Quase ninguém esperava que Thiago Wild (tenista número 172 do mundo) fosse derrotar nesta semana o russo Daniil Medvedev (segundo colocado no ranking da Associação de Tenistas Profissionais, a ATP) na rodada de abertura de Roland Garros, tradicionalíssimo Grand Slam disputado no saibro de Paris. Talvez nem ele mesmo.
Vindo do qualifying, Thaigo Wild se tornou o segundo brasileiro a vencer um tenista do Top 2 num torneio de Grand Slam na era aberta do tênis. O primeiro foi o grande Gustavo Kuerten, nas vitórias sobre o russo Marat Safin no US Open (em 2002) e sobre o suíço (e talvez um dos maiores tenistas de todos os tempos) Roger Federer em Roland Garros (em 2004).
Sim, meus amigos. O resultado conquistado por Thiago Wild na última terça-feira (30) foi comemorado por muita gente de dentro e de fora do tênis. Afinal de contas, não é todo dia que você despacha um número dois do mundo num torneio de um porte de um Roland Garros.
:: Caso Thiago Wild: apoio a denunciado por violência doméstica mostra machismo da sociedade ::
No entanto, existem situações que exigem da gente um olhar além do que acontece dentro dos estádios e das arenas. E essa é uma delas.
Em junho de 2022, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) denunciou Thiago Wild por violência doméstica e psicológica contra a ex-mulher, a biomédica e influencer Thayane Lima. Além disso, o tenista também responde processo por falta de pagamento de pensão alimentícia. Não vou entrar em muitos detalhes aqui por motivos óbvios. Mas a denúncia do MP-RJ fala em xingamentos, humilhações diante de familiares e amigos e até mesmo em falas que entram no terreno da homofobia e do racismo. Wild teria passado a controlar a maneira como a ex-esposa se vestia, o que usava e a maneira de falar.
O relacionamento acabou em agosto de 2021, depois que Thayane Lima descobriu uma série de traições de Thiago Wild. O pedido de pensão alimentícia foi feito depois que a Justiça tomou conhecimento de que o tenista impedia a influencer de trabalhar e a deixou completamente desamparada depois do término do relacionamento.
Thiago Wild negou as acusações em nota divulgada para a imprensa no mês de setembro de 2021 e se recusou a falar sobre o assunto depois disso. De acordo com o UOL Esporte, o processo está parado desde abril de 2022 porque o tenista não foi encontrado em nenhum dos endereços que deu para a Justiça do Rio de Janeiro. Vale lembrar que a intimação de Wild precisa acontecer de maneira pessoal por conta da gravidade da denúncia. A tendência é que o processo seja atualizado no mês de junho.
Mas se você pensa que as coisas param por aí, prepare bem o estômago porque tem mais.
Na entrevista coletiva realizada depois da vitória sobre o russo Daniil Medvedev, Thiago Wild foi questionado por um jornalista sobre a denúncia feita pelo MP-RJ e o que espera que vá acontecer no processo movido pela sua ex-mulher. Notem bem que o tenista poderia ter falado qualquer coisa. Desde um “não vou comentar esse assunto pois está em segredo de Justiça” (e de fato está) até uma tentativa de se mostrar minimamente arrependido do que fez. No entanto, a resposta foi a seguinte:
"Não acho que seja um assunto que devamos falar aqui. Acho que é uma pergunta que você não deveria fazer a ninguém. Não acho que cabe a você decidir se é o lugar para falar sobre isso ou não".
Fiquei procurando nesses últimos dias alguma matéria que condenasse as atitudes de Thiago Wild ou que pelo menos falasse da resposta bizarra que ele deu em Roland Garros. A quantidade de reportagens que encontrei não enchem os dedos de uma mão. E isso é muito grave. Primeiro por minimizar o caso de violência doméstica no qual está envolvido e depois por querer ditar aquilo que os jornalistas devem perguntar para ele ou não.
Espero que vocês me desculpem. Mas eu não tenho sangue de barata e cara de pau suficientes para festejar o desempenho esportivo de alguém denunciado por violência doméstica. Entendo perfeitamente que a Justiça está tratando do caso e tudo mais. No entanto, essa resposta dada ao repórter lá em Paris resume bem o pensamento de Thiago Wild sobre as denúncias feitas contra ele no Ministério Público.
É por isso que eu estou cada vez mais convencido de que existe um “pacto da impunidade” no esporte brasileiro. Notem bem os comentários sempre que um atleta ou um treinador de renome é denunciado por violência contra a mulher.
“Não vamos falar disso! Vamos focar no campo e bola!”
“Garanto que ele é um bom menino e que não fez isso por mal. Foi aquela mulher que provocou isso!”
“Isso já aconteceu há tanto tempo… Precisamos mesmo relembrar isso?”
“Gostava mais de vocês quando não tentavam lacrar com coisas inúteis.”
E por aí vai. A sensação é que torcedores, imprensa e sociedade em geral pensam que o esportista, apenas com conquistar bons resultados, está acima da lei e pode fazer o que quiser sem ser incomodado ou questionado. E mais: há quem defenda que a “persona esportista” deve ser desvinculada da pessoa física, do CPF. Pois deixem eu contar algumas novidades pra vocês que acham que atleta tem habeas corpus eterno pra fazer todo tipo de cagada dentro e fora de casa.
O Robson de Souza que violentou uma moça na Itália em 2013 e foi condenado por isso é o mesmo Robinho que jogou no Santos, no Real Madrid, no Milan, no Manchester City e na Seleção Brasileira.
O mesmo Alex Stival que violentou uma menina de 13 anos em 1987 na Suíça, foi condenado e viu a pena prescrever é o mesmo Cuca que comandou vários times importantes nos últimos vinte anos.
E o mesmo Thiago Seyboth Wild que praticou violência física e psicológica contra sua ex-mulher é o mesmo Thiago Wild que derrotou o segundo melhor tenista do mundo.
Não se separa o atleta/treinador do CPF. Entendam isso de uma vez por todas.
Esse “pacto da impunidade” no esporte precisa ter um fim. Não estou pedindo pena de morte ou prisão perpétua pra ninguém. Apenas quero que os citados nesta crônica e outros que podem estar na memória de vocês respondam pelos seus crimes. Não se trata de lacrar. Se trata de querer que a Justiça prevaleça e faça seu trabalho. Enquanto esse “pacto da impunidade” continuar, não vai dar pra falar “apenas” de campo e bola.
*Luiz Ferreira escreve toda semana para a coluna Papo Esportivo do Brasil de Fato RJ sobre os bastidores do mundo dos atletas, das competições e dos principais clubes de futebol. Luiz é produtor executivo da equipe de esportes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, jornalista e radialista e grande amante de esportes.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse