Não é novidade que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para "investigar a atuação do grupo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)" tem como objetivo desgastar o governo Lula e demonstrar a força da bancada ruralista. Sua repercussão na mídia também segue a mesma toada, tornando-se palco para deputados ligados ao agronegócio e transferindo o embate para o governo federal.
As análises feitas a partir da pesquisa realizada pelo Intervozes, "Vozes Silenciadas – Quem quer calar a luta dos sem-terra?" já apontam um silenciamento do MST. Nos veículos pesquisados (O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, Jornal Nacional, Portal R7, Agromais e Agência Brasil), há uma desproporção na consulta de fontes, sendo a maioria contrária ao Movimento. No entanto, até mesmo as fontes favoráveis ao MST são, quase que totalmente, parlamentares ou integrantes do governo. Além disso, as reivindicações e bandeiras de luta defendidas pelos sem-terra são ignoradas pelos veículos, que têm a pauta dominada pelo confronto entre governistas e oposicionistas, Frente Parlamentar Agropecuária e base do governo Lula.
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Por estar neste campo de disputa, uma das estratégias usadas ao longo da CPI é a promoção do "fogo amigo". Seja colocando lenha, seja repercutindo o fogo, mídia e oposicionistas se assemelham na expectativa de ver governistas brigando entre si. Em relação aos parlamentares, a estratégia foi usada na convocação de ex-integrantes do MST. Mas sem alcançar o resultado esperado, agora miram em membros do governo. O alvo da vez: Rui Costa.
A tentativa de convocação do atual ministro da Casa Civil pautou as últimas semanas de trabalho da CPI e a própria mídia. O objetivo é levar à Comissão um integrante do primeiro escalão do governo Lula, mas que, ao longo de seus oito anos governando a Bahia, estabeleceu uma péssima relação com o movimento social, incluindo os movimentos do campo mais próximo ao Partido dos Trabalhadores (PT). Ou seja, botar lenha para o "fogo amigo".
Na mídia, a movimentação pela convocação de Rui Costa foi acompanhada de perto. O Estadão, através da coluna de Roseann Kennedy, deu informações diárias sobre a novela da possível convocação. Já o Jornal da Record, em matéria repercutida no portal R7 no dia 19 de julho, fez uma entrevista exclusiva com o ministro, que se esquivou ao ser indagado sobre sua possível ida à Comissão. Aparentemente, na ausência de crimes identificados pela CPI, os parlamentares vão aumentar a munição contra membros do governo, na expectativa de que o fogo amigo possa causar algum desgaste na base do presidente Lula e na sua relação com os movimentos do campo.
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A mídia vai atrás de lenha
A repercussão (ou a busca) de contradições entre setores ligados ao governo não tem sido feita pela mídia somente agora. Antes mesmo de a CPI ser instalada, algumas matérias já seguiam essa tendência de visibilizar divergências internas, que não são poucas, visto que o governo Lula é composto por uma frente ampla de partidos, além de compromissos e acordos que abarcam desde o empresariado do agronegócio até os trabalhadores sem-terra.
Ganhou destaque na mídia a série de atos realizados pelo MST em referência ao Abril Vermelho, em especial à sede da Embrapa Semiárido, em Petrolina (PE), e as ocupações em áreas reivindicadas pela empresa Suzano, no Espírito Santo, contestadas pelo Movimento. Naquele mês, as matérias ecoaram as vozes de ministros do governo contrárias às ocupações. A fala de Alexandre Padilha, ministro da Secretaria de Relações Institucionais, "condenando veementemente" a ação dos sem-terra foi amplamente repercutida nos veículos pesquisados.
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Outro ministro ouvido foi Carlos Fávaro, que chefia a pasta de Agricultura e é ligado ao agronegócio. O ministro comparou os sem-terra a negacionistas e afirmou ser "inaceitável" o "crime" imputado ao Movimento. Sua declaração alimentou diversas matérias. Já Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário e com interlocução com os movimentos sociais, foi para a berlinda, com os veículos cobrando um posicionamento da pasta que é justamente a responsável pelas políticas para agricultura familiar. O ministro manteve um tom conciliador, mas sua fala em defesa da propriedade privada e solicitando a desocupação das áreas pelos sem-terra ganhou destaque na mídia comercial.
