Desde o começo da guerra da Ucrânia, a Polônia sempre foi um dos principais aliados de Kiev contra a Rússia. País-membro da União Europeia e da Otan, a Polônia é uma das nações que mais contribuíram com os esforços de guerra, somando uma ajuda financeira no valor de 4,5 bilhões de dólares desde o início do conflito com a Rússia. Agora, os dois países vivem uma crise política que põe em xeque esse apoio e levanta a questão sobre um possível desgaste do Ocidente em relação à guerra.
O atrito começou quando a Polônia decidiu proibir a importação de grãos ucranianos, em uma tentativa de proteger o setor agrícola nacional. Com a saída da Rússia do acordo de grãos, que permitia a exportação dessas commodities através do Mar Negro durante a guerra, a Europa passou a ser uma rota alternativa de escoamento dos cereais.
Para acatar a preocupação do setor agrícola polonês de ter em seu marcado uma forte entrada de produtos baratos da Ucrânia, a União Europeia havia determinado que o corredor para os grãos ucranianos através da Polônia permaneceria aberto, mas sem vender diretamente para o país.
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No entanto, recentemente essa proteção foi suspensa e a Polônia decidiu embargar unilateralmente a compra dos grãos ucranianos. A reação da Ucrânia foi entrar com ações judiciais na Organização Mundial do Comércio (OMC) pela proibição da importação dos grãos.
“Nossa posição é firme e determinada. Os grãos ucranianos não podem entrar no mercado polonês”, afirmou o ministro da Agricultura da Polônia, Robert Telus.
“Para que as nossas discussões sejam frutíferas e de bom nível, apelo à Ucrânia para que retire a sua queixa [contra a Polônia] na OMC, uma vez que é infundada. O Ministro ucraniano [da Agricultura] respondeu que iria falar com o seu homólogo do Ministério do Comércio da Ucrânia para pensar sobre isso”, acrescentou.
A tensão entre os dois países se agravou quando o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse, durante a Assembleia Geral da ONU, que a decisão de proibir cereais ucranianos representava um "teatro político" que indiretamente favorece a Rússia. A fala repercutiu negativamente na Polônia.
O embaixador ucraniano chegou a ser convocado para prestar esclarecimentos em Varsóvia sobre o discurso de Zelensky. Logo no dia seguinte, o primeiro-ministro polonês, Mateusz Morawiecki, anunciou que a Polônia não pretendia mais fornecer armas para a Ucrânia para se concentrar na reconstrução de seus próprios arsenais.
"Estamos concentrados principalmente na modernização e no armamento rápido do Exército polonês, para que se torne um dos exércitos terrestres mais potentes da Europa em um prazo muito curto", disse ele.
Apesar da animosidade na relação entre os dois países, as partes continuam mantendo negociações e o atrito ainda não representa uma ruptura no apoio financeiro e militar da Polônia à Ucrânia na guerra. Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político Mikhail Sheitelman observa que as declarações inflamadas têm um sentido político mais profundo, mas não significam um afastamento polonês da aliança na guerra com a Rússia.
“Não é que a Polônia não vai fornecer mais armas, mas é que novas armas que a Polônia comprar para si - e ela compra massivamente da Coreia do Sul, tanques e transportadores - esses novos armamentos não serão mais fornecidos à Ucrânia, mas comprados para o seu próprio exército. O que existe hoje de armamento na Polônia, ela vai continuar entregando [para a Ucrânia].
“É claro que foi uma declaração política e pré-eleitoral para o consumo interno da Polônia, mas isso com certeza não significa que a Polônia deixará [de apoiar] a Ucrânia”, acrescenta.
O atrito entre a Polônia e a Ucrânia acontece às vésperas das eleições parlamentares polonesas, em 15 de outubro. A população agrária e rural representa uma importante parcela do eleitorado. Com isso, aumenta a rejeição a produtos ucranianos baratos entre setores nacionalistas, que afirmam que a subsistência do setor agrário polonês pode ser ameaçada.
O partido conservador que está no poder, Lei e Justiça (PiS), busca afirmar o seu papel de protetor do setor agrário polonês. Assim, o PiS, que se manteve no poder durante dois ciclos eleitorais desde 2015, decidiu angariar o apoio dos agricultores no confronto com a esquerda e a oposição liberal.
