O governo Lula (PT) discute internamente a criação do Bolsa Família Indígena. A intenção não é criar um novo benefício social, mas sim flexibilizar o calendário de pagamento e derrubar outras barreiras burocráticas de acesso ao programa.
As mudanças poderão beneficiar famílias indígenas que precisam fazer viagens longas e caras para sacar as parcelas. O problema é enfrentado por comunidades distantes de centros urbanos no interior da Amazônia.
A proposta está em um ofício da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) obtido com exclusividade pelo Brasil de Fato. O documento foi encaminhado ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) para ser remetido à pasta do Desenvolvimento e Assistência Social (MDS), que coordena o Bolsa Família.
A principal medida proposta pela Funai é que o governo federal autorize para a população indígena o aumento do prazo do saque de benefícios sociais de 120 para 180 dias. Em uma segunda etapa, o órgão indigenista sugere que o período seja estendido ainda mais, para 270 dias, com o aval do Congresso.
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Outro ponto em discussão é a quebra do calendário de pagamentos, que hoje é vinculado ao Número de Identificação Social (NIS) dos beneficiários. A ideia é que o saque possa ocorrer de forma independente do dia previsto no calendário.
O Bolsa Família, criado em 2003, significou para muitas comunidades indígenas o primeiro acesso regular e continuado a um programa social. Vinte anos depois, o movimento indígena brasileiro ganhou força e agora, participando do governo Lula, planeja aperfeiçoar o benefício.
O Bolsa Família Indígena não foi anunciado publicamente pelo governo federal. Antes de oficializar a mudança das regras, a Funai aponta no ofício a necessidade de consultar os povos e organizações indígenas, conforme prevê a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Entenda por que a proposta é importante
Juci Carneiro, gestora territorial indígena do povo Macuxi que atua junto a organizações indígenas de Roraima, diz que as mudanças podem corrigir um problema enfrentado pelas famílias indígenas desde 2003, quando o Bolsa Família foi criado.
“Há comunidades que só têm acesso por via aérea, outras apenas por via fluvial. No período de estiagem, quando os rios estão baixos, fica mais difícil ainda. Então os custos são altíssimos”, explica Juci Carneiro.
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Para sacar o benefício, os indígenas precisam juntar dinheiro para pagar o combustível e a alimentação. Muitas vezes, a viagem sai mais cara do que as parcelas do Bolsa Família.
“E o parente geralmente não vai para a cidade sozinho. É um hábito cultural se deslocar com a família, então o custo aumenta ainda mais. Nem sempre o valor a ser recebido compensa o gasto que vai ter nesse deslocamento. Por isso a quebra do calendário é importante”, diz a gestora territorial indígena.
Estadia nas cidades é precária
Com o prazo estendido e a flexibilidade no calendário, o Bolsa Família Indígena pode solucionar o problema da permanência de famílias em cidades que não têm estrutura adequada para recebê-las.
Sem assistência, os indígenas não conseguem comprar alimentos ou pagar por hospedagem. Para dificultar ainda mais, é comum não haver cédulas disponíveis para saque nas agências.
“Muitas vezes falta dinheiro na sede do município. Então o parente acaba tendo que esperar dias, quando o plano dele era voltar para casa no final da tarde. E aí falta um lugar para ficar, falta assistência. Os municípios não têm um espaço para receber as pessoas”, diz a indígena Macuxi.
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É comum que mães com crianças passem até um mês nessas condições, por falta de dinheiro para retornar à aldeia. Assim, ficam expostas à violência urbana e a condições insalubres, sem acesso à água potável e alimentos adequados.
Juci Carneiro observa de perto essas e outras situações em seu município de origem, Uiramutã, no extremo norte de Roraima. Ela conta que indígenas Ingarikó fizeram um projeto de alojamento para ter onde ficar na cidade e pressionaram a prefeitura a executá-lo.
“Infelizmente o projeto não atende à necessidade. Os parentes ficam lá, mas é apenas um barracão onde não tem água, porque a água não chega. O banheiro não funciona. A estrutura é nova, mas absolutamente precária”, relata.
