Resgatar as origens africanas na construção da identidade da Venezuela e resgatar a tradição de luta e resistência. É assim que pesquisadoras e ativistas de movimentos populares definem a tarefa de levar o nome de mulheres negras ao Panteão Nacional para transformá-las oficialmente em heroínas do país.
Atualmente, o mais privilegiado espaço de memória nacional conta com a presença de três mulheres negras: Matea, Hipólita e Juana "La Avanzadora" Ramírez que, cada uma à sua maneira, contribuíram para a resistência contra a dominação espanhola e para as lutas de independência.
No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, celebrado nesta terça-feira (25), o Brasil de Fato conversou com intelectuais, políticas e militantes de coletivos negros e feministas para compreender o legado dessas mulheres para as lutas atuais.
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Para a pesquisadora Casimira Monasterio, professora honorária da Unearte e deputada federal (PSUV), a luta pela inclusão de figuras negras e femininas no Panteão é importante para democratizar a memória do país e responder a uma versão oficial da história.
"É um reconhecimento ao povo afro-venezuelano na participação da independência, na construção da venezuanilidade. A história tal como tem sido contada até agora foi uma história contada a partir de uma visão da aristocracia caraquenha, que era a elite escravocrata do país. Então nos contam uma história como se ela fosse de homens brancos, ricos, cristãos, heterossexuais, e não, a história é muito mais do que isso", afirma.
A deputada foi uma das pesquisadoras que esteve à frente dos projetos que elevaram Matea, Hipólita e Juana Ramírez ao status de heroínas venezuelanas. A ideia de abrir um grupo para realizar o projeto partiu do ex-presidente Hugo Chávez em 2008, quando o então mandatário, atendendo a demandas de movimentos populares, sugeriu que os restos mortais das três mulheres negras, juntamente com os da líder indígena Apacuana, fossem levados ao Panteão Nacional. Lá também repousam os restos de outros heróis da independência, como o próprio libertador Simón Bolívar.
Então, um grupo de pesquisadores africanistas, historiadores e acadêmicos se encarregaram do projeto que teria seu primeiro resultado em 2015, com a entrada de Juana Ramírez no Panteão. Filha de uma mulher escravizada, ela foi libertada e criada por fazendeiros brancos que lhe deram seu sobrenome. Ramírez se engajou na política muito jovem e aos 20 anos apoiou a primeira tentativa de declaração de independência, que ocorreu em 1810 em Caracas, conhecida como Revolução de Abril.
Durante as guerras de independência que ocorreram entre 1811 e 1823, Ramírez comandou um batalhão formado só por mulheres que defendeu a cidade de Maturín em 1813. Foi no campo de batalha que ganhou a alcunha de "La Avanzadora", por ser a primeira da tropa a avançar em direção ao inimigo, segundo relatos, carregando a espada de um espanhol morto.
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"A batalha de Maturín é decisiva porque é por ali que o exército patriota consegue tomar Guayana e, segundo muitos historiadores, quem ganha a batalha de Maturín é o batalhão comandado por Juana Ramírez que era, majoritariamente, formado por mulheres escravizadas", afirma Casimira Monasterio.
Já Matea e Hipólita, mulheres escravizadas que serviram a família de Simón Bolívar, chegaram ao Panteão Nacional em 2017. Segundo os autores do projeto que as elevou à condição de heroínas da Venezuela, a homenagem serviu para destacar os trabalhos invisibilizados de um setor da população que teve importância indireta nas lutas de independência.
Para Johanna Rivero, professora da Universidade Bolivariana da Venezuela (UBV) e ativista da Plataforma de Feminismo Popular Venezuelano, há uma contradição simbólica em fazer com que Matea e Hipólita ocupem o mesmo espaço de Bolívar, já que ambas foram escravizadas e serviram a família do libertador. No entanto, a pesquisadora afirma que o movimento é dialético e necessário para provocar o debate no país.
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"A sociedade não propõe questões que já não saiba responder. Bolívar é um produto social de seu tempo, era um aristocrata e sua luta estava marcada inicialmente por interesses da sua classe, antes de dar o passo em direção à abolição total da escravidão", afirma.
Para Rivero, "a presença de Matea, Hipólita e Bolívar no mesmo espaço evidencia esse movimento dialético, essa constante tensão entre os setores da sociedade, algo que estará presente, inclusive, na formação do Estado nacional venezuelano".
Passado e presente: lutas e memórias
O protagonismo de Matea, Hipólita e Juana Ramírez, não apenas por seus feitos, mas também por suas entradas no Panteão Nacional, fazem com que essas mulheres sejam reivindicadas por diversos movimentos populares venezuelanos. Para Alina León, militante do coletivo La Minka, lutar pela incorporação de mulheres negras ao Panteão Nacional é uma luta para preservar a ancestralidade.
"Matea, Hipólita, Juana 'La Avanzadora' estiveram esquecidas em nossa história por muito tempo e nos últimos anos, quando lutamos para resgatá-las, estamos lutando para que as próximas gerações as conheçam, porque é daí que viemos, elas são nossas origens, não podemos permitir que essa memória seja apagada", diz.
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León ainda afirma que a chegada de mulheres negras ao Panteão faz parte de uma luta maior, empreendida por movimentos populares em diálogo com os governos chavistas, visando a "descolonização" do país, algo que passa não somente pela memória oficial, mas também pelas artes, pela arquitetura e pelos símbolos nacionais.
A professora Johanna Rivero também fala sobre o legado das figuras históricas negras e femininas venezuelanas e afirma que elas podem se tornar referências para as lutas presentes e futuras das mulheres no país.
"Nós alcançamos diferentes conquistas em matéria de gênero em nosso país, sobretudo para o bem-estar das mulheres, mas ainda falta muito por fazer e avançar. As conquistas não vêm do dia para a noite, elas são fruto de lutas recentes de outras mulheres negras que lutaram e lutam por nós", diz.
Os impactos sociais da crise econômica agravada pelo bloqueio imposto pelos EUA são mais gravemente sentidos pelas mulheres. Segundo estudos de organizações e universidades venezuelanas, os episódios de escassez e a falta de recursos para investir em políticas sociais atingiu de maneira mais grave a população feminina do país.
"Nós vivemos hoje em dia um período bem duro, que afetou muito a luta por melhores condições de trabalho e de igualdade, então é aí que nossas mulheres se tornaram as primeiras a lutar, seja em casa, nos conselhos comunais, no trabalho, na tentativa de migrar, tudo para enfrentar da melhor maneira possível a situação econômica que vivemos", afirma Rivero.
Edição: Thalita Pires