Análise

A esquerda britânica e as eleições locais na Inglaterra

Os conservadores perderam espaço para trabalhistas, verdes e liberais-democratas

Brasil de Fato | Londres (RU) |
A eleição nacional britânica, que define o próximo Primeiro Ministro, está marcada para 2024 - Pixabay

As eleições locais da Inglaterra, realizadas na última quinta-feira (04/05), passaram despercebidas por conta da coroação do Rei Charles III. De um lado, a coroação representa a manutenção de um sistema antidemocrático, com um chefe de Estado hereditário que ainda interfere ativamente na legislação do país em benefício próprio. De outro, as eleições locais mostram a crescente insatisfação com os quatorze anos de domínio do Partido Conservador sobre o Reino Unido e, principalmente, a Inglaterra, nação mais populosa dentre as quatro que compõem o reino.

Nas eleições locais inglesas, são disputadas cadeiras representando bairros (wards) em conselhos distritais (councils). A maioria nos conselhos distritais define o poder executivo do distrito. Também há disputas pelas prefeituras de regiões metropolitanas. Duas mudanças chamaram a atenção na eleição: primeiro, o trabalhismo britânico voltou a ser o maior partido nos governos locais. Segundo, o Partido Verde obteve um crescimento expressivo e, pela primeira vez, terá controle sobre um conselho distrital. 


Todos os gráficos foram elaborados a partir de dados de dados da BBC News, coletados neste domingo (07), às 13h, disponíveis no link: https://bit.ly/3B6AEso / Pedro Faria

A vitória trabalhista já estava anunciada nos números: desde o fim de 2021, os trabalhistas têm uma vantagem sistemática nas pesquisas de opinião. A vantagem aumentou com a briga intestina pelo controle do Partido Conservador depois da queda de Boris Johnson. A eleição local na Inglaterra – que concentra mais de 80% dos eleitores do Reino Unido – cimenta a vantagem trabalhista e aponta para uma vitória sobre os conservadores na eleição nacional de 2024.

No entanto, a outra grande novidade mostra que a vida de Kier Starmer, líder dos trabalhistas, pode não ser tão fácil, pois tanto os verdes como os liberais-democratas também demonstraram excelentes resultados na eleição da semana passada. Os liberais-democratas tiveram desempenho bons no sul da Inglaterra, onde disputam os votos da região mais rica do país com os conservadores.

O Partido Verde tem apresentado um crescimento sistemático nas eleições locais. Segundo o estatístico Ell Folan, do portal Stats for Lefties, entre as eleições locais de 2018 e 2023, os verdes tiveram um crescimento de 290% no número de conselheiros distritais, saindo de 198 para 772 assentos em conselhos.


Fonte: BBC News. / Pedro Faria

Nesta eleição, esse crescimento finalmente resultou no controle do conselho de Mid Suffolk, condado no leste da Inglaterra. Os partidos menores podem ser um problema para a estratégia de Keir Starmer porque atraem eleitores insatisfeitos com a estratégia centrista do atual líder trabalhista. Starmer foi eleito líder após a derrota de Jeremy Corbyn, da ala socialista do partido, nas eleições de 2019. Se apresentou como um candidato de unidade contra os postulantes da direita do partido, herdeira de Tony Blair, e a esquerda, que propôs Rebecca Long-Bailey como sucessora de Corbyn. 

No entanto, Keir Starmer mudou de curso, abandonou seu próprio programa de esquerda e tem atacado a ala socialista do partido sem pudores. Jeremy Corbyn e a socialista Diane Abbot, a primeira mulher negra a ser eleita para o parlamento britânico, foram removidos da bancada trabalhista. Qualquer simpatia com veículos de imprensa de esquerda e causas como a luta Palestina tem resultado em expulsão.

Além disso, o diretório central do Partido Trabalhista tem feito intervenções na escolha de candidatos para as eleições locais e para as cadeiras do parlamento, bloqueando a tradicional democracia trabalhista vinda de baixo.

O resultado do ataque à esquerda foi o esvaziamento do próprio partido. Apenas em 2021, o partido perdeu 91 mil membros, o que gerou até mesmo instabilidade financeira. Os grandes sindicatos associados à ala esquerda do partido, como o Unite, maior sindicado do país, cortaram parte do financiamento ao partido e estão se dedicando às disputas econômicas.

No campo eleitoral, os membros insatisfeitos migraram para pequenos partidos de esquerda como o Trade Union and Socialist Coalition ou o Partido Verde. A consequência da virada de mesa de Starmer, portanto, é o enfraquecimento da base mobilizada do Partido Trabalhista. A liderança blairista tem contado com o retorno dos grandes doadores que, eles esperam, bancarão uma máquina eleitoral sem militantes.

Poderíamos pensar que o ataque de Starmer contra a esquerda socialista traria de volta os eleitores mais centristas, que oscilam entre os liberais-democratas e o trabalhismo blairista. No entanto, Starmer já descartou qualquer possibilidade de atender a principal pauta desse setor: reverter o Brexit, a saída da União Europeia.

O próprio Starmer se apresentava como pró-Europa quando participou da liderança de Corbyn. Essa foi uma estratégia da direita do partido para colocar Corbyn em uma situação desconfortável na pauta que dominou o Reino Unido entre o referendo de 2015 e a saída efetiva em 2020. Em outra virada de casaca, Starmer abandonou sua posição, deixando os eleitores centristas, majoritariamente pró-Europa, instasfeitos.

Apesar dos problemas, o sistema distrital britânico, que elege um membro do parlamento para cada distrito de aproximadamente 70 mil eleitores, favorece o sucesso de Keir Starmer e o trabalhismo blairista. Mesmo insatisfeitos, eleitores à direita e à esquerda do trabalhismo acabam retornando quando a única alternativa são os conservadores. Ainda assim, o desgaste pode acabar custando assentos onde liberais-democratas e verdes se apresentam como alternativas viáveis.

Mais do que isso, a percepção do público em geral de Keir Starmer como um vira-casaca que não escolhe seus princípios de acordo com os ventos políticos pode ter efeito sobre a participação eleitoral. Mesmo diante do caos do Partido Conservador, eleitores podem preferir não votar, diminuindo o potencial de vitória trabalhista.

Portanto, apesar da vitória nas eleições locais, o caminho do trabalhismo blairista rumo à casa em Downing Street, número 10 - sede do governo -, ainda não é certo. Segundo cálculos da BBC, a projeção de votação nacional a partir dos resultados da eleição de quinta-feira indicam que os trabalhistas teriam 35% dos votos, contra 26% dos conservadores, 20% dos liberais-democratas e 19% de outros partidos.

Essa projeção indica uma maioria pequena para Starmer ou até mesmo um governo de minoria. Nessa situação, Starmer seria forçado a manobrar tanto o campo socialista dos trabalhistas como os liberais-democratas ou o Partido Nacionalista Escocês (SNP), que atualmente é o terceiro maior partido do parlamento do Reino Unido.

Ao contrário das previsões mais centristas, tentar agradar direita e esquerda ao mesmo tempo nunca é uma rota fácil para o poder. Pode até funcionar quando o campo conservador se implode, mas não funcionará quando estes se reagruparem. Como sabemos que partes da centro-esquerda brasileira têm bastante interesse no trabalhismo centrista britânico, seria bom que se atentassem a essas dificuldades.


Fonte: BBC News / Pedro Faria

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Pedro Faria é economista e doutor em história. É pesquisador vinculado ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, ao Instituto Economias e Planejamento e militante do Movimento Brasil Popular.

Edição: Rodrigo Durão Coelho