Em um vídeo obtido com exclusividade pela Amazônia Real, homens aparecem manuseando mangueiras de alta pressão em direção a um barranco de terra. Com a força da água, o barro cede gradualmente. Nas imagens, dois deles avaliam o que cai do lugar e recolhem pedaços, em uma espécie de pré-seleção. O local chama a atenção pela estrutura montada no seio da floresta, com refletores e bombas para manter o garimpo operando no turno da noite, como narra a pessoa que fez a gravação. “Oito da noite, aí menino, mandando ferrado”, diz ela, enquanto os que estão sendo filmados avançam mata adentro. O vídeo foi gravado há duas semanas, na região do Xitei, na Terra Indígena Yanomami (TIY).
Logo após o início da operação emergencial na TIY, os garimpeiros passaram a buscar formas de se manter em atividade. Muitos fugiram para a Venezuela, país fronteiriço. Outros apenas têm se deslocado para áreas mais remotas, porém com o cuidado de fugir da fiscalização. O garimpo ilegal no período da noite tem aumentado. Lideranças de comunidades locais, os tuxauas, têm denunciado o problema. Eles reclamam do barulho de máquinas e da movimentação de homens trabalhando no horário de descanso dos povos da floresta.
“É um esquema dos garimpeiros que já perderam muito dos seus maquinários, aviões e combustível. Então eles criaram estratégias para fazer um trabalho de busca de ouro, exploração de ouro à noite”, explica Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY). “A gente denuncia e a gente sabe que os garimpeiros são muito espertos. Durante o dia é complicado para eles por causa do monitoramento do Ibama e da Polícia Federal [PF].”
A liderança afirma que algumas regiões da TIY continuam sem receber equipes de fiscalização. É isso que permite que o garimpo siga em operação nas regiões do Baixo Catrimani, Missão Catrimani e Alto Catrimani 1. “Nenhuma operação foi realizada lá, nem [no] Apiaú e regiões como Parima 1 e Parima 2”, denuncia Dário Kopenawa, filho do líder e xamã Davi Kopenawa.
“É muito difícil, há 60 homens fazendo operações”, diz o vice-presidente da HAY. Já os invasores são milhares. E, em Roraima, há apenas duas bases de fiscalização fluvial, uma no rio Mucajaí e outra no rio Uraricoera, para vigiar uma área de 9.664.975 hectares, duas vezes maior que a Suíça.
Duas bases de fiscalização
O superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Roraima, Diego Bueno, informou que o conteúdo do vídeo será investigado e admitiu que, de fato, em algumas áreas os garimpeiros continuam por terem “resiliência” e insistirem nas atividades ilegais.
“Nos últimos 60 dias, os alertas [análise espacial e geoprocessamento] diminuíram. Não posso dizer quantas pessoas estão saindo, mas eu garanto que o garimpo está diminuindo, porque as cicatrizes [alertas] dessas que você está vendo aí [se referindo ao vídeo] depois vão aparecer no satélite. Esse buraco que estão fazendo vai aparecer no satélite”, explica Bueno.
Para Dário Kopenawa, “tem que continuar a fazer operações, continuar sobrevoando, continuar monitorando e vigiar o garimpo ilegal”. Na estimativa dele, serão necessários 10 anos para recuperar os danos ambientais e acabar completamente com o garimpo ilegal que explodiu nos últimos quatro anos.
Apesar da indignação, Dário reconhece a dificuldade de corrigir em apenas dois meses o estrago feito nos últimos quatro anos, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “Durante 100 dias, ele [Lula] conseguiu fazer bastante ações que prometeu, mas não é fácil para ele porque a situação é muito grande.”
De acordo com Dário Kopenawa, além de políticos, traficantes de drogas ilícitas continuam fortalecendo o garimpo ilegal na TIY. “Os financiadores, pessoas de tráfico de drogas, estão financiando com helicóptero, com avião, combustível, transporte”, afirma.
Logo que assumiu a Presidência, Lula esteve em Roraima com uma comitiva interministerial. Durante a visita, realizada no dia 21 de janeiro, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou a abertura de inquérito policial para apurar o crime de genocídio. O Ministério e a PF não responderam à reportagem sobre a instauração do inquérito ou o andamento das investigações.
“Falta muita coisa”
Em café da manhã com jornalistas, no dia 6 de abril, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) admitiu a dificuldade que o governo federal enfrenta na TIY. “Você sabe o trabalho que a gente está tendo para esvaziar aquele garimpo, já tivemos 80% de sucesso, mas ainda falta muita coisa”, respondeu o presidente na ocasião.
