Entrevista

Reforma tributária: entenda as diferenças entre propostas, as polêmicas e os desafios

Em conversa com BdF, economista David Deccache destrincha aspectos da pauta, entre eles o chamado “imposto seletivo”

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
David Deccache é assessor econômico do PSOL na Câmara, diretor do IFFD e doutorando em Economia na UNB - Reprodução/Facebook

 

Espremida entre o jogo de forças do Congresso Nacional e os movimentos do governo Lula e dos diferentes grupos de interesse que incidem sobre os parlamentares, a reforma tributária seguirá em alta nesta e nas próximas semanas, quando o grupo de trabalho (GT) que estuda o tema na Câmara dos Deputados deverá ouvir uma série de especialistas e outros atores que orbitam em torno dos debates. Na tarde desta terça (14), por exemplo, o colegiado irá fazer um diagnóstico do sistema tributário atual, ouvindo acadêmicos, entidades e o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega.

Aproveitando os debates, o Brasil de Fato conversou com o economista David Deccache, diretor do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD), entidade ligada ao campo progressista que discute política fiscal. Atual assessor econômico da bancada do PSOL na Câmara, o especialista destrinchou o tema da reforma ao comentar diferentes pontos das discussões hoje em voga no Legislativo.

Entre outras coisas, Deccache explicou a diferença entre as Propostas de Emenda Constitucional (PECs) 45 e 110, as mais comentadas pelo GT, e abordou o tema da reforma tributária solidária, defendida pelo campo progressista. Também expôs o que poderia ser feito para se tributar o patrimônio dos mais ricos e as heranças, medida que há muito vem sendo reclamada pela sociedade civil, mas que não é adotada pelo Estado brasileiro.

Por fim, o economista também mostra como o chamado “imposto seletivo” poderia ser utilizado como mecanismo de apoio à Saúde pública e à lógica da sustentabilidade e ainda comenta as polêmicas em torno do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Com um olhar didático, Deccache desmistifica o tema da reforma tributária, tornando-o mais palatável ao entendimento do cidadão. Confira a seguir os principais trechos da conversa.  

Brasil de Fato – O governo vem trabalhando com a ideia de manter no cerne do texto que vai sair do GT o próprio conteúdo da PEC 45, que é um texto que trata mais especificamente de simplificar o sistema tributário a partir da criação de um imposto único, o Iva. Uma medida dessa natureza tem algum potencial pra democratizar minimamente que seja o sistema tributário ou não seria exatamente isso?

David Deccache -  A PEC 45 trata especificamente da simplificação tributária, então, ela unifica vários produtos incidentes em um único que é chamado de IBS [Imposto sobre Bens e Serviços]. Esse processo de simplificação pode trazer algum ganho em termos de redução de desigualdade no sentido das regionais porque hoje, no Brasil, a tributação sobre bens e serviços é um mix de tributação na origem, onde a mercadoria é produzida, e no destino, onde a mercadoria é consumida.

Qual é o problema disso? Ao privilegiar a tributação na origem, estamos tributando e fornecendo receita para as cidades que têm uma maior sofisticação econômica, mais empreendimentos econômicos, e não necessariamente cidades onde temos mais população. E a PEC faz com que a tributação seja exclusivamente no destino, ou seja, onde as pessoas vivem, consomem e também utilizam os serviços públicos.

Então, aí há uma redistribuição de receitas nos estados mais desenvolvidos para os menos desenvolvidos em termos de sofisticação estrutural. O mesmo vale para os municípios. Esse, inclusive, é um dos focos de resistência à PEC, daí a opção pra uma longa transição pra ela se tornar plena. A transição na repartição das receitas na PEC 45 é de 50 anos.  É porque foi uma forma encontrada para tentar diminuir a pressão dos prefeitos e governadores que perderiam [receita] de forma muito abrupta. 

Por mais que o governo trate a PEC 45 como prioridade e maior referência, a PEC 110 também é ventilada no debate em alguns momentos e o Senado vem sendo chamado a acompanhar o andamento da reforma na Câmara. Qual a diferença entre essas duas propostas? 

Os dois textos têm o mesmo objetivo e partem do mesmo diagnóstico, da necessidade de se ter uma junção de vários tributos em um só e alterar a lógica no exato sentido do que eu falei na pergunta anterior. Quais são as diferenças principais? Na PEC 45, há junção de cinco tributos em um. São o PIS, o Cofins e o IPI, que são da União, o ICMS, que é dos estados, e o ISS, dos municípios.

A PEC 110 cria o chamado “IVA dual” porque ela vai criar um tributo, que é o CBS [Contribuição Social sobre Bens e Serviços] para a União, que vai ser a soma dos tributos da União, como PIS, Cofins, IPI, e ela vai criar um IBS para os estados. Então, ela cria um IBS para estados e municípios e um CBS para a União. Essa é uma diferença fundamental entre os dois textos e o Bernard Appy, que é o secretário extraordinário da Reforma Tributária, alega que qualquer um dos dois é melhor do que o modelo atual, embora ele prefira o texto da PEC 45, que ele construiu.

