Quando deixar oficialmente a cadeira que ocupou no Supremo Tribunal Federal (STF) ao longo dos últimos 17 anos, nesta terça-feira (11), o ministro Ricardo Lewandowski terá deixado para trás uma trajetória que lhe rendeu o título de magistrado associado ao garantismo penal, expressão utilizada para designar práticas jurídicas que consideram os direitos e liberdades individuais diante do risco de eventuais excessos do poder punitivo do Estado.
Por conta dessa característica, em alguns momentos o ministro ganhou simpatia de segmentos mais ligados ao campo progressista e, ao mesmo tempo, colheu um conjunto de críticas vindas de setores mais punitivistas ao longo de sua jornada na Corte, muitas destas últimas em capítulos emblemáticos da história recente do país.
Foi o que ocorreu, por exemplo, quando o Supremo julgou processos ligados à ação penal 470, o famoso escândalo do mensalão, apreciado pelos ministros entre 2012 e 2014. Na época, Lewandowski atuou como revisor do caso e protagonizou embates públicos com o relator, o então ministro Joaquim Barbosa, por defender medidas que freavam a lógica punitivista. Ele absolveu o ex-presidente do PT José Genoino e o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, por exemplo, afirmando não haver provas suficientes para a condenação, embora tenha sido vencido pelo plenário.
Por conta desse tipo de decisão, foi alvo de protestos diversas vezes em espaços públicos, a exemplo do que ocorreu em outubro de 2012, em São Paulo, quando saiu de casa para votar no pleito daquele ano. O conteúdo das críticas esteve geralmente associado a uma suposta tolerância diante da corrupção do sistema político no país. A acusação, no entanto, é ponderada por uma série de analistas, como é o caso da pesquisadora e cientista política Grazielle Albuquerque, que estuda o comportamento do sistema de Justiça no país.
“Apesar de ele ter uma imagem pró-PT ou pró-Executivo quando o PT estava à frente do Executivo, pessoalmente acho que ele, na maioria dos casos, teve uma postura mais equilibrada”, diz, ao rememorar a conduta no magistrado em situações como a que liberou entrevista de Lula (PT) à imprensa em 2018, quando ele estava preso na Superintendência da Polícia Federal (PF), em Curitiba (PR). A decisão foi de encontro ao coro dos que clamavam pela censura dos jornais e dos passos do petista. O comportamento nos processos do mensalão também é mencionado pela pesquisadora.
“Quando você tinha uma dicotomia entre o pensamento do Supremo e a posição do Executivo, isso parecia soar mais pró-PT, que foi a imagem que fizeram colar ao Lewandowski, mas, na minha avaliação, não foi exatamente assim. Há números que inclusive mostram isso. Acho que o Lewandoski é um bom exemplo de alguém que tem uma imagem para além da atuação. Ele foi mais equilibrado do que se pensa na divisão de votos”, acrescenta a cientista política.
Levantamento feito pelo portal Conjur em 2014 parece reforçar a observação da especialista. As estatísticas mostram que não necessariamente esse comportamento do ministro significou flerte com algum tipo de condescendência diante da corrupção. Ao traçar um paralelo entre a postura do revisor e a do relator do mensalão, por exemplo, a plataforma chamou a atenção para o fato de o perfil mais condenatório de Barbosa e sua influência sobre o plenário naquele momento histórico não terem se sobressaído em relação à postura de Lewandowski.
Foi este último que predominou: nos julgamentos ligados à ação penal 470, o ministro que agora se despede do STF foi acompanhado pelos colegas em 90 ocasiões, enquanto Barbosa contou com a concordância dos colegas em 82. O relator defendeu a absolvição em apenas 16% das vezes, ou seja, condenou os acusados em 84% das votações, enquanto o ministro revisor propôs a penalização dos réus em 37% dos casos.
O STF optou majoritariamente pela condenação em 57% dos casos, o que deixou a atuação de Lewandowski mais próxima e influente em relação ao restante do grupo do que a de Barbosa. “Isso ajuda a ilustrar o que eu disse. O Lewandowski sempre foi uma espécie de fiel da balança”, reforça Grazielle.
Outros
Além da atuação no mensalão, a trajetória do magistrado teve teor histórico em outros momentos. Ele presidiu o STF e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entre 2014 e 2016 e, por conta disso, conduziu a mesa do julgamento político da então presidenta da República Dilma Rousseff (PT) no Senado, em 2016. Mas sua jornada jurídica chamou ainda mais atenção em outros momentos, especialmente naqueles em que sua posição foi peça central na adoção de políticas judiciárias inovadoras.
