A Rússia realizou um amplo ataque de mísseis em várias regiões ucranianas no dia 15 de agosto, atingindo as cidades de Lviv, Lutsk e Dnipro. Seria mais uma da série de bombardeios russos que já se tornaram corriqueiros no teatro da guerra que se se arrasta há quase 18 meses, não fosse o alvo tão próximo da fronteira da Polônia. Cidades como Lviv e Lutsk, localizadas a cerca de 100 quilômetros da fronteira, já haviam sido alvo de ataques durante a guerra, mas, distantes da linha de frente, são regiões mais poupadas pelos confrontos.
A data dos bombardeios não foi por acaso. Na mesma terça-feira (15), a Polônia realizou a sua maior parada militar em décadas para comemorar o Dia do Exército Polonês, que celebra a aniversário da vitória polonesa contra a União Soviética na Batalha de Varsóvia em 1920. No dia 15 de agosto daquele ano, soldados e voluntários poloneses pararam o avanço do Exército Vermelho perto de Varsóvia, que foi um ponto de virada na guerra soviético-polonesa.
Durante o desfile militar da última terça-feira, foram exibidas 200 unidades de equipamentos militares poloneses e estrangeiros, 92 aeronaves e 2 mil militares de países da Otan marcharam pela capital do país. A magnitude da parada também não é fortuita. Simboliza a fissura entre o Ocidente e a Rússia no contexto da guerra da Ucrânia.
O evento foi encarado como um recado à Rússia em meio ao acirramento de ânimos com Moscou e uma demonstração de força em meio à tensão na fronteira com Belarus.
Na semana anterior, tanto a Rússia quanto a Polônia anunciaram o aumento da presença militar na fronteira. Por um lado, Varsóvia anunciou o aumento do número de tropas na fronteira com Belarus por conta da presença do grupo Wagner no país após o batalhão de mercenários se deslocar da Rússia após o motim de Yevgueny Prigozhin. Já o ministro da Defesa da Rússia, Serguei Shoigu, declarou em 9 de agosto que o país reforçará os agrupamentos de tropas nas fronteiras ocidentais com a Finlândia e Polônia.
"A disposição do Ocidente de investir uma parcela significativa dos recursos disponíveis na Ucrânia para virar a situação no campo de batalha a seu favor cria sérios riscos de uma nova escalada do conflito. Os riscos existentes estão relacionados à militarização da Polônia, que se tornou o principal instrumento da política antirussa dos Estados Unidos", afirmou o ministro.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista-sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, pontuou que, nesse contexto, os bombardeios russos em Lviv são um claro sinal à Polônia e estão ligados ao fato de que o Ocidente abastece a Ucrânia com armas, fornecimento que acontece principalmente através da Polônia e da Romênia.
Por outro lado, o cientista político observa que o Kremlin, assim como os EUA, sempre manteve uma linha política de fazer tudo para evitar um conflito direto com a Otan. A retórica inflamada, que muitas vezes incluiu ameaças de uso de armas nucleares, seria uma forma de pressionar e dissuadir a Otan para que eles não intervenham diretamente no conflito ucraniano.
Dessa forma, Oleg Ignatov afirma que ambas as partes operam um jogo de provocações, estabelecendo "linhas vermelhas", movimentando "o que pode e o que não pode ser feito" no xadrez geopolítico do Leste Europeu, "mas sempre evitam de fato uma confrontação".
"A Rússia não ganha absolutamente nada com isso (uma confrontação com a Otan), porque todas as suas tropas estão ocupadas na Ucrânia, e ela tem vários problemas com munições, então está claro que a Rússia não tem nenhuma condição de arrastar um conflito convencional com a Otan. Não há nenhum sentido nisso, mas eu concordo que ambas as partes estão constantemente testando os nervos mutuamente", argumenta.
Toda essa movimentação também acontece no contexto de duras acusações do Kremlin contra a Polônia, afirmando que o país do Leste Europeu planeja criar uma aliança com Kiev, alegando motivos de segurança, para, na realidade, realizar uma ocupação militar na região ocidental da Ucrânia.
Sem especificar detalhes e evidências que sustentem essas acusações, o presidente russo, Vladimir Putin, declarou em meados de julho que a Polônia planeja ocupar o território da Ucrânia e que também estaria almejando terras de Belarus, país aliado de Moscou.
