Após o golpe de Estado no Níger, o país africano virou palco de disputa geopolítica entre a Rússia e o Ocidente.
Durante a rebelião que destituiu o presidente Mohamed Bazoum, em 26 de julho, as ruas da capital, Niamei, foram tomadas por protestos de apoio ao golpe, nos quais foi notória a presença de bandeiras russas e de palavras de apoio a Moscou e ao presidente russo, Vladimir Putin. A crise também é marcada por um rechaço à França, que colonizou o país africano, e por uma narrativa anti-Ocidente em geral.
Paralelamente, o Grupo Wagner voltou aos centro das atenções manifestando apoio ao golpe e se articulando com lideranças golpistas da região. O chefe do exército privado russo classificou a tomada de poder como uma “boa notícia” e ofereceu os serviços do grupo ao novo governo do Níger.
Tudo começou quando os militares do Níger fizeram um pronunciamento na televisão nacional na quarta-feira (26) e anunciaram que o presidente Bazum havia sido destituído, transferindo o poder para o Conselho Nacional para a Salvação da Pátria. Foi decretado o fechamento das fronteiras, a suspensão da constituição e a proibição de atividades de quaisquer partidos políticos. Desde então, o presidente deposto continua detido pelos militares e as ruas da capital são palco constante de protestos de apoio ao golpe.
O cientista político Vladimir Jarhall, em entrevista ao Brasil de Fato, aponta que o golpe é um reflexo da disputa entre clãs que disputam o poder no país. “O atual líder dos golpistas, general Abdourahamane Tchiani, representante das antigas autoridades, que manteve seu cargo, lançou um golpe por causa da ameaça de perder a influência militar, base de seu poder. O presidente Bazuma, formalmente derrubado, nessa época havia colocado com sucesso pessoas do seu núcleo em posições-chave do governo”, afirma.
Mas o que inicialmente parecia uma crise interna do país africano, agora gera um alerta para a possibilidade de interferências externas, tanto de países da região, quanto do Ocidente e da Rússia.
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Tensão regional
Regionalmente, a situação se agrava com a formação de coalizões de países a favor e contra a rebelião no Níger. Por um lado, a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao), impôs sanções ao país suspendendo "todas as transações comerciais e financeiras" entre os seus 15 Estados-membros e o Níger.
Os líderes da Cedeao também deram um ultimato aos militares do Níger, exigindo a "libertação imediata" do presidente deposto Mohamed Bazoum. De acordo com a organização, se a ordem constitucional não foi restabelecida no país "dentro de uma semana", a aliança "tomará todas as medidas necessárias". "Essas medidas podem incluir o uso da força", diz o comunicado.
Além disso, na última sexta-feira (4), o presidente da Nigéria, Bola Tinubu, enviou ao Senado do país um pedido para autorizar a intervenção no território do Níger para derrubar o governo instaurado com o golpe.
Por outro, países como Mali e Burkina Faso, onde também houve recentes levantes militares com expulsão de tropas francesas, condenaram as sanções.
Os líderes dos autointitulados governos de transição de Burkina Faso e Mali estiveram na recente cúpula Rússia-África, em São Petersburgo, que foi realizada enquanto o golpe do Níger se desdobrava. Durante a cúpula, os líderes ressaltaram a aliança e a parceria com Moscou. O "presidente da transição" de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, descreveu a Rússia como uma "família" em virtude do que ele classificou como "história compartilhada na luta contra o nazismo" e diante dos resquícios de colonialismo que ainda restam no continente".
Já o Coronel Abdoulaye Maiga, porta-voz do governo do Mali, afirmou que qualquer intervenção militar contra o Níger “seria equivalente a uma declaração de guerra contra Burkina Faso e Mali”.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador Pavel Usov, chefe do Centro de Análise e Previsão Política da Bielorrússia, explica que a polaridade em relação à influência russa e ocidental na África é um reflexo do histórico da Guerra Fria e é instrumentalizada com êxito pela Rússia hoje.
O cientista político aponta que, desde os tempos das lutas pela independência, nos anos 50 e 60 do século passado, muitos países africanos foram orientados pela União Soviética.
“A União Soviética forneceu um potente apoio a diversas estruturas, partidos, organizações de países como Angola, Moçambique, Lívia, Egito. Durante a Guerra Fria, a África tornou-se um front de luta ideológica, política e geopolítica. Esses sentimentos pró-soviéticos, que hoje estão concentrados na Rússia, permaneceram fortes. Ao mesmo tempo, considerando as relações extremamente negativas em relação ao Ocidente, a partir dos traumas históricos do período colonial e do pós-colonial, a Rússia joga com isso muito ativamente, usando o sentimento de massas”, explica.
Guerra da Ucrânia é pano de fundo dos interesses russos na África
Oficialmente, a Rússia condenou o golpe no Níger, apelando para a necessidade de restabelecer a ordem constitucional no país africano. Na última sexta-feira (4), o porta-voz da Rússia, Dmitry Peskov, manifestou preocupação com a possibilidade de uma intervenção de outros países no Níger. Segundo ele, “é improvável que a intervenção de países não regionais melhore a situação no Níger”.
O cientista político Pavel Usov destaca que, do ponto de vista da Rússia, os interesses na crescente narrativa anti-ocidental na África não estão dissociados dos objetivos do Kremlin na guerra da Ucrânia. Se internamente a Rússia justifica a guerra na Ucrânia denunciando um suposto “neonazismo do regime de Kiev” e uma ameaça da Otan à sua segurança, externamente “a guerra é vendida como uma guerra contra o Ocidente, o colonialismo e o imperialismo”.
“É usada uma retórica que a União Soviética utilizou durante todos aqueles anos, ou seja, a libertação da opressão e exploração colonial. Não importa o que está por trás disso, o importante é o lema. E esses lemas se encaixam muito bem na visão de mundo bipolar, da percepção da realidade e entendimento do Ocidente na África”, analisa Usov.
De acordo com o pesquisador, “a Rússia realiza de maneira bem-sucedida uma operação de guerra híbrida na África, e Níger tornou-se o próximo ponto de toda uma corrente de golpes anti-Ocidente”. Ou seja, na visão do analista, Moscou aplica seus interesses em outros países através de meios não militares e não oficiais, provocando desestabilização através de uma guerra informacional.
Dessa forma, Pavel Usov destaca que a questão-chave para a Rússia é a criação de uma extensa zona de turbulência que seja “problemática para o Ocidente”. Assim, “a demonstração de força da Rússia tem como objetivo fazer os países do Ocidente se concentrarem e redirecionarem seus recursos, inclusive o potencial militar, para a África”, argumenta.
“Dentre tudo o que estamos avaliando, o principal objetivo da Rússia é congelar a guerra na Ucrânia, na forma que ela se encontra hoje. E a transferência do caos para a África representa a criação de tal complexo de pressão e desafios para a Europa, através do qual o Ocidente poderia aceitar adotar certas negociações e concessões para Putin”, completa.
Wagner volta aos holofotes
Assim que eclodiu o golpe e a comunidade internacional condenava a deposição do presidente do Níger, um fato que imediatamente chamou a atenção foi a manifestação do chefe do grupo militar privado russo “Wagner”, Yevgueny Prigozhin, de apoio ao golpe. Através do telegram, Prigozhin fez coro ao discurso de que os acontecimentos no país africanos são consequência do colonialismo ocidental e classificou o golpe como uma “boa notícia”.
Em meios a esses acontecimentos, foram divulgadas fotos de Prigozhin com líderes africanos durante a cúpula Rússia-África, sendo a sua primeira aparição oficial em território russo desde o motim do Wagner no final de junho.
O Wagner atualmente possui mais de mil combatentes atuando no vizinho Mali, a convite das forças insurgentes do país. O cientista político Vladimir Jarhall lembra que a presenças das tropas mercenárias do Wagner ajudaras a sustentar o atual “governo de transição” do Mali. Prigozhin sugeriu fornecer suas tropas instaladas no Mali para ajudar a restaurar a ordem no Níger. Para Jarhall, a instabilidade no Níger pode indicar uma transferências de suas atividades após a rebelião que estremeceu sua relação com o Kremlin.
“Após o motim de 24 de junho, o Grupo Wagner claramente perdeu sua importância anterior, suas capacidades diminuíram devido à redução de financiamento e equipamento militar. É verdade que a atividade do chefe do grupo, Prigozhin, é perceptível nos contatos com os chefes dos países africanos onde o grupo atuava. Pode-se supor que ele esteja considerando a opção de se basear nesses países e criar um negócio para sustentar suas atividades. Mas isso só é possível em caso de aprovação ou posição neutra por parte da liderança militar da Rússia”, analisa.
Já para o cientista político Pavel Usov, são justamente esses movimentos que mostram que o entrelaçamento entre o Wagner e o governo russo continua, e que o grupo militar privado continuará representando os interesses russos fora do país, não necessariamente de forma legítima. De acordo com o pesquisador, o Wagner permanece como um dos principais instrumentos da política externa da Rússia, pois o grupo tem um potencial enorme, são combatentes que têm experiência em países da África.
Pavel Usov destaca ainda que o principal objetivo do Wagner não é “estabelecer qualquer regime pró-russo, mas justamente provocar confrontações, eles até podem apoiar regimes ou grupos não próximos à Rússia, tudo para criar condições de instabilidade”.
“Eles apoiam militares, treinam militares e têm acesso a militares, não só no Níger, mas em outros Estados. E independente do afastamento entre Putin e Prigozhin, o grupo Wagner ainda está aí, não foi dissolvido, é um dos agrupamentos militares mais bem capacitados, que agora achou uma nova base em Belarus, onde encontra todas as condições para o reforço e desenvolvimento interno. E vai atuar na África como atuava antes disso”, completa.
Edição: Rodrigo Durão Coelho