Rachadinhas

Ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem vê atividade 'do século passado' em supostos relatórios da agência para Flávio Bolsonaro

Em depoimento para sindicância interna da agência em 2021, Alexandre Ramagem nega participação em eventual documento

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Alexandre Ramagem foi diretor-geral da Abin no governo Bolsonaro, e hoje é deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro - Valter Campanato / Fotos Públicas

O início de um dos textos dos supostos relatórios da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para orientar a defesa de Flávio Bolsonaro na investigação sobre o caso das "rachadinhas", noticiado em dezembro de 2020, utiliza uma linguagem "de atividade antiga de inteligência, do século passado".

A afirmação, revelada agora com exclusividade pelo Brasil de Fato, é do então diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, em depoimento sigiloso prestado em janeiro de 2021 no âmbito de uma comissão de sindicância interna instaurada pela própria agência para apurar se houve envolvimento de algum servidor da Abin na produção dos textos divulgados pela imprensa em 2020.

No depoimento, Ramagem afirma "que há um início alfanumérico ('A1') não correspondente a relatórios de polícia judiciária, mas de atividade antiga de inteligência, do século passado, não utilizada por servidores em atividade na Abin". A afirmação foi feita ao ser questionado se algum servidor em exercício na Abin poderia ter elaborado algum documento para atender uma eventual solicitação de Flávio Bolsonaro ou de suas advogadas.

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A sigla "A1" aparece logo no começo do segundo texto divulgado pela imprensa naquele ano: "A1 - sobre o FB". O texto traz orientações específicas sobre como a defesa de Flávio Bolsonaro, investigado no escândalo das supostas rachadinhas, poderia atuar contra um grupo de fiscais da Receita e chega a sugerir o afastamento dos três. Na época, eles ocupavam os cargos de corregedor nacional da Receita (José Pereira de Barros Neto), chefe de escritório da Corregedoria da Receita Federal da 7ª Região Fiscal (Christiano Botelho) e de chefe do Escritório de Pesquisa e Investigação na 7ª Região Fiscal (Cleber Homem da Silva). 

A denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) contra o filho 01 do ex-presidente sobre o suposto esquema foi rejeitada em maio de 2022 pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). 

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Depoimento mantido sob sigilo

O depoimento, mantido até então sob sigilo, é o primeiro relato de Ramagem a relacionar de alguma forma os relatórios divulgados inicialmente pela Revista Época, em dezembro de 2020, a alguma atividade de inteligência, podendo, portanto, ter sido produzido pela Abin.

No depoimento, Ramagem também chega a mencionar que "há uma demonstração de conhecimento interno da Receita Federal, nos trechos dos supostos relatórios, desvinculado de atribuição de Agência Brasileira de Inteligência". O ex-diretor declarou, ainda, em depoimento, que nos trechos dos supostos relatórios, verificam-se críticas à inteligência do órgão da Receita Federal, inclusive utilizando o termo ‘arapongagem’, "termo esse abominado por quem trabalha em inteligência de Estado", afirmou.

A reportagem teve acesso à integra da sindicância interna que ouviu o diretor-geral da Abin no governo Bolsonaro e hoje deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro e outros membros da agência. Instaurada em 22 de dezembro de 2020, ela foi concluída em 19 de fevereiro de 2021 após não ter detectado nenhuma irregularidade por parte de agentes da Abin ou mesmo indício de que eles produziram os textos divulgados pela imprensa. 

À época da divulgação dos relatórios, a defesa do senador confirmou a autenticidade dos documentos e sua procedência da Abin.

Ramagem nega autoria de possíveis relatórios

O ex-diretor da Abin foi categórico em seu depoimento ao refutar a hipótese de que ele ou algum servidor da ativa da Abin teria produzido eventuais relatórios de inteligência para a defesa de Flávio Bolsonaro ou mesmo que ele tivesse encaminhado qualquer "mensagem, texto ou relatórios" para o senador, como havia sido divulgado pela imprensa na época.

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No depoimento, ele diz "que nunca encaminhou mensagem, texto, ou relatórios ao senador Flávio Bolsonaro para tratar de assunto particular do mesmo, em processo criminal ou não, ou ainda inerente às suas funções no parlamento, muito menos textos ou qualquer tipo de documentos e relatórios relacionados aos fatos narrados". 

Escola de inteligência 

A sindicância interna da Abin também acionou a Escola de Inteligência (Esint), responsável pela formação, capacitação e aperfeiçoamento dos profissionais de inteligência da agência para analisar o teor dos textos dos supostos relatórios que vinham sendo divulgados pela imprensa. Em resposta à sindicância, o diretor substituto da Esint na época afirmou que a linguagem dos supostos relatórios divulgados pela imprensa “não estão de acordo com a linguagem ensinada pela Esint e utilizada em documentos de inteligência”. Diferente de Ramagem, porém, o diretor-substituto não mencionou que a sigla “A1” fazia parte de “atividade antiga de inteligência”.  
 
