Na semana em que o Brasil adota, pela primeira vez, o nome Dia dos Povos Indígenas ao invés de “Dia do Índio” para o 19 de abril, o povo Guarani Kaiowá se despede de um de seus mais importantes guardiões. Referido pela comunidade como ñamoi (avô), o rezador Atanásio Teixeira morreu na madrugada de terça-feira (18), aos 101 anos, no Mato Grosso do Sul (MS).
Atanásio foi um dos criadores, no fim dos anos 1970, dos chamados jeroky guasu, encontros ritualísticos que dariam forma ao Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani Kaiowá. Esta é, atualmente, a maior organização política do seu povo.
Foi numa reunião do Aty Guasu que Matias Hampel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) do MS, teve a primeira impressão de seu Ataná, como era chamado. Quando o xamã chegou, tudo parou. Todos os rezadores presentes, de diferentes linhagens, se ordenaram para recebê-lo, seguindo a condução do seu mbaraká (instrumento sagrado). “Uma honraria dessas, de todos os rezadores do Mato Grosso do Sul o reverenciarem em um som uníssono, é uma demonstração da sua importância”, conta.
“Até 1978, existia um nhanderu [rezador] do nível do seu Atanásio, que era o Pai Chiquito, no Panambizinho. Depois que faleceu o Pai Chiquito, ficou o seu Atanásio”, relata o professor, historiador, e antropólogo Izaque João, do povo Guarani Kaiowá.
Calculando que, do seu século de vida, quase 80 anos foram dedicados às rezas pela conquista territorial de seu povo, Matias conta que Atanásio era reconhecido como um hechakára (xamã que conhece através de visões). “É justamente alguém que consegue fazer coisas tão extraordinárias, que são provas inegáveis do poder de comunicação com o tempo, as árvores, o vento, os elementos da natureza”, explica.
“Ele tinha um conhecimento da cosmologia Kaiowá e das manifestações de fenômenos naturais que podemos chamar de nível superior mesmo”, resume Izaque, que organizou e traduziu o livro de Atanásio, publicado em novembro de 2021. Em Cantos dos animais primordiais (editora Hedra), o xamã intercala relatos de sua vida, com os guahu (cantos míticos) e 26 histórias de animais da mata.
Nos seus últimos dias de vida, Atanásio andava às voltas com a tristeza do luto pelo feminicídio de sua filha. Aos 43 anos, Vanda Teixeira foi encontrada morta na área rural da aldeia Amambai no último 8 de abril. Dez dias depois, Atanásio morreu com um mal súbito.
Os três mundos de seu Ataná
Nascido em 1922, Atanásio Teixeira – ou Ava Ñomoandyja, seu nome indígena – viveu, ainda pequeno, a primeira experiência de desterro. Quando, nas primeiras décadas do século 21, o Estado brasileiro retirou, em massa, o povo Guarani Kaiowá de suas terras no Mato Grosso do Sul para confiná-lo em reservas, a família de Atanásio, de forte tradição de rezadores, foi expulsa do território de Mbarakay. Durante toda a sua vida, ele lutou para retornar.
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Izaque João, que passou os últimos sete anos acompanhando o rezador de perto ao pesquisar e registrar seus cantos xamânicos, divide a vida de Atanásio em “três mundos”.
O primeiro é este curto em que viveu na sua terra tradicional. “Ele falava que existia uma grande floresta, várias espécies de animais, de peixes e que eles desfrutavam, que não faltavam alimentos”, diz. O segundo mundo é o da expulsão. O terceiro, dentro do qual ele mais viveu, foi o de “um grande movimento que ele mesmo liderou para retomar as áreas tradicionais”.
Do seu próprio território, Atanásio participou de três retomadas. “E sofreu três tentativas de massacre, inclusive apanhando muito dos agressores do agronegócio local”, lembra Hampel. No último despejo, em 2009, ele tinha 87 anos e, junto com outros indígenas, foi brutalmente espancado. Desde então, ele vivia na aldeia Limão Verde, em Amambai (MS).
Retomada da terra de fora e de dentro
O Mbarakay faz parte da Terra Indígena (TI) Iguatemipeguá I, cuja identificação foi aprovada pela Funai em 2013, mas está, desde então, com o processo demarcatório parado. A atuação do xamã pela recuperação territorial, no entanto, transcendeu em muito esta onde ele nasceu. “Ele circulava por todos os territórios Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul para que pudessem falar sobre estratégias”, descreve Izaque.
“Seu Ataná entendia que a retomada não era uma retomada de terra, era uma retomada da cultura, de espiritualidade, da capacidade de reconexão com a vida em mais alto e amplo grau, sem a interferência de Estado, sem pressões de fora. Inclusive das igrejas evangélicas, que muito o perseguiram”, afirma Hampel.
A transgenia, como um processo que mata a possibilidade de a semente gerar, era citada recorrentemente pelo rezador, conta o coordenador do Cimi, como uma metáfora da contínua colonização das populações indígenas: “A tentativa de transformar os Kaiowá em um corpo sem a sua força espiritual”.
Não à toa, Atanásio defendia que, assim que uma área tradicional é reocupada, é preciso erguer uma casa de reza, convocar os rezadores para perto e que estes escolham, entre os jovens, os seus aprendizes.
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“Então ele entendeu, muito cedo, que o planejamento do Estado era muito mais do que simplesmente retirar a terra. Era, também, retirar a terra de dentro”, expõe Matias: “Para que perdessem isso de mais revolucionário, o ímpeto de entender a terra como sagrada e assim, trazer junto à luta a força dos encantados e dos ancestrais”. Não perderam.
As sementes
O velório do xamã centenário aconteceu na última terça (18) e quarta-feira (19) e reuniu não apenas seus pares, mas também dezenas de jovens. Muitos dos quais yvyraijá, em processo formativo do xamanismo. Foi o que mais chamou a atenção de Hampel durante a despedida do mestre.
“Pessoas de 13, 14, 15 anos, mesmo bombardeadas por tantas disputas ideológicas e de narrativas do mundo de hoje, que tinham o nítido entendimento da importância de Atanásio e foram fazer a sua deferência”, descreve.
Izaque, que conversou com o Brasil de Fato pouco depois de sair do velório, ao narrar o impacto desta partida para o povo Kaiowá e Guarani, comentou como estão circulando áudios por whatsapp em que lideranças se referem a Atanásio como um jekoha: um pilar de seu povo. “Ele foi um grande orientador da vida”, define.
No próprio velório, rezadores antigos já conversavam sobre a redivisão das tarefas do mundo espiritual. Está sendo organizada, por exemplo, a vinda de um xamã do Paraguai com quem Atanásio tinha relação próxima, para pensar o cuidado com ritos dos quais ele era guardião. Em nota, o Aty Guasu salientou que “seguirá firme nas lutas” pelas quais Atanásio Teixeira dedicou seu século de vida.
No minidocumentário Mbaraká, a palavra que age, de Edgar Cunha, Gianni Puzzo e Spensy Pimentel, Atanásio descreve como vê a retomada dos indígenas de suas “antigas terras perfeitas”.
“Haverá dança e caminhada ritual até o lugar onde vai renascer a nossa terra. Ali estaremos juntos novamente. Vamos dançar e serão arrumadas as casas. Depois que esfriarmos, os nhanderus vão trazer de volta os nossos animais de caça”, profetiza. “Haverá o canto longo para celebrar novamente a colheita do milho verde. Vão ser abençoados os canaviais, as mandiocas”, diz, ao finalizar: “Vai ter tudo... Lá vai ter tudo de novo”.
Edição: Vivian Virissimo