Desde que foi apontado para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em junho, Cristiano Zanin não deixou de estar sob os holofotes e de receber críticas – nem sempre vindas das mesmas pessoas. Após se tornar alvo de opositores do governo pela indicação feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de quem foi advogado, ele agora ouve, também, cobranças vindas de setores progressistas pelas posições majoritariamente conservadoras tomadas em suas primeiras manifestações formais como ministro do Supremo, o que pode ter surpreendido algumas pessoas – algumas.
As críticas ganharam corpo na última quinta-feira (24), quando Zanin se tornou o primeiro entre os ministros do STF a divergir na votação sobre a descriminalização do porte de drogas. Ele se posicionou contra, enquanto Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso já tinham registrado seus votos favoráveis à descriminalização do porte de maconha. Rosa Weber, que votou minutos depois de Zanin, se posicionou junto à maioria dos colegas.
"Não tenho dúvidas que os usuários de drogas são vítimas do tráfico e das organizações criminosas ligadas à exploração ilícita dessas substâncias. Mas se o Estado tem o dever de zelar pela saúde de todos, como previsto na Constituição, a descriminalização, ainda que parcial, poderá contribuir ainda mais para agravar esse problema de saúde", resumiu o ministro "caçula" da Corte ao justificar sua posição – fortemente criticada por pessoas e entidades ligadas à esquerda.
Ao ser sabatinado no Senado antes de assumir o cargo, Zanin disse que tinha sido indicado por Lula por seu trabalho na advocacia, e garantiu não ter "qualquer tipo de subordinação a quem quer que seja". "Na minha visão, e acredito que é a visão do presidente Lula, um ministro do STF só pode estar subordinado à Constituição”, disse durante a sabatina. O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria de imprensa do STF para buscar posicionamento do ministro sobre as críticas recentes, mas não houve retorno até o fechamento desta reportagem. Caso haja manifestação, o texto poderá ser atualizado.
A advogada Luciana Boiteux, professora de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atua no caso da descriminalização na condição de amicus curiae (ou seja, "amiga da corte", representando entidade que oferece subsídios à decisão dos juízes) em relação ao Supremo. Ao Brasil de Fato, ela disse que a postura de Zanin contraria entendimento que sequer pode ser chamado "de esquerda", e sim vai na contramão do que ela considera "uma pauta mínima progressista". Boiteux destacou que juristas como Alexandre de Moraes, que têm posicionamento conservador, se manifestaram no sentido oposto.
"Ele [Zanin] antecipou até a posição dos mais conservadores, e pode estar inclusive fortalecendo uma posição conservadora. Nós não estamos nem falando de legalização, estamos falando da mera descriminalização do usuário, que é um tema absolutamente constitucional. Não há nenhuma possibilidade de você imaginar que a descriminalização do usuário possa ter de alguma forma impacto negativo. Nós temos experiências internacionais citadas em todos os votos: Portugal descriminalizou o usuário desde 2001; Espanha, Alemanha, em vários estados dos Estados Unidos, também. Esses países já estão muito mais avançados que isso. Ele ignorou solenemente", pontuou.
Entre outros argumentos, Zanin apontou na última quinta-feira que "a mera descriminalização para consumo, na minha visão, apresenta problemas jurídicos e ainda pode agravar a situação que enfrentamos nessa problemática do combate às drogas". Boiteux reconhece que o indicado de Lula, que tomou posse no Supremo há menos de um mês, pode estar ainda "amadurecendo" sua posição como ministro. Ainda assim, não poupou críticas ao voto.
"Ele trouxe um voto pobre, muito rápido, mostrou desconhecimento, e por outro lado trouxe quase fake news. Uma argumentação do ponto de vista sociológico, com afirmações sem qualquer base científica de que a descriminalização do usuário aumentaria o tráfico de drogas. Nesse contexto, ele se aproxima muito mais de posições de direita. Apesar do tema das drogas ser uma pauta polêmica, nós tivemos um amadurecimento da opinião pública nos últimos anos", avaliou a especialista.
Também ouvido pelo Brasil de Fato, o jurista Patrick Mariano, doutor em teoria do estado e filosofia do direito pela Universidade de São Paulo (USP), foi outro especialista a fazer críticas incisivas ao voto de Zanin sobre a descriminalização. Para ele, a manifestação do ministro é digna de surpresa, indignação e revolta.
