Somos duas pretas, duas mulheres que cresceram convivendo com o racismo desde a favela até o asfalto. Somos de duas gerações distintas, podíamos ser mãe e filha e, por incrível que pareça, da geração da mais velha para a geração da mais nova, as injustiças e mortes de que os pretos como nós são vítimas se avolumam como os corpos expostos para quem quiser ver.
As evidências do racismo que ainda sentimos na pele estão por todos os lados, inclusive nas estatísticas do próprio Instituto de Segurança Pública (ISP). De acordo com o órgão estadual, 7.848 pessoas perderam a vida pelas mãos de policiais no estado do Rio desde 2018 até junho deste ano.
Só no ano passado foram mais de 1.300 mortes nessas circunstâncias, o que representa 29,7% de todas as mortes violentas em território fluminense. Um terço não é pouca coisa.
Convivemos, portanto, com uma média de quase quatro mortes bancadas pelo estado por dia. Para você que nos lê ter uma ideia, na região que inclui o Complexo da Penha, na zona Norte da capital, exatamente onde 10 pessoas foram mortas nesta semana durante uma ação das polícias Civil e Militar, foram 321 casos em 2022. Lá, também está a mesma Vila Cruzeiro que viveu, estupefata, a chacina policial que resultou em 25 mortes em maio do ano passado.
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Por que as vidas nessas regiões onde os confrontos são diários não importa? O varejo das mortes que se banaliza cotidianamente tem cor no Rio de Janeiro.
Quem conhece, sabe bem, mas usamos, aqui, a resposta dada pela Rede de Observatórios, projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) com dados de 2021: 87,3% dos mortos pela polícia no Rio de Janeiro naquele ano eram pretos.
As favelas e periferias são zonas de exclusão e de morte por excelência, onde pessoas pretas e pobres estão à mercê da necropolítica instituída por esse estado que, em vez de proteger e dar garantias, mata sem prestar contas, como se o pretexto de combater o tráfico de drogas justificasse as matanças. Efeito também do capitalismo que se reproduz pela escravização de populações inteiras submetidas a condições mortíferas.
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A cada operação, seja mais ou menos letal, há moradores que são, essencialmente, pessoas comuns, que trabalham, que vão à escola, que se relacionam e também trocam afeto. Há crianças, há idosos. Toda a normalidade lhes é tirada pelo pânico a cada rajada de fuzil que pode atingir suas cabeças em pleno raiar do dia. Imagine o terror que é viver sob essa ameaça.
As comissões que nós presidimos nas respectivas casas legislativas de que fazemos parte, a Assembleia Legislativa e a Câmara de Vereadores, estão amontoadas de parentes que chegam todos os dias em busca de respostas sobre os seus, de alento e de algum amparo.
Gente que quer justiça, apelo que o governo faz questão de não escutar. Nós, que viemos desse lugar, acolhemos, mas não podemos mais agir sozinhas.
É preciso, de uma vez por todas, que mais setores da sociedade entendam que, na velocidade em que as matanças não justificadas se proliferam, a vida de todos - ou de qualquer um -, uma hora, poderá estar por um fio.
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*Dani Monteiro é deputada estadual, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj.
**Mônica Cunha é vereadora e presidente da Comissão Especial de Combate ao Racismo da Câmara do Rio.
***Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Jaqueline Deister