Proposta inclui combate a retenção de cartões por comerciantes
Outra situação que preocupa a Funai é a retenção dos cartões do Bolsa Família por comerciantes locais não indígenas. A prática é comum, principalmente quando o indígena precisa de um serviço e mercadoria com urgência, mas não pode esperar na cidade o saque do benefício.
Juci Carneiro explica que, no primeiro momento, muitos indígenas consideram que o acordo possa ser favorável, justamente por causa rigidez do calendário de pagamento. Mas com frequência eles acabam sendo enganados pelos empresários em transações desonestas, que impedem a concretização da política social.
“O parente vai até a cidade, mas ainda não está no prazo do saque, ou então o dinheiro não está disponível no banco. Então ele pega, por exemplo, um alimento ou uma peça para fazer manutenção do barco, que equivalem ao valor do benefício. E o comerciante fica com o cartão e as senhas”, descreve a gestora territorial indígena.
Para coibir a medida, a Funai apontou no ofício encaminhado ao Ministério do Desenvolvimento Social a necessidade de criar um programa chamado Comerciante Legal. A medida é considerada bem-vinda por Juci Carneiro. Ela sugere também que as compras possam ser feitas diretamente no cartão, sem necessidade de saque.
“Tem parentes que não falam português, que até sabem o que é o dinheiro, mas não sabem calcular um troco. Existe a dificuldade de compreender o funcionamento do dinheiro”, explica.
Funai sugeriu ampliação de programa sucateado por Bolsonaro
Além do Bolsa Família Indígena, a Funai sugeriu adequações ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) para contemplar as particularidades geográficas e culturais dos povos indígenas. Por meio deste programa, o governo federal compra alimentos de pequenos produtores, incluindo quilombolas e indígenas.
“O PAA já foi fundamental para as populações indígenas. Ele pode ser reerguido e obviamente adaptado aos contextos socioeconômicos de cada região. São aspectos que devem ser pensados quando o governo formular essas adaptações do Bolsa Família”, diz Mariana Inglez, bioantropóloga e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) que estuda o consumo de ultraprocessados por populações ribeirinhas na Amazônia.
No ofício, a Funai sugere a ampliação do PAA e a garantia de acesso das populações indígenas ao programa, que foi praticamente extinto na gestão Bolsonaro. O orçamento da iniciativa para 2023 foi cortado em 97%.
Segundo a pesquisadora da USP, a articulação do Bolsa Família Indígena com outros programas de combate à insegurança alimentar pode evitar tragédias como na Terra Indígena Yanomami, onde a desnutrição provoca mortes de crianças e idosos.
“É importante que políticas voltadas para as populações ribeirinhas, indígenas e quilombolas consultem sempre os representantes locais e que considerem as variações de cada grupo. A gente está falando de uma incrível variabilidade linguística e cultural. Então é importante considerar cada contexto, inclusive a realidade ambiental onde cada um desses grupos está localizado”, avaliou a bioantropóloga.
Não há menção a aumento de valor do benefício para indígenas
Há um mês, o Ministério do Desenvolvimento Social e a Caixa Econômica Federal assinaram um protocolo de intenções para discutir como atender indígenas em locais remotos. Na cerimônia, autoridades já haviam mencionado a criação de um Bolsa Família Indígena.
Na proposta, a Funai diz que o governo Lula abriu a oportunidade para reorganizar políticas públicas que, no momento da sua elaboração, não previram as especificidades dos povos originários. No documento da Funai, não há menção de aumento do valor do programa social, nem de prazo para implementação das mudanças.
A Fundação quer ainda que os municípios acompanhem de perto se as novas regras serão aplicadas aos beneficiários indígenas. É preciso, segundo o órgão indigenista, garantir que as agências da Caixa nas cidades do interior da Amazônia se qualifiquem melhor para minimizar as barreiras burocráticas de acesso ao Bolsa Família.
Edição: Rodrigo Durão Coelho