Há quem diga que o mês inteiro é carnaval no Rio de Janeiro. Com alguma razão. Na última segunda-feira (13) – uma semana antes da verdadeira segunda-feira de carnaval, portanto – a vendedora ambulante Márcia* chegou por volta das 15h30 à rua onde fica a sede do tradicional bloco Bola Preta, na Lapa, bairro boêmio da região central do Rio. Às 19h daquele dia o local receberia o último ensaio do Multibloco, um dos 415 autorizados pela prefeitura para desfilar este ano.
"Eu quis chegar cedo pra garantir lugar, daqui a pouco não tem nem espaço mais aqui na calçada, de tanto vendedor", disse à reportagem. "O fim de semana foi bom, já teve muito bloco. Hoje o pessoal do grupo falou que era pra vir pra cá, que ia lotar. Vamos ver".
O grupo citado reúne vendedores ambulantes no WhatsApp. Por lá, eles trocam informações sobre locais onde se concentram os foliões e, principalmente, quais pontos devem ser evitados. Durante os dias de programação oficial do carnaval (e isso inclui o "pré" e o "pós" carnaval) só pode trabalhar quem está credenciado junto à Prefeitura do Rio. Ou melhor, junto à Ambev.
"O pessoal fala no grupo: 'ó, foge do bloco tal, a Guarda Municipal tá levando tudo'. Aí quem tá lá dá um jeito de sair correndo, e quem tá indo, muda de rumo. Mas teve gente que ontem [domingo, 12] perdeu o dia inteiro de trabalho, os guardas levaram", lamentou Márcia. "Eu fico atenta".
Carnaval democrático?
Os blocos de rua do Rio são espaços democráticos. Quase sempre em locais públicos, sem restrição de acesso, podem reunir algumas dezenas ou centenas de milhares de pessoas. Tem para todos os gostos: bloco de marchinhas, bloco de samba enredo, bloco que toca música brega, bloco que se desloca, bloco que fica parado. Em comum, a presença de vendedores ambulantes. O carro-chefe, via de regra, é a cerveja.
O credenciamento para os vendedores ambulantes que trabalhariam no carnaval foi feito pela internet. O processo de inscrição foi aberto em janeiro para distribuição de 10 mil credenciais. A definição sobre quem receberia o kit (com credencial, colete e isopor) foi feita por sorteio. Quem foi sorteado ganhou autorização para trabalhar nos blocos entre 21 de janeiro e 26 de fevereiro.
O material recebido pelos vendedores sorteados traz os preços tabelados. O folião pode comprar uma lata de 473 ml de cerveja Brahma, por exemplo, por R$ 8. Três latas de 269 ml da mesma cerveja são vendidas por R$ 12. Uma lata de Guaraná Antarctica sai por R$ 5. Duas latas de bebidas alcoólicas da linha Beats custam R$ 15.
Ao fechar contrato com a prefeitura, além de ter suas bebidas apontadas como as "oficiais" do evento, a Ambev espalhou suas marcas em pôsteres afixados pelas ruas da região central e da Zona Sul da cidade, por onde circulam os principais blocos.
A vendedora ambulante Jaciara Carvalho, coordenadora do projeto Camelô da Central Única dos Trabalhadores (CUT), afirma que o modelo é muito negativo. Assim como os preços para venda são tabelados, os preços pagos pelos ambulantes também são. A Ambev contratou donos de caminhões que acompanham os blocos e oferecem os pacotes das bebidas para revenda a preços fixos. Segundo Jaciara, a cada lata de cerveja de 269 ml, por exemplo, o ambulante ganha R$ 1.
"Você ganha R$ 1 por lata, mas você tem que comprar o gelo, você tem que ir nos locais comprar, levar o peso, quer dizer, você é uma 'mula', resumidamente, para eles. A gente consegue comprar nos depósitos muito mais barato. Eu compro uma 'mala' de Brahma a R$ 43. Agora, eles estão colocando a quase R$ 50 no caminhão", conta.
Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Ambev garantiu que não há qualquer obrigatoriedade de compra de produtos em pontos de venda determinados, e afirmou que há uma rede de "parceiros com boas condições comerciais para facilitar a compra e a logística dos ambulantes".
A empresa falou, ainda, sobre as credenciais distribuídas em parceria com a prefeitura, e disse que "os ambulantes são parceiros extremamente importantes para a companhia". "Entendemos sua relevância para a realização dos carnavais. Apenas neste ano serão mais de 10 mil famílias no Rio de Janeiro com a oportunidade de ter uma renda extra", complementa a nota.
A Riotur, empresa municipal de gestão do turismo do Rio de Janeiro, foi procurada pela reportagem para falar sobre o credenciamento e outras questões relativas ao contato com a Ambev, mas não enviou resposta. Caso haja manifestação, este texto poderá ser alterado.
