Heloisa Buarque de Almeida, professora de Antropologia e Gênero da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (Numas), afirma que “há um movimento antigênero que pega o termo gênero e fala que é uma mentira, que só existem homens e mulheres”.
Em suas palavras, “o gênero é, na verdade, uma concepção teórica que problematiza essa ideia e diz que existem homens e mulheres vivendo em condições muito diferentes. Nem toda mulher é mãe ou será mãe. O gênero desconstrói uma série de obviedades no imaginário mais conservador da família.”
“Eles associam muito o gênero à família, o que pode ser observado pela defesa da família que vem sempre junto com o ataque à teoria de gênero. Por isso, eles dizem que o gênero é uma ideologia. Na verdade, eles são ideólogos de gênero, mas não sabem disso porque imaginam as mulheres e os homens de uma maneira limitada.”
A pesquisadora explicou em entrevista ao Brasil de Fato como a extrema direita nacional adotou a ideia de gênero como termo pejorativo para deslegitimar e atacar as pautas e os direitos ligados às minorias políticas, principalmente as mulheres.
Brasil de Fato: A senhora é do campo de estudos da teoria de gênero. Como a ideia de gênero ganhou força na sociedade?
Heloisa Buarque de Almeida: O gênero é um campo de estudos teóricos que cresceu e ganhou grande repercussão, entrando na agenda da ONU e mundial a partir dos anos 90 e 2000. Gênero foi virando um termo que se associou ao crescimento de direitos, tanto para as mulheres, inclusive os direitos sexuais e reprodutivos, quanto para outras minorias sexuais e identidades de gênero. Mas, claro, é essencialmente também sobre os direitos das mulheres. Temos a Lei Maria da Penha, que usa a palavra "violência em razão de gênero".
Mas gênero também fala de como ser homem e mulher varia socialmente, e de como se constroem masculinidades e feminilidades que mudam ao longo do tempo. Isso não é fixo. Ao fazer isso, o gênero acaba sendo um campo de estudos que também inclui pensar em outras identidades de gênero, como as questões das pessoas trans, das pessoas que não se identificam com o gênero binário.
E é nesse gancho que a extrema direita entra para atacar os direitos das minorias?
Algumas análises e analistas mostraram isso, que nos anos 80 e 90, a Igreja Católica começa a reagir com um movimento antigênero, acusando o gênero de estar destruindo a família natural, que seria de homens e mulheres.
O primeiro incômodo com o gênero é contra os direitos do casamento homoafetivo. É daí que vem o movimento antigênero, que também é contra os direitos das mulheres, como os direitos reprodutivos, principalmente o acesso à contracepção e a legalização do aborto, assim como os direitos sexuais e reprodutivos, o direito à saúde reprodutiva e o acesso à saúde.
De fato, há um movimento antigênero que pega o termo gênero e fala que é uma mentira, que só existem homens e mulheres. O gênero é, na verdade, uma concepção teórica que problematiza essa ideia e diz que existem homens e mulheres vivendo em condições muito diferentes. Nem toda mulher é mãe ou será mãe. O gênero desconstrói uma série de obviedades no imaginário mais conservador da família.
Eles associam muito o gênero à família, o que pode ser observado pela defesa da família que vem sempre junto com o ataque à teoria de gênero. Por isso, eles dizem que o gênero é uma ideologia. Na verdade, eles são ideólogos de gênero, mas não sabem disso porque imaginam as mulheres e os homens de uma maneira limitada.
O gênero é mais do que uma ideologia, é uma construção social complexa. No Brasil, o mais grave é que isso tem sido usado para atacar escolas públicas, professores e professoras, a presença de professores que estão fora da matriz binária de gênero, como homossexuais e pessoas trans.
A partir desse contexto político, que se soma a um histórico de ascensão da extrema direita e à estrutura de Estado inserido num sistema capitalista, que sabemos ter suas contradições, como a senhora acredita que o governo Lula vai lidar com as pautas feministas?
Lula já acenou positivamente no sentido de construir e reconstruir o Ministério das Mulheres, colocando mulheres diversas em cargos aliados ao Executivo. Já há um aceno positivo. Ele está empenhado em direitos humanos, considerando a diversidade de mulheres, pessoas negras e indígenas em cargos importantes. Isso é muito relevante.
