28 de setembro é o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto. No Brasil, foi iniciado há poucos dias o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da descriminalização da interrupção voluntária feita até a 12ª semana de gestação, já tendo sido computado, até o momento, o voto favorável da relatora do processo, a ministra Rosa Weber. Especialistas e a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que a criminalização traz diversos impactos negativos na saúde de meninas, mulheres e pessoas que gestam.
Esses impactos, no entanto, não são iguais para todas, atingindo de maneira mais cruel as meninas e mulheres negras. Para falarmos como o racismo e o estigma do aborto impactam o acesso aos serviços de saúde e a qualidade do cuidado recebido, o Brasil de Fato Bahia conversou com Emanuelle Góes, pesquisadora de pós-doutorado do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), na Bahia, e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Góes se dedica na atualidade à pesquisa de temáticas ligadas ao racismo e aborto, além de atuar em estudos sobre desigualdades raciais na maternidade, violência obstétrica, câncer de mama e do colo do útero.
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Confira entrevista a seguir:
Brasil de Fato Bahia – Na sua pesquisa de doutoramento, “Racismo, Aborto e Atenção à Saúde: uma perspectiva interseccional”, você afirma que o racismo reforça as desigualdades sociais e atua de forma conjunta com outras opressões, afetando mulheres negras, pobres e moradoras das periferias urbanas. Como você avalia no Brasil os acessos aos serviços de saúde reprodutiva no comparativo entre mulheres negras e brancas?
Emanuelle Goes – Na minha tese de doutorado, eu fiz esse estudo olhando para o fenômeno das questões da saúde reprodutiva e analisei o aborto. Na verdade, o acesso das mulheres e a atenção ao cuidado dessas mulheres que estavam indo para hospital ou maternidade finalizar o aborto. Mas, antes mesmo disso, em outras situações, em relação à atenção obstétrica, a gente vai encontrar outros estudos, inclusive outras reflexões minhas.
Na minha dissertação de mestrado, por exemplo, analisei o acesso das mulheres, olhando as desigualdades raciais de mulheres negras e brancas, olhando o acesso ao preventivo para rastreamento de câncer de colo de útero, mamografia, exame clínico da mama, que são os procedimentos e exames realizados nesse escopo, no campo das investigações para cânceres femininos. Nesse estudo, eu já encontrava desigualdades nesse acesso, nas três situações, para as mulheres negras em relação às mulheres brancas.
A gente vai encontrar reflexões, artigos e ativismo de movimentos de mulheres negras falando sobre isso. Nas evidências, nos estudos, nas barreiras no acesso aos serviços de saúde reprodutiva, seja no que se refere ao planejamento reprodutivo, métodos contraceptivos até a atenção ao parto, pré-natal e também no processo de finalização do aborto.
Nas mulheres que vão finalizar o aborto, provocado ou espontâneo, a gente vai ter diferenças que vão dificultar muito o acesso dessas mulheres pretas e pardas ao serviço de saúde. Essas dificuldades, inclusive, fazem com que muitas delas adiem a ida ao serviço por já conhecer como funciona o atendimento amparado pelo racismo institucional. Essa demora na decisão de procura do serviço – tanto das mulheres que abortam, quanto das mulheres que vão parir – e de demorar ainda mais por saber previamente como esses atendimentos tratam as mulheres negras, em especial, as mulheres negras que abortam, essas mulheres estão nessa conjunção entre as que sofrem mais por serem negras e também as que sofrem mais na finalização de um aborto, por conta de todo estigma e de toda criminalização.
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É nesse lugar, inclusive, que eu faço a reflexão sobre a interseccionalidade. Na interação entre o racismo e o estigma do aborto, a partir de uma leitura do que é uma sociedade patriarcal. Uma sociedade que quer comandar e controlar os corpos das mulheres. É nesse lugar que eu confirmo mais um elemento de tantos outros relacionados ao fenômeno reprodutivo, da trajetória reprodutiva das mulheres e seus fenômenos. Onde a gente vai encontrar diferenças e desigualdades por conta do racismo.
Voltando um pouquinho e falando ainda sobre o serviço de saúde reprodutiva, acho que é o único serviço mais acessado por mulheres negras, por conta da esterilização, que é uma outra iniciativa oferecida pelos serviços de saúde e que fundamentam o debate sobre eugenia, sobre esterilização forçada. E forçada porque não oferece nenhum outro método. Os estudos vão mostrando essas barreiras de como as mulheres negras têm dificuldades de acessar de forma plena todos os processos relacionados à saúde reprodutiva e de como os serviços não estão preparados para atender as mulheres negras.
