A magistrada Sara Cockerill, da divisão comercial da Alta Corte da Inglaterra, terá que decidir nas próximas semanas se o fundo de investimento CRF I Limited tem legitimidade para cobrar o Banco Nacional Cubano (BNC) e do Estado de Cuba. A disputa jurídica envolve o fundo, que tem base em um paraíso fiscal e adquiriu títulos da dívida cubana em 2019 e, de outro lado, o próprio governo cubano, que acusa o suposto credor de má fé.
A decisão da magistrada responderá à ação judicial iniciada pelo CRF I Ltd., em fevereiro de 2020, nos tribunais de Londres, contra o Estado cubano. O processo judicial terminou sua fase oral no início de fevereiro deste ano, após ambas partes terem apresentado suas alegações.
O litígio está sendo travado porque a demandante CRF I Ltd. alega ser detentora de dois instrumentos financeiros da dívida pública cubana contraída em 1984, depois de ter adquirido alguns de seus títulos em 2019. Enquanto isso, o BNC e o Estado de Cuba sustentam que este fundo de investimento não é, e nunca foi, um credor da ilha. E que na realidade é um Fundo Abutre que está tentando legitimar sua posição como credor para exigir que o país pague uma dívida que não lhe pertence.
Devido à complexidade do caso, uma vez terminadas as audiências, Cockerill advertiu que a decisão levará tempo para ser avaliada e sentenciada. Uma vez proferida a sentença, há a possibilidade de que ela possa ser apelada por uma das partes, levando o julgamento a uma segunda instância. Assim, pode levar muito tempo para que uma decisão definitiva seja tomada.
Há poucos precedentes de casos que envolvem os arcabouços jurídicos internacional, cubano e inglês. Portanto, a decisão - caso se torne definitiva - pode estabelecer um precedente para futuros litígios nos tribunais de Londres, levando os especialistas na área de todo o mundo a acompanhar o caso de perto.
"O que está sendo discutido no processo não é se Cuba tem que pagar. Porque Cuba não deixa de reconhecer que tem que pagar essa dívida. O que está sendo discutido é se a entidade CRF I, como é chamado o Fundo Abutre, é um credor válido. Se o tribunal decidir que é um credor válido, então temos que ir a outro julgamento onde o mérito do caso será debatido. Ou seja, o dever de Cuba de pagar a dívida, e que Cuba não cumpriu os prazos", diz Ernesto Moreira, professor de Direito da Universidade de Havana, em entrevista ao Brasil de Fato.
Atualmente, de acordo com o último relatório publicado pelo Fundo Monetário Mundial (FMI) e pelo Instituto de Finanças Internacionais, o volume da dívida emitida por todos os países é da ordem de 350% do PIB mundial. De acordo com o mesmo relatório, esta situação no atual contexto de recessão econômica poderia desencadear uma nova crise de dívida global.
O que é CRF I Ltd. e o que ele alega?
CRF I Ltd. é um fundo de investimento offshore incorporado em 2009 nas Ilhas Cayman, um país da América Central famoso por ser um paraíso fiscal. Seu presidente é David Charters. O fundo faz parte, atualmente, do London Club, um grupo informal por credores internacionais privados.
Este fundo de investimento alega ter comprado em 2019 os direitos das dívidas contraídas pelo Banco Nacional de Cuba (BNC) com o Crédit Lyonnais e o Istituto Bancario Italiano em 1984 - quando o BNC era um Banco Central. O empréstimo foi contraído em marcos alemães, uma moeda que não existe mais, sendo declarada em default pelo governo de Fidel Castro após a queda da União Soviética.
Naqueles anos, esta dívida foi contraída pelo equivalente a US$ 15 milhões. De acordo com os próprios cálculos do CRF I Ltd., a soma da dívida agora é de cerca de US$ 78 milhões, com juros.
Como prova da compra feita em 2019, o fundo de investimento alega ter um documento emitido por um ex-funcionário do BNC, que supostamente deu o consentimento do Banco - e portanto do Estado cubano - para que seus direitos como credor fossem transferidos em favor do CRF.
Ao mesmo tempo, o fundo afirma ter tentado negociar com Cuba depois de ter obtido os títulos da dívida. O fundo com base em um paraíso fiscal acusa o governo cubano de ter se recusado a negociar um "acordo racional e conveniente para ambas as partes". Esta versão foi reproduzida pela maioria da imprensa internacional.
Por que Cuba não aceita o CRF como um credor legítimo?
Cuba argumenta que o CRF I Ltd. nunca foi um credor do país, nem o é no presente. Havana defende que jamais se endividou com o fundo de investimento (uma questão que as duas partes mantêm). Além disso, argumenta que a obtenção da propriedade da dívida em 2019 - que a CRF alega ter - não foi válida porque não cumpriu com as exigências legais correspondentes e também utilizou mecanismos ilegais para obter esta documentação.
De acordo com o governo cubano, a dívida contraída com o Crédit Lyonnais e o Istituto Bancario Italiano em 1984 pelo Banco Nacional Cubano (BNC) foi feita numa época em que a instituição atuava como um Banco Central e tinha poderes para agir em nome do Estado cubano. Entretanto, ao subscrever estes dois instrumentos de dívida financeira, que são objeto do processo judicial, foi acordado que se os credores pretendessem ceder seus direitos como credores destas dívidas públicas, teriam que informar o BNC e o Estado cubano para obter seu consentimento.
Em 1997, a regulamentação cubana reformou o BNC, obrigando a organização a solicitar autorização do Ministério das Finanças e Preços e do Conselho de Ministros para aprovar a cessão da dívida pública e de garantias concedidas pelo Estado.
Neste sentido, o Estado cubano alega que os documentos de propriedade da dívida na posse do CRF I Ltd. não são válidos, já que estes documentos não têm o aval das instituições.
O documento apresentado pelo CRF I Ltd. traz apenas a assinatura de Raúl Olivera Lozano, que era o diretor de operações do Banco Nacional Cubano. Lozano teria assinado a autorização para ceder unilateralmente os direitos do credor sem o consentimento do Estado cubano, conforme estabelecido pela lei cubana.
Lozano está cumprindo uma pena de prisão em Cuba desde 2021, após ter sido considerado culpado de corrupção por receber subornos - e a promessa do CRF I Ltd. de um pagamento de 25 mil libras - em troca de facilitar ilegalmente o processo de transferência dos direitos de credor. O próprio Raul Olivera Lozano testemunhou nesse sentido, virtualmente, durante o julgamento em Londres.
CRF I Ltd. é um fundo para abutres?
Os fundos abutres são fundos de investimentos especulativos. Eles se envolvem na compra de títulos de dívida de alto risco a valores abaixo do valor nominal. Em seguida, eles entram em litígio em tribunais estrangeiros para o pagamento desses títulos acima do valor pelo qual foram comprados. Daí sua natureza especulativa.
O presidente do CRF I Ltd., David Charters, disse à imprensa disse que não admitia o rótulo "fundo abutre" pois o grupo de investimento que preside é significativamente menor do que o poderoso Elliott Management - que em 2016 litigou contra a Argentina em um caso emblemático. No entanto, a condição de abutre não é determinada pelo tamanho do grupo, mas por sua atividade.
Durante o julgamento, o consultor do CRF I Ltd., Jeetkumar Gordhandas, admitiu que pediu ao Banco Nacional de Cuba (BNC) o reconhecimento do seu fundo de investimento como credor da dívida soberana cubana "com o único propósito de iniciar a presente ação legal para forçar seu pagamento". As declarações de Gordhandas vieram depois que 11.000 novos documentos pertencentes ao grupo de investimento, que não tinham sido divulgados antes, foram tornados públicos. Entre os documentos figurava uma comunicação de um executivo do CRF informando a seus clientes que o objetivo de adquirir os dois títulos da dívida cubana era processar o país e forçá-lo a pagar. Na mesma comunicação, afirmou-se que a ação judicial fecharia o acesso de Cuba aos mercados financeiros internacionais, pois mostraria o Estado cubano como um ator de má-fé não disposto a negociar.
Após a fase oral do julgamento, o Ministro da Justiça cubano, Oscar Manuel Silvera, declarou ao jornal Financial Times que Cuba está disposta a conversar com credores legítimos sobre o pagamento de sua dívida externa. "A posição de nosso país é que reconhecemos nossas dívidas legítimas e nossos credores legítimos. Nossa posição é, antes de tudo, reconhecê-los, ser transparente, falar sempre com nossos credores e buscar termos mutuamente favoráveis para cumprir estas obrigações", destacou Silvera.
Edição: Thales Schmidt e Patrícia de Matos