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Homem denuncia comportamentos racistas de agentes penitenciários ao visitar o irmão preso

Vítima perdeu o emprego após abalos emocionais em consequência do episódio

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Militante pelos direitos das pessoas encarceradas, Olegário já foi convidado a falar sobre o tema na Assembleia Legislativa de São Paulo - Reprodução/Instagram

No dia 30 de janeiro de 2021, o líder comunitário Rodrigo Olegário foi até o Centro de Detenção Provisória do Belém II, na região leste de São Paulo, para visitar seu irmão, Augusto, que tinha sido transferido após entrar em regime semiaberto. Chegando ao local, ele conta que ouviu dos agentes penitenciários que seu cabelo estava “fora do padrão” e por isso ele não seria autorizado a entrar.

O diretor de disciplina da penitenciária foi chamado, revistou o cabelo de Rodrigo sem sua autorização e disse que se ele fosse novamente com “aquele cabelo” em um plantão seu, não garantiria sua entrada, relatou. Segundo as informações para visitantes que constam no site da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo, quem for fazer uma visita não pode ter “apliques capilares ou quaisquer outros meios que impossibilitem ou dificultem a inspeção mecânica e visual de segurança”, o que não era o caso de Rodrigo.

A inspiração para o cabelo, um penteado com gel, veio de um amigo músico. “É uma questão de identidade. Eu vi uma pessoa negra usando e achei bonito, então quis fazer em mim”, diz. O penteado foi aprimorado e Rodrigo diz que passou a ser reconhecido sempre que andava pelas ruas do bairro, o que resultou no batismo do cabelo de “Chama na chave”. “Todo mundo passava e falava ‘esse cabelo ficou chavoso’, então apelidei junto com meu cabeleireiro”, diz.

Ele conta que enquanto tentava argumentar e defender sua entrada – o cabelo nunca havia sido um problema durante os cinco anos em que visitou o irmão no regime fechado –, os agentes comentavam e faziam piadas sobre o seu cabelo. O diretor de disciplina da penitenciária teria revirado seu cabelo enquanto empunhava uma arma calibre 12. Enquanto fazia isso, o agente teria dito: “você não consegue deixar esse cabelo normal, não?” e “você não pode lavar o seu cabelo pra ele ficar normal?”. Os relatos de Rodrigo estão no processo que ele está movendo contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, ao qual a Agência Pública teve acesso, e que cobra ações indenizatórias devido ao racismo sofrido por ele.


Líder comunitário afirmou ter passado por revista vexatória / Acervo pessoal

Após ter a entrada barrada, Rodrigo foi encaminhado para o setor de revista, onde conta que passou por mais humilhações. Depois de passar pelo body scanner, equipamento que permite observar o que a pessoa carrega dentro e fora do corpo, foi determinado que ele sentasse em um banquinho detector de metais e “abrisse bem as pernas”, para ver se ele não teria algo introduzido no ânus. A ação configura revista vexatória e há procedimento em curso no STF que analisa a proibição da prática.

Rodrigo conta que, durante todo o episódio, os funcionários da penitenciária estavam com dificuldades em encontrar seus documentos no sistema, procedimento necessário para fazer a visita. Percebendo uma falha de comunicação, pediu para buscá-los – por segurança, ele tinha também os documentos físicos em sua bolsa, guardada a senha com um funcionário na parte de fora da penitenciária. Ao voltar, relata que foi submetido novamente ao body scanner e à revista vexatória no banquinho.

Uma testemunha citada no processo que estava atrás de Rodrigo na fila e que aguardava para visitar o pai confirmou que viu os agentes comentando e fazendo piadas sobre o cabelo dele. Nessa hora o rapaz, que também é negro, disse ter abaixado a cabeça por medo de algo parecido acontecer com ele, mas seu processo para a visita seguiu normalmente.

Antes de entrar em liberdade, o irmão de Rodrigo foi transferido para outros três presídios localizados nas cidades de Potim, Presidente Prudente e Sorocaba, respectivamente. Depois de ter sofrido preconceito no Belém II, Rodrigo afirmou à Pública que isso se repetiu nos presídios de Presidente Prudente e Sorocaba. No segundo ele conta ter ouvido de um funcionário que “seu cabelo está fora do padrão, se entrar alguém aqui vão me questionar.”

“Fiquei sem rumo”

Na época, Rodrigo trabalhava como coordenador da Casa de Cultura da Brasilândia, bairro da Zona Norte de São Paulo, onde é morador e líder comunitário. O episódio o levou a buscar acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Ele também precisou ser afastado do seu trabalho. “Fiquei sem rumo, por estar passando por esse episódio de racismo. Me complicou muito com a questão emocional e com a minha autoestima. Faço acompanhamento psicológico até hoje”, conta.

Mesmo com os atestados provando que o afastamento era recomendação médica, Rodrigo, que também precisou fazer uso de medicamentos, acabou sendo exonerado do cargo de coordenador na Casa de Cultura da Brasilândia, local em que trabalhava há três anos.

Ele diz que tudo o que passou o fez refletir sobre o racismo. “Você liga a TV e todo dia vê um dos nossos sendo maltratado pelas forças de segurança, todo dia um episódio desse e se pergunta ‘pra onde que a gente vai? Por que esse ódio contra a gente?’. Hoje eu estou me preparando nessa situação, de criar forças das minhas dores”.

No processo que move contra o estado, Rodrigo cobra indenização pelo racismo sofrido, por danos morais, por danos existenciais e por danos materiais. A ação leva em consideração a humilhação pública que ele passou, a violação aos seus direitos de personalidade e a perda da sua renda fixa, causada pela exoneração do cargo que ocupava na Casa de Cultura.

Em entrevista para a Pública, Vanessa Alves, Coordenadora do Núcleo de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria de SP, diz que do ponto de vista jurídico, o Estado tem responsabilidade objetiva pelo o que seus agentes fazem, e por isso o processo não foi individualizado.

“É uma forma de agir das instituições, que desconsidera a questão da raça, desconsidera o quanto o cabelo é representativo e importante para a população negra e, por não considerar essas questões, praticam o racismo. É uma tentativa de não individualizar essa conduta, mas considerar que faz parte do modo de funcionamento da instituição, do Estado, que leva a prática de conduta racista e de violação de direitos”, diz.

No processo, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) afirma que nenhum agente penitenciário está autorizado a portar armas no interior da unidade prisional e que todos os visitantes são submetidos ao detector de metais e, se necessário, ao body scanner. São citados dois funcionários que enfatizam que a demora para a liberação da visita teve relação com a falta de documentação e a dúvida se Rodrigo teria ou não aplique capilar, mas que não houve nenhum tipo de “toque” no cabelo.

A PGE afirma que ele não estava autorizado a visitar seu irmão, mas sim a fazer o envio dos documentos pelos Correios. Rodrigo contesta essa versão e diz que ligou para a penitenciária, que confirmou que ele poderia ir naquele fim de semana. A Procuradoria diz ainda que “com relação aos danos morais, não há que se falar em racismo estrutural ou discriminação dos agentes penitenciários, sendo certo que não houve ‘dano existencial’”.

Mais de 2 anos do ocorrido, o processo segue em tramitação para saber se o Estado será responsabilizado.