Uma portaria assinada em novembro de 2018 pelo pastor e ex-deputado federal Ronaldo Fonseca, então ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República no governo de Michel Temer (MDB), contrariou uma determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) e tem sido usada como argumento para defender que joias, como as recebidas por Jair Bolsonaro e pela primeira-dama Michelle Bolsonaro, sejam incorporadas ao acervo privado do mandatário e não ao acervo patrimonial da Presidência.
Candidato a deputado federal pelo PP do Distrito Federal em 2022, Fonseca perdeu a eleição. Na campanha, exibiu orgulhoso fotos com o casal ex-presidencial beneficiado por sua medida, tomada no apagar das luzes do governo Temer, já durante a transição para o governo Bolsonaro. O Brasil de Fato localizou uma peça de promoção eleitoral do ex-ministro com a foto de Michelle Bolsonaro, a quem uma remessa das joias teria sido direcionada.
Como ministro de Temer, já durante o período de transição para a gestão bolsonarista, Fonseca assinou a Portaria nº 59 de 8 de novembro de 2018, que "dispõe sobre a política para gestão de bens históricos e artísticos da Presidência". O texto, que foi tema de reportagem do site Come Ananás, inclui joias como um dos “bens que forem de natureza perecível ou personalíssima”, que não precisam ser incorporados ao acervo do Planalto.
O argumento tem sido usado por bolsonaristas para defender a tentativa de apropriação pessoal das joias estimadas em R$ 16 milhões. A defesa de Bolsonaro manifestou-se pela primeira vez sobre o caso na terça-feira (7). Em nota, o advogado Frederick Wassef afirma que o então chefe do Executivo agiu "dentro da lei" e "declarou oficialmente os bens de caráter personalíssimo recebidos em viagens". Segundo Wasseff, não houve "qualquer irregularidade" nas condutas do ex-presidente.
O texto assinado por Fonseca e evocado na defesa de Bolsonaro diz que não há necessidade de destinação ao acervo público presentes “recebidos pelo Presidente da República e consorte em situações caracterizadas oficialmente como cerimônias de troca de presentes” ou mesmo “recebidos protocolarmente, em decorrência de relações diplomáticas vigentes”. A portaria do governo Temer, contudo, contraria em um acórdão de 2016 do TCU, que estabeleceu que excluiu explicitamente as joias do rol de itens pessoais do presidente, permitindo a incorporação ao acervo pessoal apenas "itens de natureza personalíssima ou de consumo direto" recebidos de governos estrangeiros.
Na ocasião, o ministro Walton Alencar, relator do caso no TCU, usou justamente uma situação envolvendo pedras preciosas como exemplo. "Imagine-se, a propósito, a situação de um chefe de governo presentear o presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade", escreveu.
O subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Furtado, também discorda da tese encampada pela defesa de Bolsonaro, baseada na portaria de novembro de 2018. Em declaração para a jornalista Bela Megale, colunista do jornal O Globo, ele afirmou que, caso as joias fossem mesmo para uso pessoal ou personalíssimo, "deveria ter sido pago imposto" na chegada ao Brasil, o que não ocorreu. "Isso vale para qualquer mortal brasileiro", disse Furtado.
Na quinta-feira (9), o ministro do TCU Augusto Nardes determinou que Bolsonaro preserve intacto e não use o acervo de joias masculinas que teria recebido como presente pessoal do governo da Arábia Saudita. Outra parte dos itens, que seria destinada a Michelle Bolsonaro foi retida pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos, em outubro de 2021, com um assessor do Ministério de Minas e Energia do governo passado.
De acordo com reportagem do jornal Folha de S.Paulo, o acervo pessoal de Bolsonaro acumulado em sua passagem pela Presidência vai muito além do pacote enviado pela Arábia Saudita. A lista inclui 44 relógios, 74 facas, 54 colares, 112 gravatas, 618 bonés, 448 camisas de futebol e 245 máscaras de proteção facial, além de munição e colete à prova de balas. Em quatro anos de mandato, Bolsonaro colecionou 19.470 itens, segundo uma lista elaborada pela Presidência para atender a pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação.
Campanha com Jair e Michelle
Responsável por assinar a portaria que beneficia o casal Bolsonaro no caso, Fonseca é aliado político de Bolsonaro e distribuiu material de campanha com foto ao lado de Michelle Bolsonaro no pleito do ano passado, quando se candidatou a deputado federal pelo PP. O ex-ministro de Temer perdeu a disputa, fazendo apenas 13.687 votos, apesar dos mais de R$ 1,5 milhão investidos com dinheiro dos diretórios nacional e distrital de seu partido.
Fonseca se filiou ao PP em abril de 2022. Poucos dias depois, encontrou Bolsonaro e seu então ministro da Casa Civil, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Uma reportagem do site Agenda Capital, registra o encontro como um "jantar de boas- vindas" a Fonseca, e que ele teria sido "recepcionado" pelo presidente nacional do Progressistas, Ciro Nogueira, pelo presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL) e pelo presidente da República, Jair Bolsonaro.
Outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato, por e-mail, com ex-deputado Ronaldo Fonseca. Na mensagem, a reportagem questionou as motivações da publicação da portaria na transição Temer-Bolsonaro e indagou o ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência se ele considera joias presenteadas a presidentes, mesmo em caso de alto valor, um item "personalíssimo".
Até a publicação desta reportagem, o político não respondeu aos questionamentos. Como o agora ex-presidente Jar Bolsonaro não tem assessoria de imprensa constituída, não foi possível entrar em contato com sua equipe para buscar um posicionamento para a elaboração desta reportagem.
O Brasil de Fato também não localizou contatos públicos da equipe de assessoria da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. O espaço, porém, segue aberto para manifestações, e o texto poderá ser atualizado.
Edição: Rodrigo Durão Coelho