Os que pensavam que a celebração dos 200 anos de ruptura com os vínculos coloniais de Portugal se esgotariam com o desfile militar de 7 de setembro e a vinda do coração de Dom Pedro I ao Brasil devem conhecer pouco a Bahia.
Ali, onde foram travadas sangrentas batalhas, tanto antes como depois do “grito do Ipiranga”, a independência do Brasil é comemorada em 2 de julho, quando em 1823 - quase um ano após a independência oficial do país ter sido declarada - as tropas portuguesas foram expulsas de Salvador, consolidando a separação política entre Brasil e Portugal. E a festa é na rua.
Nem carnaval, nem procissão, nem desfile. Para a historiadora Wlamyra Albuquerque, o 2 de julho na Bahia é uma mistura disso tudo. Na contramão da maneira como a “memória nacional” costuma ser contada, fazendo do povo “o grande protagonista ausente dos processos de ruptura”, diz Albuquerque, a forma como a independência é celebrada na Bahia torna evidente a participação popular na disputa pelos rumos do país - tanto há dois séculos atrás quanto nos dias de hoje.
Neste domingo (2), o festejo anual completa 200 anos. “A festa não se perdeu - muito pelo contrário, continua muito viva - porque ela nos oferece a oportunidade de repensar esse fato histórico e, ao mesmo tempo, trazer para a rua uma série de demandas que são atuais” opina Wlamyra, que é também professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Se por muito tempo a demanda pelo fim do analfabetismo pautou as festas do 2 de julho, atualmente Albuquerque destaca as lutas contra as violências às populações negras, LGBTQIA+ e indígenas.
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“É uma forma popular de fazer política”, resume a historiadora, se referindo aos festejos, mas também ao que representam as figuras de Maria Quitéria e Maria Felipa, que permearam a conversa com o Brasil de Fato. “É uma festa que ensina a todos nós como podemos construir espaços políticos que não se limitam aos gabinetes e aos palácios”, sintetiza.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Qual a importância da memória da luta pela independência que aconteceu na Bahia há dois séculos? E o que explica, na sua opinião, que em outras regiões do Brasil, essa guerra seja pouco conhecida?
Wlamyra Albuquerque: Por que na Bahia está sendo comemorado o bicentenário esse ano, sendo que a gente teve outra comemoração de bicentenário da independência no ano passado, no 7 de setembro? Sei que muita gente está pensando "nossa, baiano inventa coisa", não é? Mas não é isso. A gente está falando sobre uma celebração que diz respeito à maneira como a sociedade brasileira construiu as formas de ruptura política com os vínculos coloniais com Portugal. E esse é um processo que não começou em 1822 nem se encerrou em 1823, no 2 de julho.
Os livros de história estão sendo reescritos no sentido de mostrar o quanto todo o processo de autonomia se dá de forma encadeada. O Brasil é um grande território, imagine o que isso significava no século 19. As lutas pela independência aconteceram na Bahia, no Rio de Janeiro, no Maranhão. E dizem respeito à maneira como essas províncias na época se organizaram para a independência nacional.
Essa ideia da autonomia construída de forma popular que é celebrada na rua, que se expressa como uma festa cívica popular é, ao mesmo tempo, relevante e pode parecer perigosa. Porque a festa do 2 de Julho diz que o processo de independência se dá por conta da mobilização popular, da disputa por projetos nacionais que as populações fazem em momentos de ruptura com pactos coloniais.
Essa guerra tem como característica a participação popular. Muitos escravizados, libertos, pobres, mulheres e indígenas compuseram as trincheiras contra os portugueses. Isso se reflete até hoje, inclusive na celebração do 2 de julho, que diferente do caráter militar do 7 de setembro, é uma festa popular. Pode falar um pouco sobre isso?
Todos os processos de ruptura, de formação dos Estados nacionais, são marcados pela participação popular. Isso não é uma exclusividade brasileira. Entretanto, quando se constrói a memória nacional que vamos contar na escola e nos órgãos oficiais, se institui uma espécie de mitologia sobre a fundação do país e o povo some.
O povo costuma ser o grande protagonista ausente desses processos de ruptura nacional. Então, acho que o que há de especial na forma como celebramos isso é que na Bahia se tornou possível deixar evidente essa participação popular.
É claro que o fato de ter havido uma movimentação militar comandada por Dom Pedro no Rio de Janeiro, que era a capital do Império na época, foi decisiva para que tudo isso acontecesse. O processo de independência da Bahia não é separado desse outro momento em que se institui, com todas as dúvidas e vacilações, a ruptura política com Portugal. Costumamos, inclusive, dizer que não comemoramos a independência da Bahia. A Bahia nunca quis se tornar independente. Comemoramos o processo de independência nacional na Bahia. Isso é fundamental para percebermos a força simbólica e política de reafirmarmos a importância do povo na construção de projetos nacionais.
Apesar de o povo ser, via de regra, o grande protagonista ausente das histórias sobre os rumos do país, graças ao trabalho de historiadores e ativistas, alguns personagens vêm à tona. Quem foram, por exemplo, Maria Quitéria e Maria Felipa?
Sim, essas histórias são muito boas. Essa é o tipo de pergunta que a gente não ouvia alguns anos atrás. E é aí que eu acho que tem outra coisa muito bacana para falar sobre o 2 de Julho. Ao meu ver, a festa se reinventa a cada ano, exatamente porque ela é capaz de se atualizar e trazer à tona pautas contemporâneas. Porque o projeto nacional está sempre em andamento, é algo que está sendo disputado. Essa atenção política que tem sido colocada nesses papéis femininos vem em boa hora, porque demonstra o quanto a presença das mulheres, especialmente das mulheres negras, é uma demanda da sociedade brasileira.
