"A terra, para nós, é a nossa mãe: é quem nos cuida, nos alimenta. É com ela que a gente garante as nossas futuras gerações", diz Puyr Tembé, liderança do povo Tenentehara, ao explicar porque considera as mulheres indígenas tão resistentes às negociações que envolvem seus territórios. "Mãe não se negocia. Não se vende. Mãe se cuida."
Neste mês de março, completa dois anos a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), organização presente em todos os biomas do país e de cuja criação Puyr participou. Foi fundada em plena pandemia de covid-19 e veio a público durante a II Marcha das Mulheres Indígenas, que aconteceu em 2021, em Brasília. Para a próxima edição da manifestação, prevista para setembro deste ano, a expectativa é reunir 10 mil mulheres indígenas.
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Por um lado, a articulação carrega na pouca idade um tanto de algo novo que Puyr percebe na atuação das mulheres indígenas nos últimos anos, como o uso da tecnologia para a comunicação e a ocupação de espaços institucionais.
Por outro, como o próprio nome faz lembrar, a organização, segundo ela, busca dar continuidade às lutas das que vieram antes. "A gente nasce com esse tempero aí, do passado, que está hoje no presente e que nos faz ver o futuro", resume Puyr, que também é uma das fundadoras da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa).
Anunciada pelo governador Helder Barbalho (MDB) como titular da recém criada Secretaria de Estado dos Povos Originários do Pará, Puyr Tembé nasceu na aldeia São Pedro. Foi lá que, antes de sair em 2010 para estudar direito, cresceu observando a atuação de mulheres como a cacica Verônica Tembé, já falecida, e a hoje anciã Brasilícia Tembé.
As duas indígenas, entre tantas que a inspiram, foram importantes na luta que culminou na homologação, em 1993, do território que abarca a aldeia: a Terra Indígena (TI) Alto Rio Guamá. Ali, vivem os povos Tembé - ou Tenetehara, como se autodenominam -, Guajá e Ka’apor.
Apesar de demarcada, a TI sofre invasão constante de madeireiros. Conforme conta Puyr, colonos não indígenas são estimulados a se estabelecer dentro do território pelas prefeituras dos municípios que o rodeiam.
Sobre esses temas e a energia que a faz "chegar, estar e seguir", Puyr Tembé conversou com o Brasil de Fato. Confira:
Brasil de Fato: Você é uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. O que é e como surgiu a ANMIGA?
Puyr Tembé: É uma articulação que envolve mulheres indígenas de todos os biomas do Brasil. Olhando para mulheres que nos antecederam, decidimos nos juntar para dar visibilidade às nossas vozes e mostrar a potência das que resistem e lutam por nossos direitos coletivos.
A gente busca se juntar a mulheres que querem ocupar espaços, entre eles o da representação política. Por isso, a ANMIGA teve, no ano passado, a Bancada do Cocar como um dos seus projetos. Que deu super certo, abriu portas não apenas no Legislativo, mas também no Executivo, criando oportunidades também em outras instâncias nos estados também. Também trabalhamos para fortalecer mulheres dentro das comunidades, ocupando espaços em organizações indígenas.
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Nestas últimas cinco décadas, muitas mulheres estão conseguindo mostrar seus rostos. E nos últimos anos, com a ajuda da tecnologia, isso tem sido ainda mais forte.
Foi durante o Acampamento Terra Livre (ATL) que a articulação surgiu?
Sim. Fruto de diálogo de um grupo menor de mulheres, mas ela vem nascer mesmo na Primeira Marcha de Mulheres Indígenas. E se concretiza na Segunda Marcha. A gente nasce com esse tempero aí, do passado, que está hoje no presente e que nos faz ver o futuro.
Como que, à medida que foi crescendo na TI Alto Rio Guamá, você percebeu que as mulheres do povo Tembé se organizam ou se engajam politicamente?
Eu me inspiro muito em uma de nossas anciãs, que hoje não está mais conosco, mas que foi fundamental na defesa do território, na manutenção e persistência da nossa cultura e língua. É a cacica, que a gente chamava de capitoa, Verônica Tembé. Outra é a Brasilícia Tembé, que está viva. É uma senhora fantástica, mãe e avó de mulheres que são lideranças também.