O relatório enviado à Amazônia Real pelo Ibama mostra que, desde o início da operação emergencial, foram aplicados 52 autos de infração, que totalizam 28,7 milhões de reais, e apreendidas sete aeronaves; 20,7 mil litros de combustível; 3 tratores; 124 motores estacionários; 52 geradores de energia; 20,4 toneladas de cassiterita (equivalente a 2 milhões de reais); 23 barcos; 4,5 quilos de mercúrio; e 466 gramas de ouro, entre outros materiais e equipamentos empregados pelos criminosos na garimpagem.
Só em uma operação conjunta entre o Ibama e a Polícia Rodoviária Federal (PRF), realizada entre 23 de março e 4 de abril, nos municípios de Iracema, Mucajaí e Alto Alegre, além de áreas rurais como Campos Novos, foram fechadas 16 pistas de pouso e decolagem. O saldo foi a apreensão de 14,3 toneladas de cassiterita, 8.720 litros de querosene de aviação, armas de fogo e munições, uma motocicleta, um trator, 5 mil reais em espécie e 871 quilos de alimentos. Foram apreendidos ainda 1,5 milhão de litros de combustível de aviação e aplicação de 12,6 milhões de reais em multas a quatro empresas que não tiveram os nomes divulgados.
Na noite de sábado (8), o governo Lula divulgou um balanço sobre os primeiros 100 dias em cada Estado. Sobre Roraima, as iniciativas emergenciais totalizaram 198 ações e um investimento de 899 milhões de reais. A mobilização priorizou as áreas de saúde, segurança pública, assistência social, logística militar para remoção e tratamento de pacientes e atividades conectadas ao meio ambiente, às comunicações e aos direitos humanos.
“Na área de saúde, quase 250 mil unidades de medicamentos para malária e mais de 67,5 mil testes rápidos para a doença foram administrados. Kits portáteis de internet e sistemas de energia solar foram instalados para facilitar a comunicação e o acesso às áreas mais isoladas”, diz o texto. Foram distribuídas mais de 11 mil cestas básicas.
Espaço aéreo
Às 21 horas de 6 de abril, o tráfego de aeronaves sobre a TIY voltou a ser proibido, como em janeiro, em corredores aéreos criados pela Força Aérea Brasileira (FAB). As aeronaves que descumprirem os requisitos e regras estabelecidas estarão sujeitas às medidas de segurança. O governo havia liberado o espaço aéreo para a saída espontânea e pacífica de garimpeiros em áreas onde o acesso só é possível de avião.
Logo nas primeiras horas após a mudança, as Forças Armadas, o Ibama e a PRF destruíram uma aeronave em solo. Dois homens foram presos em uma pista clandestina de garimpo ilegal, à sudeste de Surucucu, perto da fronteira com a Venezuela.
O espaço aéreo é um elemento vital dentro da TIY, mas nos últimos anos ele foi sequestrado pelos mineradores e garimpeiros, conforme denunciou a série de reportagens Ouro de Sangue Yanomami, publicada em parceria com a Repórter Brasil. A consequência é que, quem mais precisava, ficou sem poder recorrer a essa logística.
Várias entidades e organizações denunciaram a falta de transporte aéreo para indígenas em estado de saúde grave. O Ministério Público Federal havia feito recomendações ao governo Bolsonaro para que os órgãos responsáveis reestruturassem o atendimento aos povos TIY. “Apesar de ter recebido mais de 190 milhões de reais para assistência à saúde nos últimos dois anos, o território indígena, localizado nos estados do Amazonas e Roraima, registrou piora acelerada dos indicadores de saúde”, diz trecho do documento de 2021.
A recomendação exigia que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei-Y) apresentassem, em até 90 dias, um plano de reestruturação da assistência básica de saúde. Os gestores deveriam, entre outras ações, contratar empresa de transporte aéreo com horas de voo suficientes para atender todo o território e criar um subdistrito para as comunidades do Amazonas.
O Comando Operacional Conjunto Amazônia (Cmdo Op Cj Amz) passou a fazer o transporte aéreo de indígenas e entregar os alimentos arrecadados. Completados 60 dias de operação (3 abril), as Forças Armadas divulgaram a realização de mais de 2.500 horas de voo – parte desse total para levar indígenas para Boa Vista e transportar os recuperados de volta às comunidades.
Polo base de Surucucu
Durante visita interministerial dos Ministérios dos Povos Originários, da Defesa e dos Direitos Humanos, em 8 de fevereiro, a ministra Sônia Guajajara prometeu reformar a pista de pouso da região de Surucucu em até 20 dias. O que houve, conforme comunicado oficial da FAB, foi um reparo emergencial, executado pelo 6º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército. A pista é responsabilidade da Funai, órgão ligado ao Ministério dos Povos Originários, que respondeu os questionamentos da reportagem enviando um balanço elaborado em 20 de março. Os dados estão desatualizados.
