A Comissão Parlamentar de Inquérito do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) sofre um desvio de função típico deste período legislativo marcado pela eleição de uma quantidade grande de parlamentares suspeitos de crimes e pelo fortalecimento da bancada do chamado agronegócio. Enquanto deputados são indicados para funções importantes e conseguem se safar de investigações, temas como a compra de arroz orgânico do MST pela gestão municipal de Juiz de Fora (MG) precisam mesmo ser tratados como se fossem um caso de polícia? A pauta da própria CPI e a cobertura feita pela mídia dos movimentos sociais do campo parecem estar sofrendo com os tempos ainda sombrios.
Em um levantamento parcial das matérias que estão sendo encontradas por pesquisa desenvolvida pelo Intervozes sobre a cobertura relacionada ao Movimento durante e no período anterior à CPI do MST, o deputado Ricardo Salles (PL), relator da CPI, aparece como fonte mais ouvida e o Tenente-Coronel Zucco (Republicanos), que preside a Comissão, aparece em segundo lugar. O ex-ministro do governo Bolsonaro foi fonte em 20 reportagens, enquanto Zucco aparece 14 vezes nas 127 primeiras publicações pesquisadas na Folha de S. Paulo, Estadão, O Globo, Agência Brasil, Jornal Nacional, Portal R7 e AgroMais. O MST, motivo da CPI, aparece apenas 12 vezes, como terceira fonte mais ouvida.
Ricardo Salles está envolvido em uma série de situações suspeitas, tendo já sido alvo de busca e apreensão pela Polícia Federal. Na mais conhecida, sofre acusação de crimes como advocacia administrativa, criar dificuldades para a fiscalização ambiental e atrapalhar investigação de infração penal que envolva organização criminosa. Ele teria atuado para tentar liberar madeira apreendida na divisa do Pará com o Amazonas no fim de 2020 que foi avaliada em R$ 129 milhões.
A apuração pedida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) surgiu a partir de uma investigação da Polícia Federal (Operação Handroanthus) que levou à apreensão de 226 mil metros cúbicos de madeira extraídos ilegalmente por organizações criminosas, segundo o Superior Tribunal Federal. Salles e o presidente da CPI têm papel relevante para decidir quem será ouvido nas sessões, mas a própria pauta dos meios de comunicação também parece não conseguir se livrar do vício em repercutir polêmicas, bate-bocas e violências que não têm grande relevância na vida da população (e servem apenas para quem está tentando se expor para uma próxima eleição). Um exemplo foi a repercussão da expulsão de uma militante de esquerda do plenário da CPI na sessão de 31 de maio.
O presidente da CPI do MST, Tenente-Coronel Zucco, é investigado por suspeita de ter patrocinado e incentivado atos antidemocráticos no Rio Grande do Sul e em Brasília contra o resultado das eleições de 2022. O pedido de investigação começou no seu estado, mas o Tribunal Regional Federal da 4ª Região entendeu que, como Zucco tem foro privilegiado, a análise deveria ser feita pelo Superior Tribunal Federal.
A pauta política domina a cobertura relacionada ao MST, o que acaba gerando reportagens em que são ouvidos “dois lados”, representados pela oposição e o governo Lula. Mas, nas primeiras semanas de acompanhamento das matérias, o Intervozes e os leitores atentos da mídia já viram posicionamentos diversos emitidos por representantes do executivo federal que, se não chegam a ser de oposição ao movimento social, certamente não representam em nenhum momento o discurso dos sem-terra. Como já mencionamos em outro texto desta série, o presidente Lula chegou a dizer que não é necessário “fazer barulho” para se conseguir a reforma agrária, num discurso que evidentemente visa a desmobilizar o ,movimento.
Nas 12 aparições em que o MST é citado, não se trata de um representante oficial, e sim uma soma de diversas pessoas e documentos que representam o movimento de forma genérica. Nessa categoria, estão somadas citações do site, de notas e de integrantes qualificados como líderes ou integrantes do movimento social, inclusive quando está especificado o estado do país que elas representam. Ou seja, parece existir um problema de diálogo entre a imprensa e o movimento, porque os representantes oficiais aparecem pouco. João Paulo Rodrigues e João Pedro Stédille são os que mais foram encontrados na fase inicial da pesquisa, mas com apenas três e duas aparições, respectivamente.