E claro, tem outras mulheres, tenho uma tia que, com seu jeito de ser, é calada, mas tem a sua liderança. No fundo, ela criou filhos para liderarem. Que é a tia Maria Paulina. Tem a tia Francisca também.
Então temos vários tipos de mulheres. Umas são mais de falar, se expor. Outras fazem esse trabalho dentro da sua própria casa. Esse poder de liderança, de conduzir. Me inspiro muito nisso. E acho que essa energia me faz chegar, me faz estar e me faz seguir todos os dias, sabe?
Na minha geração, eu tive três filhas. Que me deram duas netas e dois netos. É por essas netas que eu quero ver mulheres libertas, com força para lutar pela sua existência. E que elas tenham o direito de estar onde quer que elas queiram estar. Baseadas na luta do povo Tenetehara.
Somos um povo com 400 anos de contato. E temos muita luta diante de vários municípios que nos cercam, de invasões. Resistimos todos esses anos para sermos quem somos, os Tenetehara. É esse ensinamento que transmito para minhas filhas. Vocês podem ser o que quiserem, desde que não esqueçam quem vocês são. Tenetehara... Me emociono...
Além dos ataques mais explícitos para a apropriação dos territórios indígenas, existem meios como o arrendamento, a cooptação ou compra de apoio. Muito se diz, no entanto, que as mulheres estão na linha de frente do combate a todas essas formas do que o movimento indígena chama de "projetos de morte". Você concorda? Se sim, o que explica isso?
As indígenas mulheres têm uma ligação muito forte com o território. Porque a terra para nós é a nossa mãe: é quem nos cuida, nos alimenta. É com ela que a gente garante as nossas futuras gerações. Por isso que as mulheres são as mais resistentes em qualquer negociação que seja voltada à questão territorial. Porque mãe não se negocia. Não se vende. Mãe se cuida.
Por isso que dificilmente você vai encontrar mulheres envolvidas em processos de venda, arrendamento ou de invasão de terras. Os brancos têm heranças, lojas, fazendas, bens materiais. Para nós, a nossa herança são nossos territórios.
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E a pandemia deixou isso muito claro. Foi um processo no qual o movimento de mulheres foi muito resistente e utilizou a comunicação como instrumento. Nós tivemos que aprender. Recolhidas, a gente lutou pelas telas. Fizemos várias lives, várias celebrações, uma série de coisas que a gente não estava acostumadas a fazer.
E chegou um momento que a pandemia aliviou um pouco e as mulheres pensaram: "Nós vamos ter que ir para as ruas". Fizemos uma marcha no meio de uma pandemia. "O que não dá é ficar paradas e ver o governo nos matar", pensamos. Então fomos para a Segunda Marcha das Mulheres Indígenas, com mais de sete mil participantes de todo o Brasil.
Este ano a nossa expectativa é de conseguir colocar mais de dez mil mulheres, para que a gente possa ter ainda mais força e mostrar o Brasil que de fato queremos. Um que inclua todas, todos e todes, com a demarcação dos territórios.
Como está atualmente a situação do povo Tembé?
A Terra Indígena Alto Rio Guamá é demarcada e homologada. No entanto, enfrentamos pressões dos municípios ao redor do nosso território. E estamos em processo de desintrusão. Já houve uma decisão judicial e agora precisa ser executada pelo governo federal.
Desintrusão significa retirar os invasores, os colonos que ainda estão dentro desse território, e encontrar um lugar para realocá-los. É um processo difícil, mas necessário, o Incra precisa atuar. Os políticos envolveram colonos dentro do território, dizendo que não é terra indígena e que poderia ser invadida.
Além disso, há um problema gravíssimo que é a questão da retirada de madeira dentro da TI. Infelizmente, as ações para conter o problema dos madeireiros são temporárias e não têm sido efetivas a longo prazo. Precisamos combater essa atividade ilegal e estancá-la de vez.
Edição: Nicolau Soares