Na ocasião, Sônia Guajajara se comprometeu a reformar o Polo Base de Saúde de Surucucu. A ação foi cumprida parcialmente. Uma fonte que trabalha no Dsei-Y e esteve no último dia 17 de março na TIY informou que, ao sair da região, percebeu homens fazendo o alicerce do que será, segundo ele, uma nova unidade de saúde. A previsão para finalização é no dia 24 de abril, conforme a Secretaria de Comunicação do governo federal.
Desde a primeira visita de Lula a Roraima, no dia 21 de janeiro, médicos e outros trabalhadores da saúde foram enviados ao território indígena. “Fica mais fácil a gente transportar dez médicos do que transportar duzentos índios que estão aqui”, disse Lula, na época. O Ministério da Saúde divulgou, no dia 15 de março, o envio de 14 médicos para a TIY. Posteriormente, mais 5 profissionais foram enviados.
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, fez a mesma promessa que Sônia Guajajara. Ela anunciou, durante visita a Roraima no dia 2 de março, um plano para reformar as estruturas de atendimento à saúde indígena, como os pólos bases e a Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai). Segundo ela, as melhorias iriam ocorrer em tempo recorde. Essas benfeitorias ajudariam no trabalho diário dos profissionais. O ministério não respondeu os questionamentos da Amazônia Real. Fontes ouvidas pela reportagem disseram que a Casai não passou, nos últimos dias, por nenhuma obra.
Há um descompasso entre as promessas feitas por este governo e as ações práticas na TIY. Um Comitê de Coordenação Nacional para enfrentar a crise Yanomami foi criado para discutir e adotar medidas entre os Poderes. O prazo de atuação inicial foi de 90 dias, podendo ser prorrogado.
Na visita que fez a Roraima em janeiro, Lula viu de perto a calamidade na saúde dos Yanomami, acometidos por doenças como desnutrição, diarreia, pneumonia, malária, Covid-19, entre outras. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (de 2019 a 2022), 570 crianças morreram por doenças evitáveis como desnutrição e fome, segundo o Ministério da Saúde (MS).
Conforme o relatório do MS, entre 2018 e 2022, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) registrou 1.285 óbitos por diversas doenças, entre elas, pneumonia, malária, Covid-19, na TI Yanomami. Bolsonaro é acusado de omissão e negligência na saúde indígena e pode responder por crime de genocídio.
O MS apontou que no ano de 2020 foi registrado o maior número de mortes: 332 óbitos. Em 2021, foram 209 mortes notificadas pelo órgão. O relatório informa ainda que nos últimos quatro anos o número de casos de malária passou de 9.928 em 2018 para 20.393. Um aumento de mais de 105%.
Em 2022 foram notificados 14.861 casos de malária. O número caiu para 3.968 em 2023. A estatística é do Informe Semanal 8 – Atuação dos Grupos de Trabalho (GTs) -, do COE/SUS Yanomami, além do Sistema de Informação da Vigilância em Epidemiologia da Malária (Sivep-Malária). Os dados foram extraídos no dia 05/04/2023, referentes ao período de 01/01/2023 a 01/04/2023 . No território estão trabalhando 328 profissionais, segundo o boletim.
No entanto, apesar de todos os esforços, crianças, jovens e adultos, um total de 61 pessoas, morreram este ano por diversas doenças na terra indígena Yanomami e nos hospitais de Boa Vista, segundo dados do MS, sendo 29 crianças de 0 a 4 anos de idade.
A situação no Hospital de Campanha (Hcamp), montado três dias após a visita presidencial, é estável. Se no início eram cerca de 100 atendimentos diários, hoje não passam de 5. “O hospital deu todo um suporte à Casai com a Força Nacional do SUS, o Médico sem Fronteiras. Isso foi muito positivo, porque nós conseguimos, através dessa força-tarefa, melhorar a qualidade da saúde, a nutrição dessas crianças, tratando de forma humanitária”, informou o comandante do Hcamp, major médico Aluízio Paiva Gonçalves.
De acordo com o Ministério da Saúde, vivem na terra Yanomami 31.007 pessoas, sendo 85% indígenas, divididos entre os estados do Amazonas e Roraima. Desse total, 60,7% da população é abaixo de 20 anos de idade. No território há 37 polos base e 376 comunidades.
Ainda não há um balanço preciso e exato do número de garimpeiros que estão presentes na TIY, muito menos sobre a quantidade que saiu.