Credenciamento equivocado
Para Jaciara Carvalho, porém, o processo de credenciamento foi construído de maneira equivocada. Vendedores que estão nas ruas durante todo o ano, em eventos como partidas de futebol, shows musicais e na tradicional virada do ano, não tiveram prioridade no processo de escolha, e muitas pessoas que não têm experiência no ramo se inscreveram e foram sorteadas.
"Eles licenciaram 10 mil pessoas que, de verdade, nem sabem como funciona, chegam na frente dos locais com os blocos de qualquer jeito, passando o carrinho em cima de pé de foliões. Se o ano inteiro os ambulantes de eventos trabalham para a Ambev sem credenciamento, sem imposição de valores, como é que o carnaval eles decidem pegar pessoas aleatórias e colocar na rua?!", questiona a ambulante.
Jaciara afirma, porém, que não se opõe à abertura do mercado de vendedores ambulantes para outras pessoas, e também não é contrária ao cadastramento dos profissionais. A categoria, mobilizada, tenta há muito tempo diálogo com a prefeitura para que vendedores e vendedoras sejam cadastrados e formalizados, inclusive pagando impostos para utilizar o espaço público.
Muitas pessoas que trabalham como ambulantes em eventos nas ruas do Rio se inscreveram e não foram sorteadas para trabalhar no carnaval. É o caso, por exemplo, de Márcia, citada no início da reportagem. Apesar disso, eles seguem trabalhando. A fiscalização da Guarda Municipal, também citada, procura essas pessoas e também produtos de marcas de outros fabricantes vendidos por ambulantes credenciados ou não, e muitas vezes há repressão violenta.
"Eles decidiram os produtos que o ambulante tem que vender, e nesses produtos não tem a Coca-Cola, não tem a [cerveja] Heineken, não tem a Antarctica [que é um produto do portfólio da Ambev, mas não está entre os oferecidos aos ambulantes da folia carioca]. Eles decidem que você tem que vender os produtos que eles querem que você venda", protesta Jaciara.
Luta por condições de trabalho
O deputado federal Reimont (PT-RJ), que foi vereador do Rio entre 2009 e fevereiro deste ano, se envolve diretamente com a luta dos ambulantes há muitos anos. Ele afirma que a situação do carnaval é apenas parte de um problema maior.
"O ambulante tem que ser tratado como trabalhador. A gente tem aqui uma queda de braço com a prefeitura. Essa queda de braço, aliás, é no Brasil inteiro, com todas as associações de ambulantes, que são considerados pessoas que precisam estar sob a tutela de alguma secretaria que seja mais repressora. Aqui, no caso do Rio de Janeiro, a secretaria responsável é a Secretaria de Ordem Pública", explica.
Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Secretaria de Ordem Pública (Seop) da Prefeitura do Rio informou que realizou reuniões com representantes dos comerciantes ambulantes para ouvir as demandas coletivas. Os encontros aconteceram, inclusive, neste mês de fevereiro.
A secretaria disse, ainda, que vendedores ambulantes devem se inscrever no Cadastro Único do Comércio Ambulante (Cuca) e aguardar deferimento ou indeferimento da solicitação. O projeto, entretanto, cita vendedores que usam barracas - o que não é o caso dos profissionais que vendem bebidas em blocos.
Programa limitado
Reimont afirma que o contrato da Ambev com a prefeitura carioca tem uma série de problemas. Um deles é o fato de que ele tem um prazo pré-determinado. Quando passa a época do carnaval, os vendedores voltam a ficar sem qualquer tipo de apoio ou formalização, e a rotina da cidade turística faz com que eles sigam trabalhando nas ruas.
"Isso é um braço do capitalismo, que se reinventa a todo momento. Quem paga mais é mais forte. Aqui [no Rio] a Ambev consegue fazer esse monopólio; em outros espaços a Heineken ou outra empresa consegue fazer outro movimento, mas ao fim e ao cabo, é aquilo que a gente diz no dito popular: na luta do mar contra o rochedo, quem leva a pior é o marisco", diz o deputado.
Ainda nesta semana, moradores de uma ocupação no bairro da Gamboa, região central do Rio, tiveram suas residências invadidas sem ordem judicial e bebidas que seriam vendidas foram apreendidas. Após mobilização, o material foi devolvido. Mas nem todos têm a mesma sorte.
"Se a gente não toma cuidado, é isso. Uma tentativa de fazer um esvaziamento para que haja um espaço cada vez mais aberto para que a Ambev atue. A serviço do capital, infelizmente", completa Reimont.
"A gente sonha em poder chegar e levar o sustento da nossa casa. A gente paga muitos impostos, e, como cidadão, a gente não deve nada. A gente queria pagar pelo direito de usar o solo público. Eu não consigo entender como é que você me pune, mas não me organiza?! Para você me punir, você tem que me organizar, me ouvir, procurar negociar", resume Jaciara Carvalho.
*Nome fictício. A entrevistada pediu para não ser identificada.
Edição: Thalita Pires