Tem agora diferenças mais significativas da 45 pra 110 num outro sentido: a PEC 45 não permite benefícios fiscais neste momento. Então, você não pode criar uma alíquota diferenciada, por exemplo, pra cesta básica. A PEC 110 abre essa possibilidade por meio de regulamentação e lei complementar. Na PEC 110, seria possível ter critérios para produtos essenciais, como alimentos, medicamentos, alimentação para gado, esse tipo de coisa. Então, ela abre uma série de possibilidades de benefícios fiscais.

O secretário [Appy] é contra esse aspecto. Ele alega que isso faria com que a gente entrasse numa nova rodada de concessão de benefícios, que é um dos aspectos que ele tenta compensar com uma espécie de cash back. Então, essa também é uma diferença que talvez seja relevante entre as duas PECs. Outro detalhe, que tem na PEC 110 e não tem na 45, é que ela amplia a base tributária do IPVA.

BdF – Entre as pressões multilaterais que se dirigem ao GT, há a pressão do campo progressista para que esse grupo absorva ideias da proposta de reforma tributaria solidária, que inclusive virou uma emenda à PEC 45, emenda 178, apresentada em 2019. Do ponto de vista do conteúdo, a proposta de mera simplificação trazida pelo conteúdo principal da PEC 45 dialoga com a ideia de reforma solidária ou o texto precisaria de alguma mudança substancial pra dar conta dessa perspectiva?  

Na verdade, o que daria pra se fazer agora com a PEC 45 é o governo avançar em outras medidas, não necessariamente na PEC, mas em outras medidas, como tributação de renda e patrimônio dos mais ricos. E aí, nesse caso, a gente não precisaria colocar na PEC porque são medidas que podem ser aprovadas por processos legislativos mais simples. Por exemplo, o imposto sobre heranças seria facilmente resolvido com um projeto de resolução do Senado Federal. E o Senado define hoje a alíquota máxima que o Senado pode cobrar em 8%.

Um projeto de resolução simples poderia aumentar essa tributação nas grandes heranças pra 20%, 30% -- nos Estados Unidos, seria 40%. Então, seria uma forma mais simples do que o quórum [de votos para aprovar] PEC, que é muito alto, sendo de três quintos [dos parlamentares] nas duas casas. A questão, por exemplo, da tributação de lucros e dividendos, que Brasil e Estônia são os únicos países do mundo que não tributam, enquanto os mais pobres pagam imposto de renda... nesse sentido, não precisaria jogar essa matéria pra PEC e elevar o quórum dela.

O IGF [Imposto sobre Grandes Fortunas] também não precisa de PEC porque a Constituição não institui produtos. Ela cria competências para os entes instituírem tributos e a Constituição já criou competência pra União instituir o IGF, por exemplo. O que falta é um projeto de lei complementar que faça isso. Então, a meu ver, daria sim, e é isso que o governo precisa fazer para tramitar uma série de matérias de reforma tributária em paralelo à PEC 45, e não só a simplificação, até porque esta é a mais complexa de todas as matérias no sentido de quórum, por exemplo.

BdF – Reforma tributaria é sempre uma pauta que costuma ser muito assediada no Legislativo por diferentes segmentos que buscam vantagens por meio desse tipo de proposta. Já há muitos grupos econômicos, políticos e sociais orbitando em torno do GT pra tentar emplacar os seus interesses. E surgiu uma nova variável recentemente, que é o fato de governadores das regiões Sul e Sudeste passarem a demandar que o texto a ser votado no grupo contemple a questão do nível de endividamento dos entes federados. Eles também cobram compensações financeiras por conta de perdas com a arrecadação de ICMS. Diante disso, eu pergunto: esse tipo de proposta caberia num texto como o da PEC 45 sem desfigurar a proposta ou são coisas que não conversam tanto entre si?

Qualquer medida de compensação precisaria ser criada via algum tipo de fundo. Existe na PEC 110 a previsão de fundos pros estados e municípios, e a ideia desses fundos é a seguinte: um dos aspectos da PEC 45 e da 110 também é a redução ou a quase eliminação da guerra fiscal entre os estados. Por quê? Eles acabam tentando baixar alíquotas pra determinado setor, buscando atrair esse setor pro seu território. E, obviamente, nessa guerra, no médio e no longo prazo, todo mundo perde.

Quando a gente cria alíquotas únicas para todos os setores, o que acontece? Os estados perdem esse mecanismo, esse instrumento de política econômica. É um instrumento ruim, mas é um instrumento de fazer política econômica e de tentar atrair investimentos. A forma de se compensar isso na PEC 110, por exemplo, foi a criação de um fundo de desenvolvimento pra estados e municípios que a União vai abastecer pra compensar esses efeitos. Então, daria pra fazer algumas compensações via fundos.

Mas o fato é que a PEC 45 já tem uma transição muito longa. Então, a transição vai ser muito lenta, o que reduz bastante a perda no curto prazo desses estados e municípios.

BdF – Vi no texto da emenda 178 que uma das coisas que ela prevê é, por exemplo, é a fixação de um tratamento diferenciado para microempresas e empresas de pequeno porte em geral. Por que esse tipo de medida é importante no contexto de uma reforma tributária solidária? 

