Em uma decisão inédita, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), criou uma mesa de trabalho para acompanhar a implementação de medidas que protejam a vida de defensores de direitos humanos no Vale do Javari (AM), onde foram assassinados há um ano o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira.
O acordo com o governo brasileiro serve para garantir a segurança de 11 indígenas e indigenistas ligados à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que enfrentam ameaças de morte por se opor à atuação de criminosos ambientais e narcotraficantes. Embora os supostos mandantes e executores das mortes de Bruno e Dom já tenham se tornado réus, a região localizada na fronteira entre Peru e Colômbia segue marcada pela atuação de quadrilhas violentas.
:: Vale do Javari agoniza com os mesmos conflitos que vitimaram Bruno e Dom há um ano ::
Pela primeira vez uma iniciativa da CIDH prevê a atuação conjunta com um país guiada pela proposta de formulação de políticas públicas com impactos estruturais. A mesa de trabalho deverá elaborar um plano de ação dentro de dois meses, com duração prevista de dois anos. A iniciativa se dará por meio do chamado Grupo de Articulação e Coordenação Nacional, além de ações de monitoramento por parte do órgão ligado à OEA.
“Esperamos efetividade”, diz líder indígena
Eliesio Marubo, procurador jurídico da Univaja e alvo frequente de ameaças, é um dos contemplados pela iniciativa conjunta. Ele lembra que a mesa de trabalho será implementada para garantir o cumprimento de uma decisão cautelar emitida pela OEA em outubro do ano passado. Desde então, lideranças do Vale do Javari afirmam que as medidas de segurança não foram acatadas integralmente pelo Brasil e reclamam da vulnerabilidade às quadrilhas armadas que exploram o território indígena.
“Nós esperamos que a decisão cautelar [da OEA] tenha efetividade a partir dessa mesa de trabalho que foi instalada. Nós pedimos para que a CIDH intermediasse porque queremos trabalhar num ambiente em que o governo possa trazer informações claras e verídicas daquilo que ele está planejando para o Vale do Javari”, afirmou Eliesio Marubo ao Brasil de Fato.
Eliesio Marubo: exposto à ameaças de morte por atuação na Univaja / Pedro França/Agência Senado
Negociações entre Brasil e OEA foram “difíceis”
A disposição do Brasil em cooperar com a OEA no caso do Vale do Javari ocorre após uma guinada política decorrida das últimas eleições presidenciais. Sob Jair Bolsonaro (PL), o governo brasileiro chegou a atacar a credibilidade de Bruno e Dom após as mortes. Com Lula, o Brasil reforçou a segurança na região e criou um grupo de trabalho interministerial para combater a criminalidade.
Raísa Cetra, coordenadora do programa de Proteção e Participação Democrática da Artigo 19, uma das organizações de direitos humanos que atuou junto à OEA em favor das medidas de segurança no Vale do Javari, afirma que a decisão da CIDH é emblemática, por ter o potencial de aperfeiçoar as diretrizes brasileiras de proteção a direitos humanos.
“Não é somente a segurança dos onze beneficiários pela medida da CIDH que está em questão, mas também como fortalecermos o programa de proteção a defensores do Amazonas e o nacional. E também como a gente pode garantir que fatos como esses não ocorram”.
A integrante da Artigo 19 destaca que esta é uma das raras vezes em que a OEA encontrou abertura para incidir na atuação interna de um país. Segundo ela, o nível de cooperação internacional neste caso só é comparável aos desdobramentos do desaparecimento forçado de 43 estudantes em Ayotzinapa, no México, em 2014. "A forma de cooperação internacional era diferente, mas o efeito estrutural é comparável", diz Cetra.
Por isso, segundo ela, as negociações para a criação da mesa de trabalho conjunta foram difíceis. “É uma ação complexa por parte de um Estado aceitar que um órgão internacional esteja te monitorando”, avaliou.
:: Ex-presidente da Funai é indiciado por assassinatos de Bruno Pereira e Dom Philips ::
Mortes escancararam fragilidade da proteção a defensores da Amazônia
Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados a tiros em junho de 2022 no rio Itacoaí, que liga a Terra Indígena Vale do Javari à cidade de Atalaia do Norte (AM). Indigenista licenciado da Funai, Pereira liderava o monitoramento ambiental a serviço da Univaja. Phillips, que acompanhava o indigenista, escrevia um livro-reportagem intitulado “Como salvar a Amazônia”.
As investigações da Polícia Federal (PF) confirmaram as suspeitas dos indígenas da região de que o mandante das mortes era Rubén Dario da Silva Villar, conhecido como Colômbia, um suposto operador da pesca ilegal de pirarucu e suspeito de narcotráfico. O peixe de alto valor comercial é retirado de forma clandestina da Terra Indígena, área protegida por lei onde a pesca comercial é proibida. Rubén Dario está preso.
:: Mesmo preso, suposto mandante das mortes de Bruno e Dom mantém negócios ilegais no Javari ::
O duplo homicídio deu notoriedade à atuação articulada entre crime ambiental e tráfico de drogas nas divisas do Amazonas com Peru e Colômbia, ao mesmo tempo em que expuseram a fragilidade dos mecanismos de proteção a pessoas que lutam por direitos humanos na Amazônia.
O Brasil de Fato revelou, em setembro do ano passado, que Rubén Dario, o Colômbia, mantinha negócios ilegais no Vale do Javari. A reportagem foi até o rio Javari, na fronteira com a Colômbia, e encontrou em funcionamento uma das embarcações pertencentes a ele onde supostamente ocorria a compra e venda de peixes extraídos ilegalmente da Terra Indígena.
Indígenas da região disseram que um dos filhos de Colômbia continuava ameaçando os opositores da atividade ilegal. “Meu pai está preso, mas eu não”, relatou ter ouvido um indígena que trabalhava ao lado de Bruno.
A defesa de Colômbia nega que ele tenha envolvimento com pesca ilegal, narcotráfico ou com os assassinatos de Bruno e Dom.
Edição: Rodrigo Chagas