"O rótulo (A1) faz parte de uma tabela alfanumérica para avaliação de dados que não é utilizada em relatórios da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Para esclarecer, a letra “A” significa que a fonte é absolutamente idônea, e ‘1’ que a veracidade do conteúdo foi confirmada. Nos textos da Abin, a Metodologia de Produção de Conhecimento (MPC) prevê que a credibilidade do dado deve ser expressa por recursos de linguagem e não por códigos", diz a análise encaminhada à sindicância. 

O depoimento de Ramagem foi prestado antes de a Revista Época divulgar a íntegra dos dois textos dos supostos relatórios para a defesa de Flávio Bolsonaro, o que ocorreu em 5 de fevereiro de 2020. Depois da divulgação da íntegra dos textos, a comissão de sindicância pediu uma nova avaliação da Esint sobre os textos, mas não solicitou novos depoimentos de Ramagem nem dos demais ouvidos na sindicância. Em nova manifestação, a Esint manteve o entendimento de que os textos dos supostos relatórios não condiziam com o padrão de ensino da escola para textos de inteligência. 

Questionada por meio da assessoria de imprensa sobre a fala de Ramagem em seu depoimento acerca da sigla "A1" ser utilizada por atividades antigas de inteligência e quando esse tipo de linguagem foi utilizado pela agência, a Abin não respondeu. 

O 'homem do capitão'

No depoimento, Ramagem também foi questionado sobre um agente da PF que foi levado por ele para a Abin em sua gestão, chamado Marcelo Bormevet, cujo nome foi divulgado pela mídia em 2020 como sendo o "homem do capitão", por sua defesa enfática do ex-presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais. Bormevet foi nomeado coordenador da área da Abin responsável por checar os antecedentes dos nomes indicados a cargos no governo federal. Indagado pela comissão de sindicância se ele poderia ter produzido algum documento para atender ao senador Flávio Bolsonaro ou suas advogadas, Ramagem também negou essa possibilidade.  

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"Tenho ciência de que o servidor Marcelo Bormevet não conhece pessoalmente nem tem contato com o senador Flávio Bolsonaro, nem tampouco com as advogadas. Que não há possibilidade do servidor Marcelo Bormevet ter elaborado qualquer documento para o senador Flávio Bolsonaro ou para as advogadas. Que inclusive as suas atribuições são relacionadas à coordenação de pesquisas para nomeações e em apoio à produção de conhecimento para os setores da Abin, quando demandado", afirmou Ramagem em depoimento.

Bormevet também foi ouvido pela sindicância interna. Em seu depoimento, ele considerou as matérias que foram divulgadas na época sobre os supostos relatórios como "falaciosas" e negou ter recebido de Ramagem ou de outra pessoa pedido para elaborar um documento ou fazer alguma diligência por parte da Abin para auxiliar a defesa de Flávio Bolsonaro

"Que nem o diretor-geral da Abin, nem qualquer outra pessoa demandou isso ao depoente e que o depoente tampouco executou qualquer pesquisa nesse sentido, nem elaborou qualquer documento ou relatório para auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro ou de qualquer outro parlamentar ou agente público", afirmou Bormevet.

Sindicância não encontra irregularidades na Abin 

Em meio à onda de notícias apontando a produção de supostos relatórios por parte da Abin para auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro na investigação sobre um suposto esquema de rachadinha no período em que era deputado estadual no Rio de Janeiro, a agência instaurou uma comissão de sindicância interna em 23 de dezembro de 2020. A apuração foi concluída em 19 de fevereiro de 2021 sem identificar a participação de nenhum servidor da agência na produção dos supostos relatórios. No âmbito dessa sindicância, porém, foi realizado um extenso mapeamento nas bases de dados utilizadas pelo governo federal .  

Ao fazer este mapeamento, a agência identificou que, de 11 de julho de 2019, data que Alexandre Ramagem tomou posse como diretor-geral da Agência, até 31 de outubro de 2020 (data em que, segundo as matérias divulgadas, teriam sido enviados os relatórios), dois servidores do órgão acessaram os dados do então secretário da Receita Federal José Barros Tostes Neto na véspera de sua nomeação, como parte dos procedimentos de checagem de antecedentes do governo federal.

Também foi constatado que um terceiro servidor acessou os dados no âmbito da própria auditoria para conferir as informações. Apesar de não ter identificado nenhuma irregularidade no acesso dos servidores da própria agência, porém, a Abin se deparou com os dados de registro de sete outros servidores públicos federais e estaduais que teriam consultado os dados de Tostes Neto nos anos de 2019 e 2020. 

Edição: Rodrigo Chagas