A título de exemplo, foi dele o voto que, em 2018, incentivou a Segunda Turma do tribunal a decidir pela substituição da prisão preventiva por domiciliar no caso de gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência. Na ocasião, o ministro considerou os problemas estruturais das prisões brasileiras, problematizou o que lembrou como sendo a “cultura do encarceramento” e destacou a vulnerabilidade especialmente das mulheres mais pobres. Também sublinhou que o contexto do sistema prisional e suas violações geram efeitos colaterais sensíveis como a separação precoce entre mães e filhos.
"É chegada a hora de agirmos com coragem e darmos uma abrangência maior a esse histórico instrumento que é o habeas corpus", disse ao votar, em uma de suas diferentes decisões tidas como vanguardistas e contrastando com o clamor punitivista que mobiliza setores médios da sociedade.
Outro destaque da trajetória de Lewandowski diz respeito à política de cotas raciais. Foi sob sua gerência que o CNJ instituiu, por meio da Resolução 203/2015, cota racial de 20% no preenchimento das vagas para juízes em concursos. Apesar do percentual ainda baixo, números mostram que a medida provocou mudanças já de curto prazo: entre 2013 e 2020, a presença de negras e negros na magistratura brasileira saltou de 12% para 21%, segundo dados oficiais da entidade.
Lewandowski também foi inovador quando, novamente em sua gestão à frente do CNJ, foi responsável pela implantação das chamadas “audiências de custódia” no sistema de Justiça, prática relacionada à garantia de direitos fundamentais de pessoas presas em flagrante. Pela regra, todo cidadão nessa situação deve ter o direito de ser ouvido por um juiz no prazo-limite de 24 horas, o que reduz a chance de prejuízos e arbitrariedades ao longo do processo. A adoção parte de concepções previstas em convenções internacionais de direitos humanos já chanceladas pelo Estado brasileiro.
Alinhamento
Por conta dessas e de outras medidas, a trajetória de Lewandowski foi, em diferentes momentos, associada a uma lógica mais progressista de ver o sistema de Justiça e mais especificamente o sistema penal. Nesse sentido, o pesquisador e professor Daniel Vila-Nova, do curso de Direito da Universidade de Brasília (UnB), observa que o ministro não esteve entre aqueles que buscaram em sua atuação no STF um desalinhamento com o campo do chefe do Executivo que o indicou. O magistrado chegou à Corte em 2006, após ser escolhido pelo presidente Lula (PT), que vivia ainda sua primeira gestão na presidência da República.
“A gente poderia dizer que, das indicações feitas pelos governos do PT, talvez o ministro que tenha se mantido mais fiel à indicação presidencial tenha sido o Lewandowski. Digo isso sem qualquer juízo de valor. Isso é um fator interessante”, afirma.
Apesar disso, Vila-Nova pondera que o ministro não teria tido o papel central que muitos lhe atribuem no processo de anulação das condenações de Lula, caso que terminou com um placar de oito votos a três no STF, em abril de 2021. Na ocasião, o relator foi o ministro Edson Fachin e Lewandowski fez parte do grupo majoritário do julgamento, que entendeu que a 13ª Vara Federal de Curitiba não tinha competência para julgar o caso de Lula na Lava Jato.
Outra decisão emblemática do Supremo relacionada ao petista envolveu o julgamento que tratou da constitucionalidade da prisão após segunda instância, posição que o Supremo reviu no final de 2019, ao decidir que o cumprimento da pena só pode ter início após o esgotamento de todos os recursos. Naquela ocasião, mudaram de posicionamento os ministros Rosa Weber, Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Este último deu o voto de desempate por ser o presidente da Corte.
“Por esse motivo, eu entendo que ali houve mais uma questão conjuntural do que um papel central do Lewandowski, porque não houve mudança do voto dele ao longo do tempo, nem com relação ao tema da competência da 13ª Vara”, analisa Vila-Nova, ao mencionar que a mudança de voto de alguns magistrados teve como pano de fundo o novo contexto do país naquela ocasião, com as denúncias da Vaza Jato e outros fatos do momento.
“Então, você olha pra trajetória do ministro Lewandowski toda no STF e vê que ninguém pode dizer que se sentiu traído ou surpreso com relação aos entendimentos dele. Sequer é o estilo dele. Ele contribuiu e muito, inclusive, para a própria previsibilidade e estabilidade institucional do tribunal”, emenda o professor da UnB.
Edição: Glauco Faria