O vice-presidente e ministro Geraldo Alckmin também esteve no centro das atenções em busca de um fogo amigo. Sua presença na feira da Reforma Agrária, promovida em maio pelo MST, foi notícia nos veículos comerciais, num tom de "indignação" e "denúncia" da relação do governo federal com o Movimento. Essa revolta ganhou voz através de falas de membros da Frente Parlamentar Agropecuária, amplamente consultados e repercutidos pela mídia. A pressão foi tanta que, três dias depois da visita, Alckmin foi ao encontro da bancada ruralista e, durante um almoço, falou aquilo que os presentes queriam ouvir (e o que a mídia gostou de repercutir): que ele é contra as "invasões", defende a lei para proteger a propriedade privada e que, tratando-se de propriedades públicas, "não precisa nem reintegração de posse".
Falas de Lula dão munição à imprensa
O fogo amigo não parte apenas de ministros. O próprio Lula tem feito declarações que serviram de bandeja para a mídia comercial. Alguns episódios foram bastante explorados pelos veículos, a exemplo da entrevista em formato de live transmitida nas redes sociais, em que o presidente afirmou que "não precisa mais invadir terras" e que era possível uma transformação em que "não precisa ter barulho, não ter guerra".
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Em sua fala, Lula apresentava sua alternativa. "Se quem faz o levantamento da terra improdutiva é o Incra, o Incra comunica o governo quais são as terras improdutivas que existem em cada estado brasileiro e, a partir daí, vamos discutir a ocupação dessa terra. É simples", afirmou o presidente durante a entrevista. Nenhum veículo deu destaque à política proposta, tampouco escutou o MST ou qualquer outro movimento sem-terra para saber a opinião sobre a ideia do presidente. No entanto, a crítica à "invasão" virou manchete nas mídias pesquisadas.
"Após invasões do MST, Lula afirma que fará reforma agrária e que 'não precisa mais invadir terra' em seu governo" foi a manchete da matéria no jornal O Globo. Já o portal R7 fez questão de botar mais lenha na fogueira ao afirmar, em sua manchete, que a promessa de reforma agrária sem "barulho" e "sem guerra" era um "recado ao MST". A Folha de S. Paulo seguiu a mesma linha e trouxe o título: "Lula manda recado ao MST e vê reforma agrária sem barulho". As publicações ocorreram no dia 13 de junho.
Duas semanas depois, novamente em uma live, o presidente reforçou que "ao invés de as pessoas invadirem, a gente oferece [as terras], organiza". Novamente esse trecho foi replicado na mídia, novamente sem ouvir os representantes sem-terra, novamente reforçando (ou criando) um antagonismo entre Lula e o MST. O portal R7, por exemplo, chegou a distorcer a fala do presidente ao dizer que "o objetivo, segundo ele, é acabar com as invasões lideradas pelo MST", apesar de Lula não ter citado o movimento, tampouco feito tal afirmação.
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Chegado o recesso parlamentar, a promessa é que no retorno dos trabalhos a convocação de Rui Costa e de outros membros do governo à CPI esteja novamente na pauta. Ao que tudo indica, essa será a próxima estratégia dos parlamentares, que encontra na mídia comercial o palco necessário. E, quanto mais distante o governo estiver dos movimentos sociais, maior o risco de fogo amigo.
*Alex Pegna Hercog é comunicador social e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
** A série Vozes Silenciadas – Quem quer calar a luta dos sem-terra? é produzida pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Coordenação: Mônica Mourão. Pesquisa: Alex Pegna Hercog e Eduardo Amorim. Colaboração: Olívia Bandeira e Pedro Vilaça
*** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires