A vice-presidenta argentina Cristina Kirchner confirmou nesta semana que não será candidata à presidência na eleição de 2023. O anúncio veio através de uma carta publicada em suas redes sociais, e desmobilizou a Operação Clamor, um chamado da militância peronista à candidatura de Cristina.
Na carta, a vice explica que sua decisão "foi pensada", sabendo "como agem e pensam" os atores do poder judicial que buscam sua inabilitação política e que, segundo ela, têm agido como uma "task force [força tarefa] de Juntos por el Cambio [coalizão de direita tradicional que se opõe ao governo de Alberto Fernández] e dos grupos econômicos concentrados para eliminar os seus adversários políticos".
A decisão reafirma o que Kirchner já havia adiantado em dezembro do ano passado, no mesmo dia em que o Tribunal Oral 2 leu sua sentença de 6 anos de prisão e proscrição política perpétua. No entanto, o peronismo ainda conservava esperanças de que a candidata preferida do espaço político repensasse sua decisão.
Leia a carta na íntegra:
Neste ano de 2023, completam-se 40 anos de democracia ininterrupta no nosso país. No entanto, uma parte importante da cidadania não se sente representada nem considerada em suas aspirações, em uma Democracia que se perdeu no aspecto econômico, se degradou no social e começou a romper nas esferas política e institucional. Com a raiva e a desilusão surge aquilo que há algum tempo denominei "insatisfação democrática".
A perda da democracia econômica começou em 2016, quando o recém-eleito governo de Cambiemos iniciou um novo e brutal ciclo de endividamento externo que culminaria com o retorno do Fundo Monetário Internacional através de um empréstimo insólito, inédito e político, cujo objetivo era não só ajudar este "governo amigo" a ganhar as eleições, mas também permitir a retirada em dólares dos fundos de investimento especulativos.
A história que se seguiu é a mesma de sempre do Fundo no nosso país: intervém, toma o leme da economia argentina, impõe o seu programa econômico e dispara outra vez o processo inflacionário na Argentina, que fica fora de controle. A causalidade não é uma categoria política e, por isso, não é por acaso que nenhum dos dois presidentes que aceitaram o programa do FMI conservem aptidão eleitoral. No entanto, em política, sim, existe uma causalidade e o fator determinante é a economia.
Neste contexto de endividamento brutal em dólares, a natureza bimonetária da economia argentina, que se junta à já histórica restrição externa e à compulsão para a formação de ativos em dólares no exterior, coloca inevitavelmente a conta corrente do nosso país no vermelho, o que, diante da escassez de dólares, sempre resulta em uma inflação descontrolada, corridas cambiais contra a moeda nacional, desvalorização e mais inflação. Isso impossibilita qualquer governo de administrar razoavelmente a natural luta distributiva pela renda e transforma a inflação no mais fenomenal instrumento de transferência de recursos de toda a sociedade para os setores mais ricos e concentrados da economia, que se apropriam dessa renda extraordinária num contexto de tributação frouxa. À luz da história do nosso país e com exceção de períodos de governo muito específicos, não há nada novo sob o sol.
Além disso, é incontornável assinalar as consequências catastróficas da pandemia, não apenas em termos sanitários e sociais, mas também econômicos, com o aprofundamento da concentração da renda e o crescimento da pobreza. Não saímos melhores da pandemia.
Para aqueles que continuam repetindo que a política monetária é a única causa da inflação, e ainda têm algum espírito crítico de investigação, convido-os a olhar os gráficos sobre a evolução da Base Monetária a preços constantes e como porcentagem do PIB, que o Banco Central publica todos os meses.
Com o fim da Democracia econômica, degrada-se a Democracia social e o paradigma peronista de mobilidade social ascendente. Pela primeira vez na Argentina observamos como uma baixa taxa de desemprego (6,3%) coexiste com um alto nível de pobreza (40%). Desta forma, encontramos trabalhadores em relação de dependência que são pobres e a emergência de uma sociedade dual, onde uma parte tem acesso a todos os bens e serviços e a outra, a maioria, vê suas possibilidades de progresso significativamente reduzidas ou, diretamente, lhes falta.
Nestes 40 anos de democracia ininterrupta passamos também por duas gravíssimas crises econômicas e sociais: em 1989 com a hiperinflação e em 2001 com a queda da conversibilidade. Este último também incluiu uma crise institucional em que 5 presidentes se sucederam em uma semana, que foi resolvida no âmbito da Constituição Nacional. Entretanto, em nenhum desses momentos foi questionado o Pacto Democrático aprovado por referendo em outubro de 1983, pelo qual nem a violência política contra o adversário nem a proscrição eleitoral seriam elementos da ação política.
Hoje, os fantasmas do passado voltaram à realidade política argentina. Durante o ano de 2022 vimos como a violência verbal e simbólica que há anos vinha sendo implantada na sociedade pela mídia hegemônica, materializou-se na rua através da ação de grupos violentos que agrediram, insultaram e ameaçaram matar com sacos funerários, guilhotinas, tochas, pedras e escraches. O objetivo desses grupos era absolutamente direcionado. Não foi contra todos os partidos políticos nem contra todos os dirigentes, como na crise de 2001. Foi contra o peronismo ou o kirchnerismo, como você gostar.