"Surpresa pois há inúmeros argumentos de ordem social, política e histórica, comprovados na prática por pesquisas, de que a política de guerra às drogas – que importamos dos EUA – é um rotundo fracasso e uma tragédia social em todo o mundo. Indignação, pois mesmo não sendo criminalista, [Zanin] teve oportunidade de atuar em caso relevante, a defesa de Lula, e pôde aprender um pouco sobre arbítrio, ilegalidades e punitivismo. Revolta, pois sua nomeação vem num contexto de enfrentamento ao fascismo e ao populismo penal, o que parece que também não serviu de muita coisa. De todos os ângulos, foi uma decisão lamentável", resumiu.
O voto da última quinta-feira não foi o primeiro momento em que Zanin se posicionou de maneira conservadora. Na última semana, ele foi o único ministro do Supremo a votar contra o reconhecimento de ofensas contra pessoas LGBTQIAPN+ como injúria racial. Já nesta sexta-feira (25), foi de Zanin o voto que desempatou a votação no Supremo para autorizar que as guardas municipais sejam reconhecidas como órgão de segurança pública. Para Patrick Mariano, essa decisão vai abrir espaço para que as corporações portem armas mais letais e tenham mais estrutura, criando espaços urbanos ainda mais repressivos, segregadores e policialescos.
"O que mais impressiona é que, em uma semana ou duas de atuação, o ministro escolheu sempre o caminho conservador, e veja que sob esses casos sequer havia um ambiente de pressão como em outros mais rumorosos. Eram casos tranquilos para se posicionar, ainda que para um iniciante na Corte. A pergunta que fica no ar é: se ele optou por decisões conservadoras em tão pouco tempo e em casos simples e de menor pressão como esses, como se comportará nos grandes casos em que a pressão e o lobby das corporações e de grupos de interesse são muito mais fortes?", indagou o especialista.
Quem será a próxima pessoa indicada?
As posições do mais novo ministro do Supremo, porém, não surpreenderam a todos. O advogado criminalista José Carlos Portella Junior, integrante do coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia, lembrou que Zanin, quando advogado, apesar de ter se destacado nacionalmente quando se dedicou à defesa de Lula, teve atuação focada em questões empresariais. Por isso, a postura conservadora era imaginada.
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"Não é uma pessoa oriunda dos movimentos sociais, que entende os dramas da classe trabalhadora, especialmente periférica, negra. É sobre essa população que recai com maior incisividade o poder das agências penais, sobretudo na questão das drogas. Esse fato já era um aviso do que poderia vir nesses temas", disse. "Pela experiência que nós temos de outros ministros oriundos dessa advocacia de colarinho branco, de empresários, geralmente eles vão por um caminho bem conservador".
Para Portella, a postura conservadora de Zanin pode fazer aumentar a pressão para definição do nome que vai substituir ministra Rosa Weber. Uma das duas únicas mulheres na atual composição do Supremo, ao lado de Cármen Lúcia, Weber se aposenta no próximo mês de outubro. Integrantes do próprio governo, como a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, já disseram que Lula vai considerar as questões de gênero na hora de apontar a indicação.
"Do ponto de vista da sociedade civil, já está havendo essa pressão. Já havia pressão por indicar, por exemplo a uma mulher negra, alguém que fosse ligado aos movimentos sociais, que defendesse causas importantes para a classe trabalhadora. Essa pressão já havia mesmo durante o processo em que o presidente Lula acabou escolhendo o Zanin, então agora se intensifica. Esta indicação do Zanin acabou reforçando aquela coisa do 'mais do mesmo'. Mais um homem branco, oriundo das camadas médias, altas que acaba chegando ao STF e reproduzindo discurso da defesa do status quo", avaliou.
Luciana Boiteux concorda, e acredita que Lula vai ser confrontado e cobrado. Para ela, há uma "seletividade" por parte da Justiça, que não leva em conta as minorias. Isso fica muito claro no STF, com sua composição majoritariamente masculina e branca.
"Mais do que nunca se faz necessário analisar o currículo de quem está sendo indicado para que se possa ter alguma possibilidade de atuar em pautas progressistas, na defesa dos direitos humanos e minorias. O que a gente viu nos últimos anos foi algo bem diferente", concluiu.
Edição: Geisa Marques