O difícil é que vai ter que lidar com um Congresso muito conservador. Embora a gente tenha também tido a felicidade de algumas pessoas da esquerda bastante politizadas que trazem esse tema ao terem sido eleitas, elas serão minoria no Congresso Nacional e nos legislativos estaduais também.
É difícil saber, mas eu acho que a gente tem acenos positivos de tentativas de políticas importantes, de retomadas, como o Bolsa Família. Essa já é uma política que melhora a vida das mulheres em condições mais precárias, por exemplo. A gente tem aceno para reordenação, como a volta de investimentos. Por exemplo, o 180, que era o número de denúncia de violência contra a mulher, estava praticamente desmontado, mas está sendo reorganizado para poder ter denúncias de violência doméstica.
Agora, eu acho que tem essa outra batalha que é a cultural mesmo, que a gente tem para enfrentar no Brasil com esse tema. Então, será uma batalha no legislativo, assim como enfrentaremos a batalha para colocar o debate na arena pública de um modo mais reflexivo.
Qual é a importância de pensarmos em políticas transversais e com uma pauta interseccional?
A abordagem interseccional é fundamental. Não tem mais como fazer política sem isso. É fundamental ter um Executivo preocupado em ter mulheres negras, indígenas e trabalhadoras importantes nos cargos. Isso faz toda a diferença. É preciso manter esse tema na pauta, porque se você coloca somente mulheres de elite, é muito fácil esquecer de todos os temas.
Nós temos temas que são transversais e que podem unificar as mulheres em torno de algumas coisas, assim como podem unificar homens e mulheres, brancos e negros. A luta não é só por uma boa política, mas também por considerar a diversidade social e ter efeitos para todo mundo. Por exemplo, ter assistência integral de saúde é fundamental e o SUS tem um modelo universal porque parte de uma política interseccional que reconhece a diversidade.
O Estado e o exercício do poder, a política, têm espaços diminutos e hostis às mulheres historicamente. Gostaria que a senhora falasse um pouco sobre isso e sobre os limites que esse quadro impõe à capacidade de mobilização e a efetivação dos direitos das mulheres.
Em termos de gênero, direitos das mulheres, acesso a espaços públicos e esfera política, a proporção de mulheres no Congresso e no Executivo é baixíssima. Até mesmo a crescente feminização no Judiciário é relativa, porque os cargos mais altos tendem a ser masculinizados.
No Brasil, além de existir uma tradição de participação política familiar, ou seja, quando aparecem mulheres é porque vêm de famílias de políticas, as mulheres muitas vezes não estão presentes para representar a demanda de mulheres por direitos ou uma pauta feminista. Algumas mulheres que não têm o menor compromisso com a questão feminista e que, portanto, não olham para questões que ficam invisíveis.
É possível desenvolver políticas públicas a partir da entrada de pessoas que estejam atentas a essas questões, que demandem e saibam olhar para as desigualdades sociais do Brasil. Não basta ser mulher, é importante saber olhar para além das próprias experiências, incluindo as questões das mulheres de classe popular, negras, indígenas, etc. É importante ampliar a pauta feminista para incluir essas questões.
Pode-se dizer que os momentos em que houve conquistas foram aqueles que tiveram bastante pressão social e de retomada da participação popular?
Mesmo com baixa proporção de mulheres, a gente teve no Brasil presenças importantes em conselhos e um pouco no legislativo muito combativas que estiveram na Constituinte nos anos 80. Apesar da baixa participação de deputadas, houve uma grande penetração das pautas feministas no Estado devido à presença dessas mulheres. Isso ocorreu na administração do Estado, tanto nos governos federais quanto estaduais.
Por exemplo, em 1985, começamos a ter no Brasil as Delegacias de Defesa da Mulher, uma política muito inovadora. Isso aconteceu mesmo a despeito de termos poucas mulheres, porque havia naquela época um órgão de pressão, que eram os conselhos estaduais da condição feminina, que promoveram e foram apoiados. Foi um momento de redemocratização em que algumas pautas feministas conseguiram entrar na esfera do Estado, e isso teve épocas de avanço e retração.
No governo Bolsonaro, por exemplo, houve um retrocesso nesse sentido, mas no primeiro governo Lula houve um crescimento na participação feminina, culminando num Ministério dedicado a isso.
Edição: Rodrigo Durão Coelho