessoais do chefe da Receita, revelada pelo Brasil de Fato nesta quinta-feira (19), reacenderam uma antiga suspeita que pairava sobre o governo Bolsonaro: o uso de estruturas de inteligência para atender aos interesses do presidente e seus familiares.

Em uma reunião ministerial de abril de 2020, divulgada por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), o então presidente Jair Bolsonaro chegou a afirmar que contava com um sistema "particular" de informações. "O meu particular funciona. Os que têm oficialmente, desinformam. E voltando ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho", afirmou na ocasião.  

A investigação sobre o rastreamento de desafetos de Bolsonaro foi aberta em março deste ano por determinação do ministro da Justiça, Flávio Dino, após uma reportagem do jornal O Globo revelar naquele mês que a Abin teria utilizado, sem protocolo oficial, um sistema que permite rastrear os telefones celulares. O inquérito é conduzido pela Polícia Federal e está sobre a relatoria de Alexandre de Moraes, ministro do STF. 

Personagem que estava no cargo mais alto entre os investigados até a operação de ontem, Fortunato Pinto foi diretor de Operações da Agência durante a administração Bolsonaro e permaneceu no órgão mesmo com a mudança de governo. Ele foi nomeado pelo atual diretor da Abin, Luiz Fernando Corrêa, para ocupar o cargo de secretário de Planejamento da agência em abril, antes de o episódio envolvendo o sistema de rastreamento a vir à tona. Em sua residência, em Brasília, a Polícia Federal apreendeu US$ 171,8 mil em espécie.  

Após a operação, o governo federal demitiu na tarde de ontem os servidores presos, os oficiais de inteligência Rodrigo Colli e Eduardo Arthur Izycki. A demissão foi publicada em edição extra do Diário Oficial que apontou que eles perderam o cargo por "participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário, e improbidade administrativa".

Em nota, a Casa Civil da Presidência da República informou que "foi constatada a participação [de Rodrigo e Eduardo], na condição de sócios representantes da empresa ICCIBER/CERBERO, de pregão aberto pelo Comando de Defesa Cibernética do Exército Brasileiro". 

Segundo a Polícia Federal, os dois oficiais chegaram a responder um Processo Administrativo Disciplinar na Agência, mas usaram os conhecimentos que possuíam sobre o uso indevido do sistema para ameaçar os colegas e tentar evitar a demissão. Em nota emitida nesta sexta, a Abin disse estar colaborando plenamente com as investigações e que "a ferramenta deixou de ser utilizada em maio de 2021. A atual gestão e os servidores da Abin reafirmam o compromisso com a legalidade e o Estado Democrático de Direito."

OAB e PSOL acionam autoridades

A repercussão da operação desta sexta levou à uma mobilização do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e de ao menos um partido político, que solicitaram investigação sobre quem teria sido rastreado pela agência no governo Bolsonaro. Por meio de nota, a OAB informou que vai solicitar ao Supremo Tribunal Federal o acesso aos documentos da Operação Última Milha que indiquem a possibilidade de ter havido violação de prerrogativas profissionais de advogados. 

"Caso essa possibilidade, de que advogadas e advogados tenham sido espionados ilegalmente, estaremos diante de uma grave violação do sigilo da advocacia, que é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito", disse o presidente nacional da OAB, Beto Simonetti. 

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Segundo revelou O Globo, a bancada do PSOL na Câmara dos Deputados, por sua vez, solicitou informações ao Ministério da Justiça para saber se houve monitoramentos e elaboração de relatórios de inteligência sobre seus dirigentes partidários e/ou parlamentares da bancada PSOL/REDE na Câmara dos Deputados, em Assembleias Legislativas dos Estados e em Câmaras Municipais. 

O partido também solicita à pasta informações eventual monitoramento ilegal de movimentos sociais, comunidades indígenas e quilombolas, assentamentos rurais, ONGs, sindicalistas, jornalistas, autoridades e líderes de mobilizações. A sigla ainda pergunta se o ex-presidente Jair Bolsonaro, seus filhos ou ex-ministros pressionaram ou orientaram agentes públicos sobre o monitoramento ilegal da Abin. 

Abin e as rachadinhas 

O episódio que voltou à tona nesta sexta-feira não é a única polêmica envolvendo a atuação da Abin durante o governo Bolsonaro. Na quinta-feira (19), o Brasil de Fato revelou que a própria Abin identificou, em uma sindicância interna, que sete servidores públicos, incluindo os dois militares do gabinete pessoal da Presidência da República no governo Bolsonaro, consultaram os dados pessoais do então chefe da Receita Federal. A apuração interna da agência foi aberta para apurar as suspeitas reveladas pela imprensa em 2020 de que a Abin teria sido utilizada para auxiliar a defesa do filho de Bolsonaro e senador, Flávio Bolsonaro (PL-RJ), na investigação sobre o escândalo das rachadinhas. 

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Como mostrou a reportagem do Brasil de Fato, a apuração interna da agência não identificou nenhuma irregularidade dos servidores do órgão, mas apontou para servidores de outros órgãos que acessaram informações sobre o então secretário da Receita, José Barroso Tostes Neto, no Infoseg, a base de dados utilizada por polícias de todo o país para atividades de inteligência. Na sindicância interna, a Abin não checou se algum servidor público teria utilizado indevidamente o First Mile. 

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Em 2020, a Revista Época divulgou que a agência teria sido utilizada para auxiliar a defesa do senador e filho do então presidente, Flávio Bolsonaro (PL-RJ) na investigação envolvendo o suposto esquema de rachadinhas no gabinete de Flávio no período em que ele foi deputado estadual no Rio de Janeiro.  

Na ocasião, vários veículos divulgaram matérias sobre os supostos relatórios que a Abin teria produzido e enviado via Whatsapp para a defesa do senador, com sugestões de ações para encerrar as investigações. As rachadinhas eram o principal escândalo envolvendo a família presidencial no início do governo Bolsonaro, eleito com forte discurso anticorrupção. O então diretor da Abin, Alexandre Ramagem, e o então ministro do GSI, Augusto Heleno, sempre rechaçaram a existência dos relatórios e o uso da agência para atender aos interesses da família de Bolsonaro.  

Na esteira da série de reportagens, a Abin instaurou uma sindicância interna sigilosa para apurar se algum integrante da agência teria atuado para auxiliar a defesa de Flávio e produzir os supostos relatórios. O procedimento ficou guardado a sete chaves até o Brasil de Fato revelar os detalhes da sindicância. 

Sistema israelense 

A Agência Brasileira de Inteligência é responsável por produzir inteligência para subsidiar o presidente da República na tomada de decisões e proteger os interesses nacionais do estado brasileiro.  

O sistema utilizado para o rastreamento de aparelhos chama-se First Mile, desenvolvido pela empresa israelense Cognyte. Ele foi adquirido ainda no governo de Michel Temer, no fim de 2018, por R$ 5,7 milhões, sem licitação. Segundo revelou o jornal O Globo, o sistema permite monitorar 10 mil pessoas a cada 12 meses e, no âmbito da investigação, a PF identificou que foram feitos 30 mil acessos, dos quais 1,8 mil estavam relacionados a políticos, jornalistas, advogados e adversários do governo Bolsonaro. 

Um dos representantes da empresa Cognyte no Brasil e que também está entre os investigados da operação desta sexta-feira é Caio Alberto dos Santos Cruz, filho do general da reserva e ex-ministro de Bolsonaro, Carlos Alberto dos Santos Cruz. De acordo com o Portal da Transparência, a Cognyte Brasil S.A, que oferece outros sistemas e serviços além do First Mile, recebeu mais de R$ 8,2 milhões do governo federal em contratos com a Polícia Rodoviária Federal no Distrito Federal e no Rio de Janeiro, além de um contrato com o Fundo Nacional de Segurança Pública. Os valores recebidos pelo grupo israelense, que mudou de nome nos últimos anos, porém, é bem maior, sobretudo porque o Portal da Transparência não revela os valores em contratos sigilosos. 

Levantamento inédito divulgado pela Agência Pública na sexta-feira aponta que o grupo israelense teria fechado contratos da ordem de R$ 57 milhões com o governo federal desde 2017, além contratos com nove secretarias estaduais. 

Santos Cruz, pai de Caio, se tornou ministro-chefe da Secretaria de Governo no início de 2019, e acabou deixando a gestão seis meses depois, após entrar em colisão com a ala considerada mais radical que ocupava o Palácio do Planalto. Desde então, o general se tornou um dos principais críticos de Bolsonaro e sua gestão. 

Edição: Thalita Pires