DESUMANO

Africanos que tentam chegar à Europa pela Tunísia são mandados de volta para o deserto

Abandonados na fronteira com Líbia e Argélia, uns morrem de sede, outros bebem a própria urina para sobreviver

Brasil de Fato | Botucatu (SP) |
Imagem de abril de 2023 mostra migrantes interceptados pela Guarda Nacional da Tunísia quanto tentavam fazer a travessia do Mediterrâneo. Atualmente, muitos estão sendo despachados para o deserto - Shutterstock

Enquanto a União Europeia se prepara para enviar dinheiro para a Tunísia, como parte de um acordo de migração de 1 bilhão de euros (R$ 5,34 bilhões), grupos de direitos humanos cobram uma postura mais rígida sobre as alegações de que o governo tunisiano estaria devolvendo pessoas para áreas desertas na fronteira, muitas vezes com resultados fatais.

Segundo um oficial de uma grande organização intergovernamental, mais de 4 mil pessoas foram realocadas em julho para zonas militares nas fronteiras com a Líbia e a Argélia. Migrantes da África subsaariana relatam seu horror ao serem devolvidos à força para regiões remotas do deserto, onde alguns teriam morrido de sede.

"Cerca de 1.200 pessoas foram devolvidas à fronteira líbia apenas na primeira semana de julho", disse a fonte, que falou sob condição de anonimato ao jornal The Guardian. Até o final de agosto, acrescentou, pelo menos sete pessoas morreram de sede depois de serem devolvidas. Uma ONG que trabalha com refugiados estima que esse número seja bem maior, entre 50 e 70.

As cifras contrariam as do ministro do Interior da Tunísia, Kamel Fekih, que no mês passado admitiu que "pequenos grupos de seis a 12 pessoas" estavam sendo devolvidos, mas negou maus tratos ou deportação coletiva.

Essas revelações podem aumentar a pressão sobre os legisladores europeus para que cobrem providências das autoridades tunisianas, no âmbito do acordo destinado a conter a migração irregular. A ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, afirmou na semana passada que os direitos humanos e o estado de Direito não foram "devidamente considerados".

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O que dizem os migrantes

Em uma série de entrevistas realizadas com quase 50 migrantes, a maioria confirmou ter sido devolvida à força para o deserto.

"No início de julho, a polícia tunisiana nos capturou em Sfax (cidade litorânea)", disse Salma, mulher nigeriana de 28 anos. "Meu filho de dois anos e eu fomos pegos por alguns policiais e devolvidos ao deserto na fronteira líbia. Meu marido foi capturado por outros guardas de fronteira e eu não sei o que aconteceu com ele. Não ouço falar dele desde então, porque enquanto nos devolviam, perdi meu celular."

"Eles nos devolveram ao deserto três vezes, pela última vez no final de julho. Os guardas de fronteira tunisianos nos espancaram, roubaram nosso dinheiro e celulares. No deserto, não tínhamos água. Tive que beber minha própria urina para sobreviver", relatou Michael, também nigeriano, de 38 anos.

O The Guardian afirma ter conversado também com Pato Crepin, um camaronês cuja esposa e filha, Fati Dosso e Marie, de seis anos, morreram em meados de julho em uma parte remota do deserto líbio depois de serem devolvidas pelas autoridades tunisianas. "Eu deveria estar no lugar delas", disse Crepin, que desde então foi enviado de volta, novamente, para a Líbia.

Terra de ninguém

Embora a fronteira com a Líbia há muito seja o foco de tal atividade, relatos indicam que a divisa com a Argélia, uma espécie de vasta terra de ninguém menos controlada, também está sendo usada para essa espécie de descarte de seres humanos.

Quinze pessoas entrevistadas pelo jornal britânico disseram ter sido forçadas a voltar para a fronteira argelina.

"Me prenderam em Túnis (capital da Tunísia) e me levaram perto de Kasserine, uma cidade na fronteira com a Argélia", disse Djibril Tabeté, senegalês de 22 anos. "Eles nos deixaram a poucos quilômetros da fronteira. Então, fomos ordenados a subir uma colina. Do outro lado estava a Argélia. O problema é que quando o guarda argelino te encontra, ele te devolve para a Tunísia. Os tunisianos te devolvem, os argelinos fazem o mesmo. As pessoas morrem lá."

Relatos de que a Tunísia estava removendo pessoas para o deserto surgiram em julho, quando fotos que sugeriam que os solicitantes de asilo estavam morrendo de sede e calor extremo começaram a circular nas redes sociais. O governo tunisiano sofreu intensas críticas da imprensa internacional, mas negou qualquer irregularidade.

"No início, a Tunísia descartou relatos de devoluções forçadas", disse Hassan Boubakri, professor de geografia e migração nas universidades de Sousse e Sfax. "Mas pouco a pouco, eles admitiram publicamente que alguns subsaarianos foram bloqueados na fronteira da Tunísia com a Líbia. A pergunta é: quem os colocou lá? As autoridades tunisianas fizeram isso."

Cruzando o Mediterrâneo

De acordo com dados do ministério do interior da Itália, mais de 78.000 pessoas chegaram ao país cruzando o Mediterrâneo a partir do norte da África desde o início do ano, mais do que o dobro durante o mesmo período em 2022. A maioria, 42.719, partiu da Tunísia, indicando que o país superou a Líbia como o principal ponto de partida para os migrantes.

A "parceria estratégica" assinada entre a UE e a Tunísia em julho, após semanas de negociações, previa o envio de dinheiro para o país do norte da África para combater traficantes de seres humanos, fortalecer as fronteiras e apoiar a combalida economia da Tunísia. O primeiro pagamento deverá ser depositado "nos próximos dias", disse Ana Pisonero, porta-voz da Comissão Europeia, na semana passada.

Há dois anos, o presidente da Tunísia, Kais Saied, demitiu o primeiro-ministro Hichem Mechini e fechou o Parlamento, em meio a protestos contra as falhas do governo para controlar a pandemia de Covid-19 e para melhorar a economia do país, mesmo havendo transcorrido uma década desde a revolução contra o então ditador Zine El Abidine Ben Ali.

Mudança climática ajuda a explicar o drama

A África é responsável por menos de 10% das emissões globais de gases de efeito estufa, mas sofre desproporcionalmente com as alterações climáticas. Isso prejudica a segurança alimentar, os ecossistemas e as economias dos países do continente, aumenta o deslocamento de pessoas e agrava a ameaça de conflitos devido à diminuição dos recursos.

::Desigualdade: África sofre impacto desproporcional dos efeitos da emergência climática::

Essa cadeia de consequências está no relatório Estado do Clima na África, da Organização Meteorológica Mundial (OMM), braço da ONU para questões climáticas e relativas à água, divulgado em 4 de setembro, cinco dias antes da tempestade trágica na Líbia. Leia mais clicando aqui.

Edição: Patrícia de Matos