O ápice desta ação ocorreu no dia 1º de setembro de 2022, em frente à minha casa particular quando, acompanhados por Deus e pela Virgem e cercados por colegas, atentaram contra minha vida. Surpreendentemente, após o frustrado assassinato, aqueles grupos que se organizavam e atacavam semanalmente, repreendiam e ameaçavam, desapareceram como num passe de mágica. Isso sem dúvida confirma o caráter premeditado e sem qualquer indício de espontaneidade da violência política desses grupos. Foram promovidos e financiados pela oposição e a mídia hegemônica garantiu-lhes ampla cobertura midiática.
"A bala que não saiu e a decisão que vai sair" foi a manchete do jornal Clarín, de Héctor Magnetto, a principal força motriz do ódio contra mim e minha família; numa espécie de lamento pelo fracasso do assassinato, mas antecipando a decisão que alguns dias depois os expoentes do Partido Judiciário profeririam contra mim e cujo resultado condenatório anunciei publicamente três anos antes, quando do julgamento conhecido como obras públicas de Rodovia Nacional começou. A condenação e inabilitação na referida causa tem uma única tradução política e eleitoral: a proscrição.
Como venho defendendo há muito tempo, não se trata apenas da proibição de uma pessoa, mas do peronismo. Embora alguns, por mesquinhez ou mediocridade, o tenham negado recorrendo a tecnicalidades legais, a realidade voltou a confirmá-lo.
Na semana passada, após um fim de semana eleitoralmente adverso para o Juntos por el Cambio e objetivamente favorável ao peronismo, a Corte suspendeu as eleições para governador das províncias de Tucumán e San Juan, apenas 72 horas após o início da interdição eleitoral. Objetivo político: prejudicar o peronismo e acobertar seus próprios crimes. No mesmo dia e ao mesmo tempo em que foi proferida esta decisão, na Comissão de Impeachment da Câmara dos Deputados da Nação denunciavam tanto o escândalo do trabalho social do Judiciário, que envolve um dos membros deste Tribunal, como o enriquecimento ilícito do seu Presidente. Todos e cada um desses fatos mencionei em 18 de julho de 2022 no documento "Do tribunal exemplar ao tribunal dos quatro: breve crônica da decadência".
É que, quando falei da proscrição em dezembro de 2022, não foi no exercício das artes divinatórias, mas com o entendimento da fase histórica que estamos passando. Assim como três pessoas fizeram com as províncias de Tucumán e San Juan, não tenham dúvidas de que o farão contra mim para impedir o peronismo de participar do processo democrático, ou enfraquecê-lo, levando-nos a um beco sem saída.
Eu já disse isso no dia 6 de dezembro de 2022. Não serei um mascote do poder para nenhuma candidatura. Tenho demonstrado, como ninguém, privilegiar o projeto coletivo sobre o pessoal. Não vou entrar no jogo perverso que nos impõem com uma fachada democrática para que esses mesmos juízes, hoje empoleirados no Tribunal, ditem uma sentença que me inabilite ou diretamente me retire de qualquer candidatura que eu possa ostentar, para deixar o peronismo em absoluta fragilidade e debilidade diante da disputa eleitoral. Os acontecimentos recentes me deram razão.
Não foi uma decisão apressada nem fruto de um momento, mas sim uma decisão ponderada e pensada. Eu os conheço, sei como pensam, como agem e como agirão. Vi-os ao longo da história e experimentei o seu jogo em carne própria e da minha família, com uma perseguição atada com precisão cirúrgica ao calendário eleitoral.
Desde 2016 que o Partido Judicial funciona como uma Task Force [força tarefa] de Juntos por el Cambio e dos grupos econômicos concentrados para eliminar os seus adversários políticos. Provocam com essa fachada de justiça e democracia mutilada e pretendem fazer-nos cair no terreno que eles querem: a violência e a intolerância. Tratam-nos como inimigos e usam frases como "eliminar" ou "acabar com o Kirchnerismo". Nós não somos isso e acreditamos firmemente que na Democracia há adversários, não inimigos.
Temos de ser inteligentes para sair deste labirinto e quebrar a armadilha em que nos querem fazer cair: a de que temos uma candidatura proibida pelo Partido Judicial. Porque, diante de uma direita cuja única proposta é arrebatar direitos, o peronismo continua sendo o espaço político que garante a defesa dos interesses do povo e da Nação.
Diante dessa situação, é imprescindível – mais do que nunca – construir um programa de governo que volte a conquistar o coração dos argentinos e os convença de que um país melhor não só é possível como desejável. Um programa de governo que é necessário não só para o peronismo, mas para o sistema democrático como um todo.
E quanto àqueles que exigem o desaparecimento do peronismo ou do kirchnerismo – como uma caricatura da "solução final" para a Argentina – depois de 40 anos de Democracia, recomendo que prestem atenção à história e à longa lista de "exterminadores vernáculos" que nunca conseguiram convencer os argentinos de que comer bem e quatro vezes por dia é uma questão ideológica; que ter um lugar digno para viver e ver seus filhos crescerem, estudarem e progredirem é coisa de populistas; ou que trabalho e salários decentes é uma crença antiga. A eles digo: não puderam e não poderão acabar com a memória e os sonhos de milhões de argentinos de viver em uma nação livre, cujo povo progride em ordem e é feliz.
Abraço a todos e a todas de coração, como sempre.
Edição: Nicolau Soares