O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a julgar a descriminalização do aborto feito com até 12 semanas de gestação. Se o tema for aprovado, mulheres que fizerem o procedimento não poderão ser presas ou processadas. Isso não significa, no entanto, que o aborto será legalizado, nem que a interrupção da gravidez será oferecida a todas pelo SUS.
Ainda assim, uma vitória no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, impetrada pelo PSOL e pelo Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero (Anis), poderá ser um passo importante para a garantia dos direitos reprodutivos das mulheres, especialmente as mulheres negras, que são as principais vítimas da criminalização.
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De acordo com dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2021, divulgados no fim de março, as meninas e mulheres negras brasileiras têm 46% mais de chances de recorrer ao aborto do que as mulheres brancas. Ao chegar aos 40 anos de idade, 1 em cada 5 mulheres desse grupo já interrompeu a gravidez uma ou duas vezes, enquanto essa proporção entre brancas é de 1 para cada 7 (15,35%).
O aspecto racial e a vulnerabilidade foram considerados pela ministra Rosa Weber, relatora da ação, que votou favoravelmente à pauta nesta sexta-feira (22). Após o voto eletrônico, Roberto Barroso levou a ação para o plenário físico, que permite um debate mais amplo sobre o tema. Atualmente, o aborto só é permitido para gravidez decorrente de estupro, em casos de anencefalia do feto ou quando há risco à vida da mulher.
Coautora do estudo, que também resultou no artigo Aborto e Raça no Brasil, 2016 a 2021, a pesquisadora Emanuelle Góes, associada ao Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fiocruz Bahia, sabe a profundidade do tema. Isso porque o aborto é apenas uma das manifestações do tratamento desigual porque passam, diariamente, milhares de pessoas no país.
"Os dados vão dizer que as meninas negras são as principais vítimas da violência sexual, mas acessam menos o serviço legal. Aí a gente tem a questão do racismo, e é um debate que devemos fazer: não adianta descriminalizar, legalizar, se não discutir o racismo. As meninas e mulheres são sempre negligenciadas no sistema de saúde reprodutiva. Aí se pensar em mortes maternas, tirando o aborto, as outras mortes maternas também são as mulheres negras que mais morrem", alerta.
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O resultado dessa diferença no acesso e no tratamento se manifestam em casos estarrecedores que aliam militância religiosa e insubordinação jurídica de médicos e enfermeiros. Ao invés de prestarem o atendimento adequado para mulheres que buscam atendimento para finalizar o aborto, ou mesmo para vítimas de violência sexual que têm direito ao procedimento legalmente, não é raro que haja recusa, denúncia ao Ministério Público ou a grupos antiaborto ou encaminhamento a outras unidades.
"Vão entrar questões morais, religiosas e discriminatórias que vão impedir o procedimento. O que vemos: mulheres que conseguem realizar o aborto legal de forma tardia, a partir do terceiro trimestre. E não é porque elas não procuraram o serviço, mas porque ficam peregrinando, recebendo negativas por 'objeção de consciência'. Se ela consegue um serviço que diga sim, a gravidez já foi muito à frente, aí elas sofrem outro estigma: 'ah, mas você está com a barriga avançada, não deveria interromper'", relata Emanuelle, se referindo a uma das estratégias para forçar a desistência da interrupção da gravidez.
A pesquisadora comenta que, não à toa, todos os casos mais emblemáticos que vieram a público nos últimos anos dizem respeito à revitimização de corpos negros. Ela se refere, especialmente, ao caso de uma menina de 11 anos de Florianópolis que foi impedida de realizar o aborto legal e ainda foi encaminhada a um abrigo por decisão de uma juíza. E do caso de uma vítima de estupro pelo próprio tio, que acumulou recusas de atendimento na sua cidade capixaba, mesmo com aval da Justiça, e precisou realizar o procedimento em Recife.
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Violência contra população negra ocorre de várias formas
Segundo a PNA, realizada com 2 mil mulheres de 18 a 39 anos em 125 municípios urbanos, quase metade das respondentes – 46% do total – disse ter passado pela experiência dos 15 aos 19 anos, sendo 6% entre os 12 e os 14 anos. Um reflexo também do substrato cultural do povo brasileiro, ainda muito machista, racista e conservador, que tende a "hipersexualizar" o corpo das jovens negras, como destaca Daniele Braz, militante da Articulação de Mulheres Brasileiras e do Fórum de Mulheres de Pernambuco.
"Uma mulher negra ser mãe também é uma decisão muito difícil. Se você decidir ser mãe você pode ter um filho que vai ser morto ao chegar à adolescência pela mão do Estado ou pelo tráfico, pode ter uma filha que vai ser violentada sexualmente, porque o corpo dela é o mais permissivo, e se ela decidir não ser mãe ela tem a barreira de acesso a tudo. Por isso, muitas dessas mulheres recorrem a métodos perigosos para sua saúde, fazendo um aborto sem segurança", afirma.
Para tentar reduzir também possibilidade de as entrevistadas alegarem que os abortos foram espontâneos e não provocados, por medo de se exporem, as mulheres foram convidadas a preencherem formulários e depositarem em urnas fechadas, garantindo o anonimato. Regiões que dispõem de menos serviços especializados para realizar o aborto legal também concentram o maior volume de casos recusados e não atendimentos.
"O país tem menos de cem serviços e estão concentrados nas regiões Sudeste e Sul, então vamos ter esse vazio assistencial nas regiões Norte e Nordeste, mesmo olhando para a capital. Se olharmos para o interior, pro rural, para as áreas remotas, imagina-se o que não se tem", pontua Emanuelle Góes.
Daniele também participou por muitos anos do Grupo Curumim, organização de fins lucrativos que atua em Pernambuco para tentar reduzir as lacunas de acesso à informação sobre direitos sexuais e reprodutivos. Também oferece amparo legal para mulheres em situação de vulnerabilidade que precisem recorrer ao aborto legal, embora a maior preocupação seja em prevenir que esses casos aconteçam.
"Para fazermos essa mudança, é preciso ensinar as meninas a se protegerem do abuso sexual e também utilizarem os métodos contraceptivos. E para isso acontecer precisamos ter educação sexual na escola, trazer mais informações sobre os direitos sexuais e reprodutivos na saúde e educação", defende a ativista.
Segundo ela, a ausência do Estado nessa conscientização se combina com a "naturalização da violência" e das violações contra as mulheres nos últimos 4 anos, que se somam à desconstrução de direitos adquiridos custosamente nos anos anteriores. "A gente ve depois desses retrocessos uma alta dos feminicídios, de abuso sexual infantil, uma crescente de violações contra as mulheres. Essa semana morreram 3 mulheres no nosso estado (Pernambuco) vítimas de feminicídio", argumenta.
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Ativismo antiaborto perdurará mesmo com descriminalização
A expectativa é que estudos e evidências fartas sobre os riscos da criminalização ajudem a subsidiar uma decisão favorável do STF. A decisão deve se arrastar por algum tempo e o resultado ainda é imprevisível, mas a matéria é bastante rejeitada dentro do Congresso Nacional, onde tramitam textos em sentido oposto, como um projeto de lei para a criação do estatuto do nascituro, que pretende impedir que mulheres interrompam a gravidez em qualquer situação, inclusive em casos de violência sexual.
O contexto demanda análise estratégica, já que a perda dos direitos adquiridos até agora também estão em risco. É o que afirma Daniele Braz em referência à preocupação que ronda os defensores da liberdade de escolha das mulheres sobre os seus corpos, incluindo sobre gestar ou não. Afinal, relembra que "as mulheres brancas podem interromper a gravidez em clínicas clandestinas com segurança ou viajarem a outros países onde o aborto é liberado, como é o caso da Colômbia".
Embora parte das organizações feministas acreditem que pode ser positiva a aprovação da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) 989 que tramita no Supremo Tribunal Federal, há quem tema as retaliações do campo conservador fundamentalista. "Se ela for aprovada, a gente terá várias intercorrências pedindo a anulação do processo ou a tentativa de avançar projetos ainda mais radicais no Congresso", prevê Daniele. Ela lembra que "o ex-presidente Bolsonaro caiu, mas o bolsonarismo continua dentro do Congresso Nacional".
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Emanuelle concorda que há um risco de recrudescimento das forças conservadoras, fortemente vinculadas a um viés religioso mais intransigente, que sempre pode fazer o enfrentamento às margens da legalidade. "No sistema de saúde não há lei mesmo quando o aborto é permitido. Um adulto pode ter relações sexuais com uma criança de menos de 14 anos, isso é considerado estupro de vulnerável, então por lei essa criança tem o direito ao aborto legal, mas quando chega no serviço não é feita a investigação de quem essa criança está grávida e nem é encaminhada essa criança para uma clínica de aborto legal. Ela é encaminhada às clínicas de gravidez de alto risco de referência das cidades, que também são muito distantes", reforça.
O estudo também reforça que o aborto é uma etapa natural e que sempre esteve presente na vida das mulheres, inclusive as religiosas. Para enfrentar os tabus ainda existentes, Emanuelle indica que, antes de mais nada, é necessário falar claramente sobre o tema e conferir a naturalidade que ele merece.
"Uma coisa é você precisar realizar, outra coisa é você defender a agenda, falar sobre isso, vocalizar. Por isso falamos que as pessoas precisam sair do armário e entrar na pauta do dia. E essa questão está imbricada com a informação, como é que eu falo isso, sendo que não quero tratar sobre isso alegando que é uma decisão de foro íntimo", afirma Emanuelle, que conclui: "a palavra aborto precisa ganhar a cena porque as mulheres dão a luz e também abortam, sempre foi assim e continuará sendo"
Edição: Thalita Pires