A regulamentação da cannabis tem avançado em diferentes partes do mundo e crescido o consenso de que o Brasil, em alguma hora, também terá que definir o seu próprio desenho legal. Mas, quando isso acontecer, o que deve ser priorizado? Quais barreiras estarão pelo caminho e como se mobilizar para superá-las?
Os antiproibicionistas já possuem algumas ideias, muitas delas já colocadas em prática, mas ainda é tempo de extrair lições das experiências vividas em outros países, entre erros, acertos e até fórmulas quase prontas para determinados aspectos. Também por isso, era aguardado o lançamento em português do guia prático Como regular a Cannabis, que aconteceu no dia 27, durante um seminário realizado na Câmara dos Deputados, em Brasília.
Parlamentares, entidades civis, pesquisadores e representantes de diferentes ministérios do governo debateram o caso brasileiro, seus desafios e particularidades, frente às contribuições do estudo feito pela organização britânica Transform Drug Policy Foundation - traduzido pela plataforma jurídica JUSTA.
Um dos autores, o pesquisador inglês Steve Rolls, participou da abertura do evento com uma apresentação sobre os principais tópicos do guia, fruto de mais de 25 anos entre observações e participações diretas na criação de leis. Apoiado por pesquisas de opinião, ele demonstrou como o debate sobre a legalização da maconha costuma acompanhar o conhecimento e a conscientização do público.
O estado da Califórnia, por exemplo, autorizou o uso medicinal da cannabis em 1996 e, em 2012, passou a permitir o uso adulto, contribuindo para a inversão das curvas de aceitação e rejeição no país todo. Esse prazo de maturação de 16 anos entre uma legislação e outra é visto como plausível também para o Brasil, caso se consiga avançar, nos próximos anos, na regulamentação da cannabis medicinal pelo Congresso Nacional.
Antes disso, Rolls defende as diferentes vozes da sociedade, incluindo as comunidades mais afetadas pela guerra às drogas, os usuários recreativos, associações, mas também empresários, médicos, juízes e membros de diferentes religiões que participem do processo.
“Nós podemos fazer algo diferente, melhor, aprendendo com os erros cometidos com o álcool e o tabaco. Nós podemos construir um mercado mais tangível, que inclua todas as nossas necessidades. As necessidades de pessoas que usam cannabis, dos negócios, do Estado, da polícia, do pessoal da saúde pública. É uma oportunidade incrível, é excitante e vocês devem abraçá-la”, estimula.
Para a advogada Luciana Zaffalon, diretora executiva da plataforma JUSTA, não se trata mais de discutir se a cannabis será regularizada, mas quando, tendo em vista o contexto político brasileiro atual. “Nós temos um legislativo avesso a esse debate, mas ele está se impondo de uma forma ou de outra. O que parece que a gente pode projetar é que, com o potencial julgamento do recurso extraordinário 635.659 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a gente venha a ter o fim da criminalização do porte da cannabis. E, a partir do fim dessa criminalização, há que se perguntar: qual o próximo passo?”
Uso medicinal abre trincheiras
Assim como ocorreu em outros países, está claro que a cannabis medicinal é uma frente pioneira para a aceitação do tema na sociedade brasileira, cada vez mais conhecedora da sua eficiência. Desde 2015, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) passou a avalizar produtos feitos de derivados da planta e, atualmente, cerca de 80 mil pacientes possuem autorização de uso.
Mas a necessidade de importar ou requerer os produtos junto ao Sistema Único de Saúde (SUS) ainda mantém o tratamento caro e difícil de acessar. Algo que já deveria estar na pauta do parlamento, na opinião da deputada federal Sâmia Bomfim (Psol-SP), mediadora da mesa de abertura no seminário.
“O uso da cannabis medicinal é uma questão de saúde pública urgente, civilizacional, não há motivo para que haja uma regulamentação plena ainda no nosso país. Vários médicos podem prescrever e isso precisa ser consolidado imediatamente, mas também é uma forma da sociedade perceber o quanto essa lógica da criminalização é uma irracionalidade. Se o debate é útil para algumas pessoas por determinadas doenças, ela também pode ser útil para muitos jovens negros das periferias brasileiras que são presos injustamente, que são vítimas da repressão policial”, afirma.
Foi por essa via que a jornalista Manoela Borges, criadora do portal Informa Cann e repórter do Cannabis e Saúde, adicionou o uso da erva no seu tratamento para insônia e ansiedade. Impelida a compilar e divulgar estudos sobre o tema, ela reclama que a legislação atual permite a venda de produtos à base de cannabis nas farmácias, mas por um custo até três vezes maior do que a importação direta.
“Sabemos que existe uma molécula psicoativa que é o THC (Tetrahidrocanabinol), mas hoje a gente já consegue isolar essas moléculas e, inclusive, reconhecer que existe o uso medicinal dessa molécula psicoativa. Nas drogarias há uma série de drogas usadas para uma série de patologias que também são psicoativas. O que a gente quer é que seja uma planta livre de cultivar no país para não ficar refém de importação”, ressalta Manoela.
