Nesta sexta-feira (28) completam 20 dias que oito lideranças Guarani Kaiowá e uma Terena estão encarceradas no Presídio Estadual de Dourados, no Mato Grosso do Sul. A detenção aconteceu durante o feriado de Páscoa, depois que a Polícia Militar (PM) reprimiu o grupo que retomou o território Yvu Verá, reivindicado como tradicional pelos indígenas.
A Defensoria Pública da União (DPU) alega que houve “ilegalidade nas prisões” e aguarda, desde 13 de abril, que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) julgue o habeas corpus que pede a liberdade das lideranças. “Não há prazo para a apreciação do pedido e, no momento, não há outro caminho a seguir”, informa a DPU.
A reocupação da área, cujo processo demarcatório está parado, aconteceu depois que a empresa Corpal Incorporadora e Construtora começou as obras para a construção de um condomínio de luxo no local. Para impedir o avanço do muro que estava sendo erguido, cerca de 500 indígenas estão acampados ali desde 7 de abril.
No último sábado (22), uma manifestação pedindo a liberdade dos nove presos bloqueou o anel viário e foi reprimida pela PM. De acordo com indígenas ouvidos pelo Brasil de Fato, uma criança de dois meses teve de ser levada ao hospital por respirar fumaça de bomba. Nelson da Silva, um homem de 55 anos do povo Kaiowá e Guarani, foi alvejado por tiros de balas de borracha em várias partes do corpo. Uma delas atingiu seu rosto. Desde então, ele não consegue enxergar bem com o olho esquerdo.
“Meus machucados estão inchados. Agora baixaram um pouco, mas a visão que antes eu tinha clara, agora do lado esquerdo ficou embaçada. Fui no hospital, mas só me deram remédio para dor e para desinchar”, expõe Nelson.
As nove lideranças presas
As prisões aconteceram em 8 de abril, depois da repressão da Tropa de Choque da PM, sem mandado judicial, contra os indígenas que haviam ocupado o terreno no dia anterior. Dos 10 indígenas levados à delegacia, apenas o mais idoso, de 77 anos, foi liberado.
Os outros nove tiveram a prisão preventiva decretada pelo juiz Rubens Petrucci Junior, da 2ª Vara Federal de Dourados. Todos eles refutam as acusações de associação criminosa, dano ao patrimônio, esbulho possessório, ameaça, lesão corporal e posse de armas que lhes foram imputadas.
“A DPU espera que o tribunal conceda liminar para a liberdade dos indígenas, entendendo que houve ilegalidade na prisão, decretada de ‘ofício’ pelo magistrado federal, sem que houvesse requerimento do MPF nesse sentido”, diz a Defensoria Pública. De fato, o que o MPF solicitou foi a liberdade provisória dos detidos, o oposto do decidido pelo juiz.
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“Esses nove presos foram presos injustamente. Não foi correto, enganaram eles. Disseram que era para assinar um papel na delegacia. Quando chegaram, os policiais acusaram eles, falaram que tinham arma”, afirma Nelson. “Não tinha arma. Aqui nós não usamos armas”, rebate: “As nossas armas são mbaraká [instrumento sagrado] e yvyrapará [bastão listrado, associado à autoridade política, atividades guerreiras]”.
Cabelos raspados e frio
“Estamos arrasados”, resume Sandra de Souza, esposa do Cacique Adelino de Souza, que tem 63 anos. Vivendo dias que descreve como de aflição e falta de informação, Sandra conseguiu ver seu marido uma vez, por intermediação de uma tela. As videoconferências foram feitas pela Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul com todos os detidos, seus familiares e o auxílio de tradutores.
“Ele falou para mim que está passando frio, fome, que lá não tem colchão. Estão dormindo em cima do piso”, relata Sandra. Segundo ela, as lideranças indígenas tiveram os cabelos raspados e estão sem acesso a cobertor ou agasalhos. Um deles é Magno de Souza, que foi candidato a governador do Mato Grosso do Sul pelo Partido da Causa Operária (PCO) nas eleições de 2022.
“Tem senhora aqui que tem filho pequeno, que depende do marido dela, que está preso. Eu também dependo do meu esposo, o Adelino. Eu sou doente, tomo remédio controlado. Ele que faz o corre para mim porque eu mesma não saio de casa, eu sou dona de casa”, diz Sandra, ao comentar que, somando, o casal tem oito filhos. “Além dos adotados, que são pequenos”, completa.
