Um estudo inédito que reuniu quase 50 especialistas conclui que o cerrado brasileiro vive hoje uma guerra química por causa do uso de venenos agrícolas. O alerta é baseado em uma vasta pesquisa que reuniu conhecimentos coletivos de comunidades cerradeiras, pesquisadoras e pesquisadores e organizações de assessoria e análises laboratoriais.
A publicação Vivendo em Territórios Contaminados: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado revela consequências do uso dessas substâncias na saúde das populações locais, mas também nos próprios territórios, essenciais para a sobrevivência.
"Nos corpos, esses produtos se transformam em dores de cabeça, diarreias, mal-estares diversos e em doenças que podem ser irreversíveis, como o câncer e enfermidades causadas por desregulações endócrinas. Já nos territórios, onde se planta, se brinca, se cultiva a ancestralidade, os agrotóxicos se alastram, carregados pelas águas dos rios e espalhados por nuvens de pulverização aérea", diz o documento.
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Em duas fases – entre fevereiro e março de 2022 e novembro de 2022 e fevereiro de 2023 – a pesquisa realizou coletas de amostras da água usada em sete comunidades para análise toxicológica. Elas estão localizadas nos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e na área nomeada como Matobipa, que compreende Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
A avaliação do que foi coletado em riachos, córregos, açudes, represas e poços identificou resíduos de 13 tipos de agrotóxicos em todas as comunidades que fizeram parte do estudo. Mais de 46% dos venenos encontrados não tem autorização de uso em países da União Europeia por causa do risco à saúde humana.
O glifosato, que está nessa lista, só não foi identificado em uma comunidade, na segunda etapa da pesquisa. No estado de Tocantins, por exemplo, ele esteve presente em 100% dos pontos analisados, com ampla presença em diferentes fontes de água – de córregos a cacimbas.
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Mariana pontes, uma das organizadoras do dossiê, que atua na equipe da Secretaria Executiva da Campanha Nacional de Defesa do Cerrado, afirma que mesmo frente às consequências o uso de agrotóxicos no Brasil continua crescendo.
"Essas substâncias têm sido usadas como armas químicas nos territórios e têm impedido a produção e a reprodução da vida dos povos do Cerrado. Esses agrotóxicos se alastram, são carregados pelas águas dos rios, espalhados pelas nuvens de pulverização aérea. São os corpos, são os territórios das comunidades que estão sob ameaça há muito tempo. Observamos que o uso dos agrotóxicos só tem crescido, com a liberação de novos produtos, além dos que já são, autorizados."
Ainda de acordo com o dossiê, a revelação de diferentes tipos de venenos na mesma amostra traz uma preocupação adicional. No Maranhão foram observados 9 tipos de venenos em apenas uma coleta. Comunidades expostas a esse tipo de combinação podem estar mais expostas a riscos graves para a saúde.
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Na raiz do problema está o monocultivo, principalmente da soja, cultura potencializadora do uso de venenos agrícolas nessas regiões. Quase 60% de todos os produtos químicos usados pelo agronegócio no Brasil se destinam à soja. Mais da metade da produção desse grão em solo nacional está no Cerrado.
As famílias que vivem nas regiões afetadas são vítimas de rupturas de relações socioecológicas ancestrais, em municípios que apresentam baixos índices de desenvolvimento humano mesmo vizinhos a grandes fortunas do agronegócio. As grandes produções de soja também estão conectadas ao desmatamento e aos conflitos por terra.
"Avaliamos que realmente se trata de um projeto de extermínio, porque a contaminação dos corpos e dos territórios se dá de forma intencional. Os peixes dos rios estão morrendo antes mesmo da pesca. As lavouras de soja, que são vizinhas às comunidade, quando recebem veneno, as pragas ali são deslocadas para as plantações e as árvores frutíferas. É uma guerra muito violenta, porque é um pacote que vem sendo usado nessas plantações com a intenção, em tese, de matar as pragas do agronegócio, mas sabemos que há uma contaminação do ambiente como um todo", alerta Mariana Pontes.
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A pesquisa foi construída coletivamente, em uma parceria entre a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Tribunal Permanente dos Povos do Cerrado, que também reuniu as populações locais. Valéria Santos, da CPT, afirma que o trabalho em conjunto, com atenção aos próprios saberes e relatos locais, amplia o caráter de luta do dossiê.
"O sentido dessa pesquisa é construir um instrumento de luta, de enfrentamento a essa arma química e essa guerra química contra as comunidades tradicionais. O agronegócio é responsável por todo esse processo de contaminação e de expulsão. Principalmente, porque consideramos o agrotóxico como arma que expulsa as comunidades do campo. É um instrumento de luta para fortalecer a voz e a denúncia das comunidades."
Para frear a situação, o dossiê aponta a necessidade urgente de mudanças e revisões na legislação, como a aprovação do projeto de lei (PL) nº 6.670/2016 para a criação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos e proibição nacional da pulverização aérea.
A relação com quase 20 recomendações também cita o incentivo a alternativas de manejo e de práticas agroecológicas, o fortalecimento da fiscalização, o fim das isenções fiscais para agrotóxicos e a criação de um canal específico de denúncias.
Edição: Nicolau Soares