Maria Quitéria é uma personagem mais conhecida. Também controversa, pois tratava-se de mulher que se fez passar por homem para lutar nos campos de batalha. E essa transgressão de se imaginar como uma soldada, como alguém que poderia pegar em armas e lutar por aquilo que lia como sendo liberdade, faz com que ela seja uma protagonista importante para pensar sobre as formas de luta. Não só pela independência nacional, mas também por garantir o lugar das mulheres na defesa de seus direitos dentro dessa nação que se inaugurava. Então a Maria Quitéria é sempre muito celebrada por ser uma referência no sentido de decidir por uma luta e assumir as consequências dessa luta.
A Maria Felipa é outra história muito bacana, porque é uma personagem que o 2 de julho fez nascer no século 21. Todos os historiadores com quem você conversar vão dizer que não temos referências sobre a existência de Maria Felipa. Temos notícias de uma mulher com esse nome na mesma região em que ela nasceu, que teria lutado em uma rebelião popular, mas isso aconteceu no século 18, antes do processo de independência. Uma historiadora chamada Lisa Castilho tem se empenhado em encontrar algum tipo de documento, mas até agora não encontramos referências.
No entanto, Maria Felipa é uma personagem que ganhou não só nome, mas também corpo, discurso e lugar nessa vitrine dos heróis e heroínas do processo de independência. Ela se insere nessa mitologia, embora não tenhamos fonte histórica para dizer quem foi essa mulher. É uma personagem completamente factível, porque óbvio que as mulheres se envolveram nessas lutas.
A gente encontra vários fragmentos dessa presença feminina, e não só garantindo o clássico que acontece nas guerras com a participação feminina, sobre o cuidado com os feridos, a produção de alimentos. Mas também pensando numa rede de comércio de circulação de alimentos que foi muito importante, por exemplo, para que Salvador não ficasse sitiada pelas tropas portuguesas. As mulheres negras estavam ocupadas nesse comércio urbano. E elas que garantiram a circulação de alimentos. Isso foi fundamental para a sobrevivência não só das tropas, mas da população que não conseguiu fugir para o Recôncavo Baiano.
Então Maria Felipa já tem um lugar assegurado, independente do que nós historiadores digamos a respeito dela (risos). É muito legal, você anda nas ruas e têm meninas vestidas de Maria Felipa, vestidas de Maria Quitéria. Assumindo o mito, a simbologia, dessas heroínas. E acho que diz respeito, mais uma vez, ao que a gente deseja para esse país. Pelo reconhecimento da maneira como as mulheres constroem esse lugar. Tanto como território, mas como espaço político de luta.
Qual o significado do 2 de julho atualmente? É possível fazer uma conexão, na festa, entre as lutas anticolonialistas de dois séculos atrás e as de hoje?
A festa de 2 de Julho celebra o fim do período colonial e o início do período imperial, por que celebramos tudo isso agora que somos uma República, né? Essa curiosidade me levou a pensar sobre a maneira como a cultura de rua vê os espaços públicos urbanos como um lugar em que você não só simboliza, mas teatraliza a política.
A festa não se perdeu - muito pelo contrário, ela continua muito viva - porque ela nos oferece a oportunidade de repensar esse fato histórico e, ao mesmo tempo, trazer para a rua uma série de demandas que são atuais. Quando estudamos, por exemplo, como era a festa no século 19, não tínhamos a presença de comunidades muito bem organizadas como temos hoje, como a comunidade LGBT e o movimento negro, que participam ativamente da festa.
A festa tem um formato de procissão, ela sai de um ponto específico da cidade seguindo duas figuras indígenas, o caboclo e a cabocla, que estão colocadas em carros emblemáticos, mas são carregados em andor e adornados com folhas verdes e amarelas. Algumas pessoas vão rezar para o caboclo, para a cabocla, outros vão aplaudir. Outros vão colocar bilhetes aos pés deles. Outros vão ver o caboclo e a cabocla como encarnações de guerreiros que estão lutando pelo país. A ideia de adoração a essas imagens passa também por um sentido de pertencimento a este país.
E nesse contexto, não é apenas comemorativo, mas também um espaço de denúncia, de crítica política, um espaço no qual os políticos presentes serão vaiados e aplaudidos por diferentes grupos, com diferentes representações partidárias, diferentes colorações e com seus apoiadores e detratores também no espaço da rua.
Ao mesmo tempo, é uma festa aberta para os sambas, que foram tão perseguidos no século 19. É aberta às populações religiosas afro-brasileiras, que saem vestidas com suas indumentárias e reconhecem nesses indígenas os seus ancestrais. É um espaço de participação de grupos indígenas da Bahia, que vêm da ilha de Itaparica. Grupos do sertão que vêm vestidos com roupas tradicionais de couro.
Algumas lutas, como a luta contra o analfabetismo, foram muito fortes no 2 de Julho no século 20. Hoje, vemos uma demanda por igualdade de direitos entre a população LGBTQIA+, bem como a população negra. Uma denúncia do genocídio das populações indígenas. Portanto, tem esse formato tradicional secular, de procissão que desfila pela rua com dois emblemas sagrados, mas ao mesmo tempo é um espaço de crítica em que as pautas se renovam a cada geração. É isso que garante que a festa se mantenha.
É uma forma popular de fazer política. A gente pode fazer política sambando, bebendo, celebrando, mas ao mesmo tempo reivindicando nossos direitos. Se dizendo herdeiros das Marias Felipas do mundo, mas ao mesmo tempo renunciando a um tipo de patriotismo que signifique a exclusão dos outros. É uma festa em que ensina a todos nós como podemos construir espaços políticos que não se limitam aos gabinetes e aos palácios.
Edição: Rodrigo Gomes