Entre os parlamentares governistas, tem destaque a deputada federal Sâmia Bonfim. Explicitamente a favor do MST, ela inclusive organizou ato no Armazém do Campo em São Paulo, no último sábado (8), de solidariedade às parlamentares que sofrem processo de cassação por terem se posicionado contra o Marco Temporal e em defesa do MST. O número de aparições da psolista, apesar de inflado por sofrer esse injusto processo, empata com o do presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Pedro Lampion. Ambos foram fonte de 10 reportagens cada.
Apesar de Sâmia Bonfim ter um número relativamente grande de aparições, é importante ressaltar que muitas delas são causadas por abusos cometidos justamente pelo relator ou pelo presidente da CPI do MST, que são as fontes mais ouvidas nas reportagens que vêm sendo analisadas. Reportagem de O Globo, no último 6 de junho, cita que “o Ministério Público Federal acionou a Procuradoria-Geral da República (PGR) por avaliar que Sâmia Bomfim foi vítima de violência política de gênero durante sessões da CPI do MST. A denúncia cita o episódio em que a parlamentar teve o microfone desligado durante sua fala pelo presidente da comissão, o tenente-coronel Zucco (Republicanos-RS)”.
Sâmia Bomfim também fez questão de denunciar os parlamentares que invadiram residências de assentados da Frente Nacional de Luta (FNL), na zona oeste de São Paulo, entre eles, Salles e Zucco. Poucas, no entanto, são as reportagens que aprofundam questões complexas e contextualizam a reforma agrária a partir de fontes ligadas ao movimento ou mesmo de parlamentares que se posicionam favoravelmente a ele. Na reportagem do último dia 7 de junho em que a Folha de S. Paulo afirma no título “Parlamentares cobram STF e CPI contra lei usada por Tarcisio para beneficiar fazendeiros”, faltou, por exemplo, identificar a legislação.
A Lei Estadual nº 17.557, de 2022, é tema de artigo do deputado estadual Eduardo Suplicy publicado no dia 29 de junho, na Folha de S. Paulo, com o título “São Paulo não pode ter uma reforma agrária às avessas”. De forma didática, o texto mostra que a legislação aprovada ainda no período do governo Rodrigo Garcia cria graves problemas no campo e questiona a legalidade de ações que vêm sendo implementadas no período recente pelo governo de São Paulo baseadas nessa lei. “A cada dia, o tema ganha maior relevância e alcança o Supremo Tribunal Federal e a CPI sobre o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Por isso é necessário que a população de São Paulo entenda como chegamos até aqui”, diz trecho bastante simbólico do artigo do deputado Suplicy.
O levantamento sobre a cobertura da mídia sobre o MST neste período tão complexo em que ocorre mais uma CPI para investigar o movimento social na Câmara dos Deputados está só começando. Mas, além do grande espaço que vem sendo dado na mídia a políticos eleitos que são acusados de crimes ambientais ou mesmo contra a democracia e têm uma forte relação com o agronegócio, também já parece possível afirmar que poucas vezes os jornalistas da grande mídia têm conseguido transpor o debate pouco pedagógico da disputa pelos holofotes no Congresso Nacional.
No tema da legislação que pode abrir uma brecha para grilagem em São Paulo, o artigo do deputado estadual Eduardo Suplicy é o mais informativo. A internet, a velocidade da vida das pessoas e o mercado cada vez mais sofrido do jornalismo tornam difícil o investimento em produções de qualidade. Mas não seria o grande diferencial de um veículo de mídia investir em algo que vá além dos comentários que qualquer um pode fazer nas redes sociais sobre a queda de braço quase que diária entre governo e oposição? Afinal, neste primeiro mês de acompanhamento pelo Intervozes, uma lição que estamos aprendendo é que falta espaço nos sete veículos analisados para o debate efetivamente sobre os sem-terra, enquanto sobram manchetes sobre a disputa eleitoral antecipada.
*Eduardo Amorim é jornalista, doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e associado ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
** A série Vozes Silenciadas – Quem quer calar a luta dos sem-terra? é produzida pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Coordenação: Mônica Mourão. Pesquisa: Alex Pegna Hercog e Eduardo Amorim. Colaboração: Olívia Bandeira e Pedro Vilaça
Edição: Leandro Melito