O acordo de grãos entre Rússia e Ucrânia, mediado por Turquia e ONU, que permitiu a liberação da exportação dos grãos ucranianos através do Mar Negro, foi o único êxito diplomático entre Moscou e Kiev desde o início da guerra. Perto da data da renovação, o acordo foi desfeito com a saída unilateral da Rússia. De acordo com Moscou, as partes não estavam cumprindo com as condições russas para o acerto. No entanto, as movimentações do Kremlin indicam que a anulação do acordo possui um contexto geopolítico mais amplo.
O Kremlin chegou a afirmar que não exclui retornar ao acordo, mas somente se as exigências russas forem contempladas. Entre as condições que a Rússia alega não estarem sendo cumpridas estão a liberação do fornecimento de amônia russa para a Europa através da Ucrânia, bem como a reconexão do Rosselkhozbank (Banco Agricultural da Rússia) ao sistema SWIFT. Analistas apontam, no entanto, que a saída da Rússia tem um pano de fundo estratégico de prejudicar a Ucrânia no contexto da guerra.
A assinatura da "Iniciativa do Mar Negro" - nome dado ao acordo – representou a liberação da exportação dos grãos ucranianos pelas rotas do Mar Negro, que haviam sofrido um bloqueio com início da guerra. Consequentemente, o escoamento dos grãos trouxe um alívio para a segurança alimentar global, considerando que, junto com Rússia e China, a Ucrânia é um dos maiores produtores de grãos. Agora, cresce o alerta sobre uma possível crise alimentar global.
A primeira consequência no horizonte é uma inflação nos alimentos. A jornalista especializada em política econômica russa Alexandra Prokopenko disse ao Brasil de Fato que os preços mundiais dos grãos vão subir e “já estão subindo”. De acordo com ela, como resultado, “os preços de outros tipos de alimentos vão subir ao longo da cadeia”. “Consequentemente, haverá inflação e os países pobres poderão pagar menos”, completa Prokopenko.
Por outro lado, com o fim do acordo, é anulado o corredor de segurança das rotas do Mar Negro para os navios ucranianos passarem. Alexandra Prokopenko destaca que, em termos gerais, a navegação civil e mercante se tornará perigosa porque o risco de bombardeios torna-se eminente, mesmo que não sejam “necessariamente de propósito”.
“Os navios mercantes provavelmente pararão de navegar porque as dificuldades de seguro começarão. Ninguém está pronto para segurar tais riscos. No final das contas, toda essa situação gera tensão na política internacional, o que é ruim”, avalia.
Não por coincidência, logo após a retirada do acordo, a Rússia deu início a bombardeios nas cidades portuárias ucranianas de Nikolaev e Odessa. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, afirmou que investida russa contra instalações de infraestrutura portuária foram "ataques em retaliação à ponte da Crimeia", disse.
O presidente russo, Vladimir Putin, buscou dar uma resposta à insegurança de países dependentes dos grãos. Durante a cúpula Rússia-África, realizada nos últimos dias 27 e 28 de julho, em São Petersburgo, Putin prometeu doar até 50 mil toneladas de grãos a países africanos.
“Nos próximos três a quatro meses, poderemos garantir o fornecimento gratuito de 25.000 a 50.000 toneladas de grãos a Burkina Faso, Zimbábue, Mali, Somália, República Centro-Africana e Eritreia”, disse Putin na abertura do evento.
O presidente russo acrescentou além da ajuda gratuita aos países mais necessitados, a Rússia terá condições de substituir os grãos ucranianos comercialmente porque o país espera “outra safra recorde neste ano”.
A analista Alexandra Prokopenko destacou que o momento escolhido para a saída do acordo foi oportuno para a Rússia: “o início de um novo ano agrícola, quando já está claro qual será a colheita e quais as perspectivas de exportação”.
Já o economista e analista do centro de pesquisas Ucrânia Unida, Aleksey Kushch, em entrevista ao Brasil de Fato, declarou que a retirada russa do acordo de grãos, e os consequentes bombardeios dos portos ucranianos, fazem parte da estratégia russa de aumentar a dependência da economia mundial em relação aos alimentos russos.
“A Ucrânia e a Rússia são os maiores exportadores de grãos do mundo. Assim, a Rússia busca excluir a Ucrânia [de ser um dos principais exportadores], e a partir disso reforçar a sua posição no mercado mundial de alimentos. Não só para evitar a oscilação de preços e receber mais lucro, mas para aumentar a dependência do sistema econômico mundial dos alimentos russos”, disse.
O analista observa que, após o Ocidente cortar significativamente a importação do petróleo e do gás natural da Rússia, Moscou deixou de ter “aquela carta na manga para ditar sua vontade aos países do Ocidente”.
“Antes a Rússia usava o gás e o petróleo como instrumento de pressão sobre o Ocidente, como instrumento de chantagem energética. Agora a Rússia está tentando transferir a dependência do sistema econômico mundial do seu petróleo e gás para uma dependência alimentar”, acrescenta.
Disputa pelo Sul Global
Assim, os esforços de Moscou de atenuar o alerta de uma crise alimentar entre os países africanos durante a cúpula em São Petersburgo se conectam com a estratégia de minar o papel do potencial ucraniano no mercado de exportação alimentos no mundo. Paralelamente, a Rússia capitaliza a sua influência junto aos países do Sul Global (países pobres ou em desenvolvimento) como fiador de sua segurança alimentar.
Para Aleksey Kushch, em primeiro lugar, a Rússia “busca demonstrar que o corredor de grãos não ajudou o Sul Global a resolver o problema da segurança alimentar”. Dessa forma, a propaganda de Moscou se orienta a mostrar que a Rússia é o “único país que pode resolver esses problemas”.
“É uma forma de cooptar através do seu arbítrio e influência os países do Sul Global, que a princípio antes manifestavam neutralidade nas votações da ONU, ou apoiavam a Ucrânia ou se abstinham. Agora a Rússia buscar trazer esses países do Sul Global para o seu lado […] Se antes a Europa dependia do petróleo e do gás russo, agora os países do Sul Global vão depender dos grãos russos, e assim a Rússia vai trazendo-os para o seu lado”, afirma.
Vale notar que no mesmo dia que a Rússia anuncia a doação de grãos aos países africanos, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, faz um movimento de aceno à “outra margem” do Sul Global, buscando angariar apoio entre os países latino-americanos, mais precisamente o Brasil.
Em entrevista a Globo News, Zelensky, sugeriu a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) marcar uma reunião junto com os líderes dos países latino-americanos para que eles ouçam a mensagem da Ucrânia. Ao mesmo tempo, ele destacou que aceitaria o convite do presidente do Brasil para visitar o país e espera que o Brasil possa contribuir para a solução do "acordo dos grãos".
"Se ele [Lula] conseguir reunir outros líderes da América Latina, todos nós podemos nos encontrar no Brasil ou em outro lugar. Isso também ajudará muito o mundo inteiro para que a paz chegue. E a Ucrânia será ouvida e apoiada pelo continente", disse.
Rússia “captura iniciativa” ucraniana
A iniciativa russa de doar grãos para países africanos, anunciada por Vladimir Putin durante a cúpula em São Petersburgo, no entanto, não é nova. No final de 2022, a Ucrânia já havia realizado o programa "Grain From Ukraine" (grãos da Ucrânia, em inglês). De acordo com o projeto, países ocidentais pagariam para a Ucrânia enviar grãos gratuitamente para países pobres da África, como Etiópia, Somália e outros países que sofrem de déficit alimentar.
Assim, para o analista Aleksey Kushch, o anúncio de que a Rússia vai doar grãos gratuitamente para a África é uma “forma capturar a iniciativa”, considerado que a Ucrânia tinha um programa muito eficiente e, a princípio, “poderia resistir à influência russa entre os países do Sul Global, e a Rússia sentiu isso”.
“Então a Rússia captou rapidamente que através dos alimentos poderia influenciar em decisões políticas dos países da região africana. Por isso a Rússia busca agora capturar essa iniciativa da Ucrânia, sair do acordo de grãos e bloquear os portos de Odessa e de Danúbio por via marítima, e, através da ajuda de seus grãos fornecidos com condições preferenciais para países africanos, a Rússia busca conseguir uma espécie de lealdade desses países, inclusive de suas posições geopolíticas”, completa.
Edição: Thales Schmidt