Foi instituída no país, em 2009, uma política que visa promover equidade e garantir o acesso da população negra aos serviços de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com essa Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), como foi chamada, fatores como mortalidade materna e infantil, prevalência de doenças crônicas e infecciosas, altos índices de violência e precocidade dos óbitos estão diretamente interligados ao racismo institucional no sistema. Como está essa realidade hoje, quase 15 anos depois da implementação dessa política?
A política foi instituída no país em 2009. Na verdade, ela foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em 2006 e só foi instituída no país em 2009. Foram três anos até sair a portaria do Governo Federal. Esse tempo, já nos mostra esse retardo, essa demora dos processos relacionados à saúde da população negra.
É uma política que vai ter um plano de ação com estratégias muito bem elaboradas e que vai definir o papel do governo federal, estadual e o papel dos municípios para atuar no enfrentamento ao racismo institucional. Reduzir, ou até mesmo eliminar, algumas situações e agravos que têm total possibilidade de ser evitável.
Pensando na morte materna, tem uma afirmação da Organização Mundial de Saúde (OMS), em âmbito internacional, de que 90% das mortes maternas poderiam ser evitadas. A gente não alcançou o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODS), de até 2015, ter a redução da mortalidade materna, em torno de 35 por 100 mil nascidos vivos; e a gente ficou em torno de 59 a 62 para 100 mil nascidos vivos. Se a gente separa mulheres negras de mulheres brancas e se o país fosse só de mulheres brancas, teríamos batido na porta. Foi observado que a taxa nesse período era de 36 para 100 mil para mulheres brancas, e de 67 para 100 mil para mulheres negras.
Muito provavelmente, e a gente pode até afirmar, não alcançamos o ODS por conta do racismo institucional. Quer dizer, o atendimento das mulheres dentro da maternidade, os encaminhamentos, a peregrinação que as mulheres passam e incremento mesmo do aborto inseguro, que são as mulheres negras que morrem mais. Nesse conjunto de mortes maternas, o aborto tá ali dentro e está entre a terceira e quarta causa de morte.
São as mulheres negras que morrem mais em decorrência do aborto inseguro e todas as outras causas. Principalmente a que tem relação com infecção puerperal, hemorragia. Tudo isso tem a ver com serviços, locais que não têm serviço. Em geral, são pessoas negras que moram lá em maior contingente populacional. São mulheres negras. E que locais são esses? São as regiões norte, nordeste, as periferias que não oferecem serviços de média e alta complexidade.
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Não é novidade que as mulheres negras estão mais expostas a práticas inseguras de interrupção da gravidez e ao maior risco de morrer por suas complicações. Dados da Pesquisa Nacional de Aborto (2021) apontam que 43% das entrevistadas precisaram ser hospitalizadas após o procedimento. E por raça/cor, 39% delas eram indígenas, pretas e pardas. Como o racismo afeta essa experiência reprodutiva? Quais os efeitos do racismo na vida de mulheres negras durante a gravidez e na busca por cuidados e acesso aos serviços de saúde no momento do abortamento?
Não é novidade que as mulheres negras sejam as mais expostas a práticas inseguras e ao aborto inseguro. São elas que acabam tomando essa decisão, mesmo correndo todos os riscos de um agravamento e de tornar aquele procedimento grave, de morbidade, de morte materna. As mulheres terminam por realizar mesmo tendo essa consciência. E é por isso que a gente faz o debate sobre o aborto. Porque as mulheres, independente de ser crime ou não, vão continuar realizando o aborto. A diferença é que sendo criminalizado, as mulheres vão realizá-lo de forma insegura e vão pôr em risco as suas vidas. A gente está lutando para que isso não ocorra.
A gente defende a legalização e isso é um ponto de vista muito forte, sobretudo do movimento de mulheres negras. São as mulheres negras que mais morrem por aborto inseguro ao procurar por essas clínicas clandestinas, insalubres. São pessoas sem nenhuma preocupação se aquela mulher vai sair viva ou não no processo. Depois disso, se saírem com algum tipo de gravidade, elas não têm como denunciar, porque fez o procedimento clandestino. Então, nós temos aí esse arranjo que termina criminalizando muito mais e colocando as mulheres em risco de morte ao realizar dessa forma.
O aborto é um fenômeno que está em todas as camadas sociais. Todas as regiões do país. Em todas as idades reprodutivas. É um fenômeno comum para todas as mulheres, com todas as escolaridades e de todas as raças, mas quando a gente pensa na insegurança das mulheres, aí a gente vai ter a marcação do racismo. As mulheres pretas e pardas são as mais atingidas e as que mais estão em risco. Ao realizar aborto e realizar aborto inseguro, a gente vai ter esse contingente concentrado para as mulheres negras (pretas e pardas). E nesse contexto da realização insegura, a gente vai ter um perfil. Você vai ter as mulheres pretas e pardas, as mulheres das regiões norte, nordeste, as mulheres menos escolarizadas, que são essas que estão nesse contexto de insegurança.