“Em duas semanas haverá eleições na Polônia, por isso vários partidos poloneses começaram a jogar essa cartada simultaneamente, e na Polônia há uma grande porcentagem de população agrária e rural, que são eleitores importantes. Mas apesar do fato de que agora é um conflito tático, em geral, essa confrontação após a guerra se tornará uma confrontação estratégica de duas potências agrárias”, analista Mikhail Sheitelman.
Já para o cientista político Denis Denisov, qualquer força política que agora defenda os interesses da Ucrânia e não da Polónia está fadada ao fracasso. Em entrevista ao portal Izvestia, o analista aponta que "até que terminem as eleições na Polônia, esta retórica só se tornará mais dura e, claro, terá um impacto extremamente negativo nas relações bilaterais".
No entanto, ele observa que isto não significa que a Polônia deixará de apoiar e ajudar a Ucrânia.
"Há aqui uma configuração ligeiramente diferente e mais global, dentro da qual a Ucrânia atua como um instrumento de influência sobre a Rússia. Aqui, os parceiros ocidentais e estrangeiros simplesmente não permitirão que a Polônia tome medidas drásticas, limitando o armamento da Ucrânia e proibindo o trânsito. Portanto, a retórica ficará mais dura, as relações entre os países irão deteriorar-se, mas fundamentalmente, financeiramente e militarmente, a situação não mudará muito", concluiu Denisov.
Ao mesmo tempo, a retórica hostil entre os dois países foi instrumentalizada por Moscou e vista como um sinal de fragilidade da aliança ocidental a Kiev. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, afirmou em 20 de setembro que “este não é o primeiro nem o último conflito” entre a Ucrânia e a Polônia. De acordo com ele, o “regime ucraniano continuará a demonstrar seu comportamento, o que irá ser cada vez menos do agrado dos europeus”.
Esta lógica é reiterada pelo cientista político e professor da Universidade Pedagógica Estatal de Moscou, Oleg Makarenko, que afirma que a posição polonesa “é um grande golpe para a Ucrânia”. “Esta é a recusa [de fornecer armas] do aliado que eles chamavam de mais próximo, com quem se abraçaram. Direi que este é um grande golpe para o próprio Volodymyr Zelensky. Acho que será difícil para que ele explique isso até mesmo aos seus próprios cidadãos na Ucrânia” , disse Makarenko, citado pela Ria Novosti.
De acordo com Oleg, a retórica dura da Polônia rompe com uma tendência de apoio irrestrito a Kiev o que, segundo o analista, pode abrir um precedente e influenciar outros países a seguir o exemplo da Polônia de rever sua posição.
Na mais recente visita de Zelensky aos EUA, o presidente Joe Biden aprovou um novo pacote de ajuda militar no valor de 325 milhões de dólares à Ucrânia. No entanto, o líder ucraniano teve uma recepção mais discreta em Washington, ilustrando a resistência interna nos EUA ao financiamento da guerra da Ucrânia. Atualmente, deputados republicanos e alguns senadores tentaram bloquear uma solicitação da Casa Branca para mais um pacote de assistência a Kiev, avaliado em 24 bilhões de dólares.
O pano de fundo é a frustrada contra-ofensiva da Ucrânia, que após muito incentivo e expectativa do Ocidente praticamente não surtiu efeito. Kiev retomou o controle de menos de 1% dos seus territórios ocupados pela Rússia e a linha de frente de mais de 1.000 km praticamente não sofreu alterações.
Apesar de não haver sinais claros de reviravolta do suporte do Ocidente à Ucrânia, são inegáveis os sinais de reavaliação da estratégia diante da guerra partir de conjunturas internas de importantes aliados. Como afirma o analista Mikhail Sheitelman, “se no começo da guerra tudo parecia um esforço rápido, em que todos fizeram todo o possível de apoio à Ucrânia sem grandes condições, hoje a história mudou, a guerra já tem mais de um ano e meio, e ainda não é possível enxergar o fim”.
Edição: Patrícia de Matos