Porque nós temos que criar condições específicas até pra quem tem menor capacidade de se organizar em termos contábeis, então, obviamente, esses regimes simplificados terão que ser levados em consideração em qualquer proposta que avance, seja a 110 ou a 45, tanto os regimes simplificados que existem hoje, que permitem uma maior facilidade em termos de não comprovação de acumulação de créditos, etc., e também no sentido das zonas como a Zona Franca de Manaus, que ainda precisam de um tratamento diferenciado. Esse tipo de tratamento eu creio que o governo tenha que levar em consideração nas propostas, sim.

BdF – A mesma proposta de reforma solidária estabelece que o sistema de tributos precisa promover a sustentabilidade ambiental, o desenvolvimento regional, ações e serviços públicos de educação e saúde. Que tipo de políticas poderiam ser pensadas dentro de uma reforma para se atingir esse horizonte, por exemplo? 

Uma das táticas, e acho que o campo progressista vai usar bastante neste debate agora, é sobre o chamado “imposto seletivo”. A gente vai passar a tributar todos os produtos numa mesma alíquota. Se a proposta da PEC 45 passar, claro.

Nesse sentido, a gente está tributando cigarro e arroz com a mesma alíquota. Como corrigir essa distorção, que é grave? Eles criam o chamado “imposto seletivo”, ou seja, algumas mercadorias poderão ter uma tributação extra acima dessa normal, e é aí que entra um trabalho de algumas instituições e entidades que, a partir desse imposto seletivo, querem encaminhar no sentido da saúde e da sustentabilidade.

Por exemplo, temos a reforma chamada de “3S – Sustentabilidade, Saúde, Solidariedade”. Nesse sentido, a gente pode cobrar o imposto seletivo sobre agrotóxico, por exemplo, sobre cigarro, alimentos que façam mal à saúde. Então, o imposto seletivo pode ser utilizado como um instrumento poderoso em termos de saúde pública e sustentabilidade ambiental, com práticas de produção mais sustentáveis, enfim. Isso pode ser pensado por uma série de fatores.

Inclusive, o imposto seletivo pode ir além dessas questões mencionadas, mas também tentar unir práticas ligadas a questões étnico-raciais, de paridade de gênero. A gente pode pensar em várias possibilidades de intervenção econômica a partir do imposto seletivo para além dos mais tradicionais, que são o cigarro e o álcool.

BdF – Um material que o Ministério da Fazenda distribuiu outro dia aos parlamentares da base do governo aponta que todos os estados e municípios terão mais verbas com a aprovação da reforma tributária e que aqueles com menor índice de desenvolvimento serão o mais beneficiados. De que forma a reforma faz isso?

Eu não recebi o material, mas o sentido disso é o sentido que eu comecei apontando no início aqui da nossa conversa sobre a tributação no destino e a tributação na origem. A PEC olha para o lugar em que se consome, e não para o lugar em que se produz.

Qual a diferença disso? Por exemplo, a gente pode ter uma cidade que tenha grandes empreendimentos econômicos e uma cidade ao lado que seja uma cidade-dormitório onde a população mora, mas não trabalha. As cidades com muitos empreendimentos e pouca população vão concentrar boa parte das receitas e essas vizinhas onde as pessoas dormem praticamente não terão receita.

A lógica de tributar no destino reduz muito essa desigualdade gerada pela discrepância de desenvolvimento econômico entre regiões porque ela mira onde a pessoa vive, e onde a pessoa vive é onde vai ter a demanda por serviços públicos. Então, essas cidades onde elas vivem e consomem são as que mais precisam de receita.

Também tem algumas mudanças da PEC 45 que são mudanças um pouco mais técnicas, mas é o seguinte: parcela do ICMS hoje também é dividida por municípios. Na lógica da divisão, 75% dela têm relação com o valor agregado pelo município, ou seja, pela estrutura produtiva dos municípios.

Então, leva em consideração esse aspecto e 25% levam em consideração os aspectos que os estados determinarem, aí pode ser o tamanho da população, enfim. Nessa PEC, isso fica invertido. A divisão passa a ser de acordo prioritariamente com o tamanho da população. Então, aí os municípios maiores e mais sofisticados vão reclamar. Por exemplo, o Eduardo Paes [prefeito do Rio de Janeiro (RJ)] tem reclamado muito, e os municípios menores tendem a ganhar.

A Frente Nacional de Prefeitos, por exemplo, representa prioritariamente capitais, e aí ela é crítica à PEC. E a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), que representa os municípios menores, é favorável.

Existe essa divergência entre os municípios. A transição emenda boa parte desse problema porque ela é muito longa. Só não tem transição pra essa repartição do ICMS entre os municípios. Isso é abrupto. E talvez isso esteja causando muitas resistências. Mas, de fato, os municípios grandes terão uma perda. Não é verdade, então, que não haverá perdas. Alguns prefeitos têm alegado isso. Pelo menos no longo prazo e por conta da cota parte do ICMS. Esse é um debate polêmico. 

 

 

 

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho