Faz três anos que Silvia Liger Silva Cruz, 44, vive com seus dois filhos – Lucas, 23, e Fabrício, 15 – na ocupação Carolina Maria de Jesus, na Zona Leste de São Paulo.
Ela é cabeleireira e manicure. Durante a pandemia, perdeu clientes. Não conseguiu pagar o aluguel do apartamento em que morava em Cidade Tiradentes, também na Zona Leste. Restou-lhe construir um barraco de 6 metros quadrados num terreno ocupado.
Ela mudou-se para lá em 2019. Desde então, esse barraco cresceu. Mas até agora sequer tem banheiro e cozinha.
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“A gente toma banho no banheiro coletivo. Faz o que tem que fazer no balde e depois descarrega”, explicou. “Meu barraco é de madeira e lona. Ainda entra muita água.”
Silvia é uma das 3,4 milhões de mulheres do país que são responsáveis por domicílios considerados inadequados para habitação. As moradas dessas mulheres respondem por 60% do déficit habitacional brasileiro, que em 2019 era de quase 5,9 milhões de casas –ou seja, as mulheres são as maiores afetadas pelo problema.
Compõem o chamado déficit habitacional famílias ou pessoas que vivem, basicamente, em três situações: em casas extremamente precárias ou improvisadas, como é o caso de Silvia; que dividem uma mesma residência com outra família; ou que pagam um aluguel tão caro que precisam decidir se compram comida ou arcam com a despesa mensal.
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Em todos esses casos, as mulheres são maioria, de acordo com os dados mais atualizados sobre o assunto, apresentados pelo governo federal em 2021. Esses cálculos foram feitos pela Fundação João Pinheiro (FJP), com base em números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo Raquel Ludermir, doutora em Desenvolvimento Urbano, coordenadora nacional de incidência política da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, os motivos para essa maioria feminina no déficit são muitos. Vão desde a maior dificuldade para o acesso à educação até a forma patriarcal como se estrutura a sociedade brasileira.
Ludermir, contudo, explica que quase todas essas questões resumem-se em dois problemas que afetam diretamente às mulheres que não têm uma casa adequada para morar: a “feminização da pobreza” e a violência doméstica.
“A mulher está mais frequentemente e de forma mais acentuada em situação de pobreza, e isso reflete na questão da moradia”, afirmou. “E ainda por cima tem a questão da violência doméstica. A gente escuta casos de mulheres tendo que sair de casa para se proteger, para sobreviver.”
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Graça Xavier, da União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), confirma o diagnóstico.
Ela, pessoalmente, só conseguiu concluir o Ensino Médio depois de casada e com filhos. Na década de 1980 e 1990, não conseguia pagar o aluguel para viver com sua família. Morou em abrigos emprestados. Só fixou residência em 1992, depois de construir, por meio de mutirões, uma casa no Jardim Celeste, na Zona Sul de São Paulo.
“A maioria casa ou tem filhos muito cedo. Não tem tempo para estudar. Não consegue um bom emprego”, disse ela, que ainda hoje ajuda a cadastrar mulheres chefes de família que precisam de moradia.
“Há um componente demográfico nesse problema. Há muitas famílias chefiadas por mulheres, sobretudo com baixa renda. Temos muitas mães solteiras, divorciadas, abandonadas pelo marido”, complementou Camila D’Ottaviano, pesquisadora do Observatório das Metrópoles e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), sobre o déficit feminino.
Problema crescente
Esse déficit, aliás, já é conhecido por militantes e estudiosos há anos. Só em 2021, no entanto, ele foi verificado por estatísticas oficiais.
Foi neste ano que a FJP incluiu em seus levantamentos a divisão por gênero da liderança das famílias sem casa adequada para viver. Aquela pesquisa foi baseada em dados do IBGE coletados entre 2016 e 2019.
Raquel, da Habitat para a Humanidade Brasil, conta que o que surpreendeu nesses quatro anos é que o déficit habitacional entre mulheres cresceu, mesmo com políticas públicas que as privilegiam. Em 2016, 54,6% das famílias que compõem déficit eram chefiadas por mulheres –5,4 pontos percentuais a menos do que em 2019.
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A Lei 11.124, de 2005, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), determina que casas de interesses social devem ser registradas, preferencialmente, em nome de mulheres visando protegê-las.
“É comum ex-maridos venderem as casas, usarem o dinheiro e deixar a mulher sem nada”, exemplificou Ludermir. “A lei evita isso.”
Solução complexa
Raquel afirmou que os dados sobre o déficit entre mulheres mostra como a solução desse problema é difícil. Segundo ela, só construir casas não resolve a questão. Isso porque muitas mulheres que compõem o déficit tinham casa, sendo que parte as abandonou por sofrer ameaças e agressões de seus companheiros ou pessoas próximas.
“Só o Minha Casa Minha Vida não é suficiente”, disse ela, citando o programa federal de construção de casas populares relançado no mês passado. “Se uma mulher – mesmo sendo beneficiária de um programa habitacional – estiver diante de uma situação de violência extrema, ela vai sair da casa, vai perdê-la e nunca mais volta.”
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Ela lembra que combater a violência doméstica é essencial. É necessário também garantir que as mulheres vítimas do problema sejam acolhidas em casas-abrigo adequadas para que não acabem também engrossando o déficit.
Raquel ainda ressalta que o déficit contabilizado em pesquisas não dá conta da real dimensão do problema, sendo subdimensionado. No caso específico das mulheres, há muitas vítimas de violência vivendo com seus agressores por não ter onde ir.
“Os dados oficiais mostram muita coisa, mas eles não abarcam toda a complexidade do problema”, concluiu a especialista.
Edição: Rodrigo Durão Coelho