De acordo com Putin, as pretensões do Ocidente no oeste ucraniano fazem parte de um plano para criar uma "conexão polaco-lituana-ucraniana". Putin alertou que, no caso de uma agressão contra Belarus na região, a Rússia responderá com "todos os meios disponíveis".
Tensão com Polônia sinaliza pretensões da Rússia na Ucrânia
A retórica do presidente russo em relação a supostas pretensões polonesas na Ucrânia e contra Belarus faz referência ao histórico da cidade de Lviv, que era território da Polônia antes da Segunda Guerra Mundial e foi doada à União Soviética pelos aliados após a vitória sobre a Alemanha Nazista.
Dessa forma, as declarações de Putin insinuam que o Ocidente poderia reivindicar a influência sobre o território ocidental da Ucrânia. Diga-se de passagem, da mesma maneira como a Rússia reivindica a sua presença no leste ucraniano.
Para o analista Oleg Ignatov, as insinuações do presidente russo soam como forma de fundamentar as pretensões russas na Ucrânia, argumentando que se "a Polônia pode ocupar, então nós também podemos tomar territórios". "Isso é uma forma de reafirmar que 'a Ucrânia não é um Estado independente e todos querem dividi-la', apesar disso não ser verdade", destaca.
Por outro lado, o cientista político também diz que essas provocações revelam justamente que as pretensões ligadas a territórios ucranianos não levam em conta a parte ocidental do país.
"Me parece que para a Rússia não é um problema que a Ucrânia seja dividida pela Polônia, Ocidente e Rússia. A Rússia meio que demonstra que não lhe interessa tanto o leste da Ucrânia […] sua esfera de interesse é o centro, Kiev", afirma.
De acordo com ele, a Rússia está pronta em concordar que alguma parte da Ucrânia esteja sob controle ocidental como resultado dessa guerra.
"Eu entendo que isso soa como uma loucura completa, mas realmente é uma guerra pela Ucrânia, a Rússia não abriu mão do seu objetivo de controlar a Ucrânia. Mas quando eles afirmam que a Polônia quer tomar o lado ocidental da Ucrânia, eles estão concordando com o fato de que eles vão controlar não toda a Ucrânia, mas grande parte dela. E a parte ocidental da Ucrânia, onde não há pessoas que nem potencialmente seriam leais à Rússia, eles estariam prontos para abrir mão dessa região à Otan, Polônia. Mas não de Kiev, Odessa", explica.
Para o cientista político, a Rússia quer no mínimo que haja um governo na Ucrânia que seja leal a Moscou, exercendo um controle político no centro de poder do país.
Nesse contexto, uma declaração do chefe de gabinete do secretário-geral da Otan, Stian Jensen, chamou a atenção nesta semana. Ele sugeriu uma forma hipotética para a resolução da guerra, declarando que a Ucrânia poderia conseguir o esperado convite para ingressar na Otan como moeda de troca se ceder territórios à Rússia. "Acho que a solução pode ser a Ucrânia desistir de territórios e obter a adesão à Otan em troca", disse.
A fala gerou uma grande controvérsia entre a organização e a Ucrânia, que rechaçou a proposta prontamente, classificando-a como "inaceitável". Posteriormente, o secretário-geral da aliança, Jens Stoltenberg, veio a público colocar panos quentes na polêmica e negou que haja planos de negociar territórios ucranianos em troca de ingresso na Otan. A controvérsia, no entanto, deixou a suspeita de que o Ocidente esteja sentido um desgaste com a guerra e possa fazer concessões a Moscou.
O cientista político Oleg Ignatov faz uma ressalva que a sugerida barganha para resolver a guerra tampouco teria um preço aceitável para a Rússia, pois a entrada da Ucrânia na Otan representaria "renunciar aos objetivos pelos quais ela iniciou essa guerra".
"Para a Rússia, isso significa abrir mão da Ucrânia. Ou seja, se a Rússia concorda em tomar aquilo que ela controla hoje e a Ucrânia entra na Otan, isso quer dizer que a Rússia estaria abrindo mão da Ucrânia em geral, mas isso não se encaixa de forma alguma na política da Rússia hoje, eu não vejo nenhuma condição para que Putin adote esse passo. Se ele for nessa direção, será uma revisão radical da sua estratégia em relação à Ucrânia", completa.
Edição: Thalita Pires