Mesmo sem regulamentação, a importação individual de produtos, a comercialização em farmácias e as compras via SUS giraram R$ 363 milhões em 2022, segundo levantamento feito pela Kaya Mind. Para esse ano, o montante deve ser superior à projeção feita de R$ 655 milhões, de acordo com Thiago Cardoso, pesquisador e cofundador da empresa focada no incipiente mercado da cannabis.
O viés mercadológico desperta apetites por parte da indústria farmacêutica, um lobby pesado que não deve prevalecer na montagem do arcabouço legal sobre o tema, na opinião de Sâmia.
“A gente quer levar o debate para outros campos, como por exemplo o das associações. Elas já desenvolvem um trabalho no país, foram pioneiros e, hoje, só existem pessoas com tratamento graças ao trabalho, suor e raça de muitas delas que precisam ser consideradas na regulamentação. É uma planta, que pode ser plantada em qualquer lugar, então não tem cabimento também esse altíssimo custo”, adiciona.
Mercado tem potencial bilionário
Outro estudo da Kaya Mind, lançado em 2021, prevê como seria o mercado da cannabis no Brasil após 4 anos de uma regulamentação ampla, envolvendo todos os setores e com uma produção de cerca de 33 toneladas anuais.
“O Brasil tem um total amplo de potencial de geração de mercado anual de R$ 26 bilhões. Aí sim contando indústria, agronegócio, uso medicinal e adulto, dos quais R$ 8 bilhões seriam revertidos em imposto, porque você tem uma alta geração de impostos, assim como funciona para drogas lícitas como o álcool e o tabaco”, projeta Cardoso.
Se a judicialização tem sido favoráveis ao uso medicinal, outras duas frentes economicamente importantes para a cannabis são a do uso adulto e recreativo, cuja desregulamentação ajuda o tráfico de drogas internacional, e o industrial e agrícola. Enquanto produtos à base da fibra, de sementes e outras partes da planta ainda não são matérias primas disponíveis no mercado, a punição a usuários segue na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF).
A expectativa é de que o colegiado decida pela descriminalização do consumo pessoal ainda este ano, apesar da morosidade no andamento. Na Corte desde 2011, o caso foi incluído na pauta de julgamentos do tribunal nos dias 21 e 22 de junho pela presidente do STF, Rosa Weber, mas não chegou a ser discutido e segue parado.
Até agora, votaram a favor da descriminalização do porte de drogas para consumo próprio os ministros Gilmar Mendes, relator da matéria, Edson Fachin e Roberto Barroso. Um entendimento bastante atacado por parlamentares conservadores, como o deputado federal Professor Paulo Fernando (Republicanos-DF), que esteve presente no seminário e pediu a palavra.
“O que me chama atenção como parlamentar é que mais uma vez o Supremo faz um ativismo judicial legislando no nosso nome, como se nós aqui não discutíssemos a matéria. Nós discutimos a lei 13.964 de 2019 durante muitos anos. Então, na prática, o que vai acontecer se o artigo 28 for descriminalizado? O uso das drogas estará totalmente liberado. E aí eu indago: você pegaria um avião em que o piloto fosse usuário de heroína? Você contrataria uma babá adicta de crack? O chefe de gabinete da Câmara ou do Senado poderia cheirar cocaína no seu birô de trabalho?”, argumentou.
Após breve momento de deboche da plateia sobre a suposta hipocrisia do deputado, Sâmia Bomfim disse ver com bons olhos a pluralidade do debate, mas criticou a acusação de ativismo judicial.
“Eu também gostaria muito que decisões importantes como essa não ficassem a cargo do STF. Acontece que esse debate é completamente interditado aqui no Congresso Nacional, em que um seminário como esse acaba se tornando uma apoteose, sendo que deveria ser um tema básico, cotidiano, elementar, porque se estamos falando por exemplo do sistema carcerário do Brasil, um terço das pessoas que estão ali enquadradas naquilo que é considerado esse crime”, rebateu.
Outros painéis do seminário foram mais a fundo sobre temas transversais à cannabis, como a própria reparação histórica e justiça social, além de desenvolvimento sustentável e reforma agrária. Segundo Marta Machado, secretária nacional de políticas sobre drogas e ativos do Ministério da Justiça, após um hiato de 4 anos, o governo volta a ter uma competência integral para pensar políticas sobre drogas em seus vários aspectos.
“Voltamos a ter uma diretoria de prevenção e reinserção social e marca realmente essa missão de pensar uma política sobre drogas, com respeito aos direitos humanos, com direito a autonomia, com acesso à informação qualificada e com promoção de uma política social e racial”, finaliza.
Edição: Rodrigo Durão Coelho