João Gonçalves, do povo Guarani Kaiowá e da retomada Yvu Verá, afirma que estão ansiosos aguardando a liberdade dos nove. “Mas se não liberar, vamos fazer outro protesto para fazer pressão”, assegura.
“Nós estamos apurados”, sintetiza Nelson. Por que eles estão presos lá, sem dever nada para a justiça? Agora é a justiça que está devendo para eles. Eu queria saber por quê. E o povo que está lá no poder? Que está à frente dessas coisas? O que eles pensam? Como que não fazem nada?”, questiona.
“Se eles não forem libertos, o povo vai se reunir”, afirma Nelson. “Tem 305 povos indígenas no Brasil. Se se reunir, aí é que esses que mandam, esses ladrões de gravata, vão ver que não estamos sozinhos”, diz.
A retomada
A área em disputa é vizinha da populosa Reserva de Dourados, onde 20 mil indígenas vivem confinados em cerca de três hectares de terra, desde que foram expulsos de suas terras na década de 1940. O território de Yvu Verá pertence à Terra Indígena (TI) Dourados Peguá. Esta é uma das que, segundo um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) firmado em 2007 entre o MPF e a Funai, deveria ser identificada e delimitada até 2010.
Treze anos depois, isso ainda não aconteceu. Desde então, essa é a décima vez que o povo Guarani Kaiowá se organiza para fazer a autodemarcação de Yvu Verá. “Estamos com água potável agora. Está faltando um pouco de alimento, mas estamos bem na retomada”, diz João.
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“Meu tataravô já existia aqui”, narra Nelson da Silva. “Foi passando a informação para nós, para os netos, e foi passando e repassando. O finado meu pai falava para mim: sem consultar Guarani e Kaiowá, eles usaram também a força para tirar de lá para jogar para cá. Então hoje nós estamos requerendo o que é nosso. Todo mundo sabe que essa terra foi tirada à força de nós”, conta.
“Não tem essa que essa terra é dos brancos”, complementa Sandra. “A obra parou porque nós estamos aqui, né? Não vamos deixar eles levantarem mais [o muro]”, diz.
Ações policiais sem ordem judicial
“Os policiais aqui abusam muito da autoridade”, afirma Nelson, com feridas ainda abertas. “Com nós, que somos Kaiowá e Guarani, não tem conversa. Se chegassem e conversassem, até que a gente poderia entender eles e eles nós. Mas não, eles chegam atirando para lá e para cá, não querem nem saber se tem criança”, critica.
A DPU e o MPF enviaram um documento ao governo do Estado do Mato Grosso do Sul, sob comando de Eduardo Riedel (PSDB), recomendando que operações policiais em terras indígenas só possam acontecer depois de consulta ao Conselho de Intermediação de Conflitos Sociais e Situação de Risco. Este grupo, instituído pela Lei 3.807/2009, seria composto por representantes do governo e do judiciário, mas na prática não é acionado.
O documento, de 17 de abril, foi endereçado a Antonio Carlos Videira, secretário de Justiça e Segurança Pública do MS (SEJUSP), e estabeleceu o prazo de cinco dias para que fosse dada uma resposta. Uma semana depois de vencido o prazo, a resposta tem sido o silêncio. O Brasil de Fato entrou em contato com a SEJUSP e tampouco teve retorno.
Na recomendação, a Defensoria e o Ministério Público listam seis casos nos últimos 14 anos em que a PM do Mato Grosso do Sul fez despejos forçados contra ocupações indígenas sem qualquer decisão judicial. O uso de balas de borracha, granadas, helicópteros e prisões arbitrárias foi citado reiteradamente.
Entre os dias 2 e 12 de maio, o Brasil vai receber a visita de uma representante da ONU para investigar riscos de genocídio contra as populações negra e indígena no país. Conselheira especial do secretário-geral para a Prevenção de Genocídio, a queniana Alice Wairimu Nderitu irá, nos dias 9 e 10 de maio, ao Mato Grosso do Sul para conhecer a realidade vivida pelos Guarani Kaiowá.
Edição: Rodrigo Durão Coelho