Nós que atuamos no campo do movimento de mulheres negras – eu sou pesquisadora, mas também vim desse lugar do Movimento Negro – vamos ver como o racismo atravessa essa gravidez e atravessa essa busca pelo acesso ao serviço de saúde. O racismo atravessa a trajetória reprodutiva das mulheres.
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Seu estudo também enumera alguns dos principais entraves enfrentados por mulheres nos acessos à saúde. Quais as primeiras barreiras enfrentadas, individualmente, pelas mulheres na busca do primeiro atendimento para o cuidado pós-aborto, segundo os critérios de raça/cor?
O estudo vai trazer algumas questões importantes pensando em barreiras, sejam barreiras individuais ou institucionais. Em relação às barreiras individuais, a gente quis saber quais foram as barreiras para procurar o primeiro atendimento: a pessoa procurou por um primeiro atendimento até chegar a procurar esse hospital ou esperou somente para ir para este hospital onde elas foram entrevistadas? Esse primeiro atendimento vai trazer pra gente, inclusive, mostrando essa interação entre o racismo instrucional e o estigma do aborto. A gente vai ter o racismo, inclusive, definindo essa procura pelos serviços.
Quem procurou atendimento particular, vai ter maior percentual de mulheres brancas. E quem procurou outras soluções, você vai ter maior número de mulheres negras. O que significa “outras soluções”? São soluções que têm como opção não procurar pelos serviços, ficar em casa, tomar chá, esperar, pedir ajuda na farmácia ou a alguém. Essas são as outras soluções que as mulheres pretas e pardas, em geral, apresentam em maior percentual na hora do primeiro atendimento.
Quais foram os motivos, quais foram as suas barreiras individuais? Elas vão afirmar que tem a ver com o medo de ser mal tratada, com não ter dinheiro para transporte, não ter com quem deixar o filho ou não poder sair do trabalho para resolver isso. Para as mulheres pretas, a gente vai ter ainda um grande destaque que é o medo de serem mal tratadas, só que o dobro se comparado às mulheres brancas. É nessa resposta que a gente configura o racismo institucional na relação e estigma do aborto. O racismo institucional ele se manifesta antes mesmo da pessoa procurar pelo serviço. Então, as mulheres têm medo e isso faz parte da tomada de decisão delas. E essa tomada de decisão está relacionada com o risco de agravamento daquele quadro.
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Diante das reivindicações pela legalização do aborto e da luta pelo acesso integral à saúde reprodutiva, como essas bandeiras e reivindicações dialogam com o enfrentamento do racismo que estrutura a sociedade brasileira?
Nesse sentido, a gente tem trazido o debate, a estratégia, o pensamento, a agenda e a agência dos Movimentos de Mulheres Negras, com esse aprendizado conceitual dos Estados Unidos, mas que também o Movimento de Mulheres Negras no Brasil trata há muito tempo, que é a questão baseada na justiça reprodutiva. Se a gente pensa na legalização do aborto, trazendo como base essa dimensão da justiça reprodutiva, a gente consegue pensar que não é possível legalizar o aborto sem falar e enfrentar o racismo, nas suas diversas manifestações.
Então, a gente traz esse debate para o centro e, hoje no Brasil, a agenda sobre aborto tem, inclusive, se colocado pra discutir aborto a partir dessa perspectiva da justiça reprodutiva, porque sabe que a tomada de decisão, a interrupção e a trajetória reprodutiva, quando a gente tem um desfecho em relação ao aborto, está empiricamente relacionada com o contexto que aquelas pessoas estão vivendo. A gente tem que pensar como o racismo se relaciona com a sociedade patriarcal e como esse racismo patriarcal, no cenário do aborto inseguro, influencia o cenário da tomada de decisão e interfere sobre a saúde reprodutiva para as mulheres negras.
Nas outras experiências, quando a gente pensa na esterilização, no serviço para uma atenção integral, na morte materna e em outras situações, para além do aborto para as mulheres negras, isso é pensar a justiça produtiva. O direito ao aborto legal deve ser para todas as mulheres e pessoas que gestam. Mas, para isso, a gente precisa fazer a admissão da justiça reprodutiva, que também tem como seu suporte olhar o mundo sob a ótica da interseccionalidade. Se a gente não pensa de forma interseccional, a gente não vai conseguir avançar, mesmo que o aborto seja legalizado. A gente precisa que o aborto seja legalizado na base do enfrentamento do racismo, na base da justiça reprodutiva, na base da dimensão interseccional que captura, enxerga e traz todas as pessoas.
*Esse conteúdo foi produzido com apoio do edital Futuro do Cuidado.
Fonte: BdF Bahia
Edição: Gabriela Amorim