Dados coletados pelo Ministério da Saúde e enviados ao Ministério dos Povos Indígenas na semana passada mostram que 586 crianças com idade abaixo de cinco anos na Terra Indígena Yanomami têm “muito baixo peso para a idade”. Outras 968 têm “baixo peso para a idade”.
Assim, pelo menos 1.556 pequenos Yanomami têm hoje algum déficit de peso. Para chegar a esse número, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), mencionou peso e medição de 4.332 crianças. Ou seja, cerca de 36%, isto é, mais de um terço das crianças Yanomami têm um peso não condizente com sua altura, um indicativo importante de desnutrição.
A título de comparação, vejamos a cidade de Atalaia do Norte (AM), também localizada na Amazônia. Ali, de 1.027 crianças de zero a cinco anos, 89 tinham “magreza acentuada” ou “magreza” em 2021 (5% do total). Dados divulgados pelo Ministério da Saúde no ano passado indicam uma média nacional de 3% de “magreza acentuada” e de 3,4% de “magreza”. Peso baixo para idade e magreza acentuada são conceitos diferentes, mas permitem vislumbrar a grave situação vivida pelos Yanomami. E não fica claro se o número informado no documento compreende de fato todas as crianças Yanomami na mesma idade – a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, tem dito que os números da Saúde estão subdimensionados e o setor sofreu um apagão.
O médico Paulo Cesar Basta, doutor em Saúde Pública, um dos mais experientes no tema da saúde Yanomami no país, com inúmeros trabalhos publicados sobre o assunto e larga experiência de campo junto às equipes multidisciplinares de saúde indígena na Terra Indígena Yanomami, disse nesta segunda-feira (23) por mensagem à Agência Pública: “O estado nutricional das crianças Yanomami é realmente muito ruim, só comparável aos dados de crianças da África Subsaariana”.
Basta explicou que os pesquisadores trabalham basicamente com três indicadores para avaliar o estado nutricional das crianças menores de cinco anos. O peso para idade, “que é o mais comum e atua como proxy [aproximação de uma métrica que não é medida diretamente] de desnutrição aguda”, a estatura para idade, “que atual como proxy da desnutrição crônica”, e o peso para estatura, “que avalia a distribuição corporal da criança e, quando está aumentado, indica sobrepeso”.
A conclusão desses estudos é devastadora. “Recentemente nós publicamos alguns artigos sobre a temática entre os Yanomami e nossos dados, assim como os da Sesai, revelaram déficits de peso para idade em torno de 50% e déficits de estatura para a idade em torno de 80%. Esses dados revelam que a desnutrição entre os Yanomami é uma das mais graves do mundo”, disse Basta.
Um dos trabalhos mais recentes – feito por Basta em parceria com o epidemiologista e pesquisador da Fundação Fiocruz no Amazonas Jesem Douglas Yamall Orellana –, financiado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e concluído em março de 2020, analisou a situação nutricional de crianças até cinco anos em oito aldeias na Terra Indígena Yanomami. O trabalho incluiu análise de bancos de dados e viagens a campo do final de 2018 ao início de 2019, portanto captou poucos meses do governo Bolsonaro.
De 743 crianças Yanomami de 0 a 5 anos em sete aldeias na região de Auaris, 262 “apresentavam baixo peso ou muito baixo peso para a idade”. A pesquisa se concentrou numa amostragem de 300 crianças. Em Auaris, “somente 6,4% das crianças nasceram no hospital ou na Casai”, uma casa de apoio aos indígenas mantida pelo Ministério da Saúde. Os pesquisadores identificaram uma grande lacuna no processo de acompanhamento, pelo governo, da saúde dessas crianças. Menos de um quinto das crianças havia sido pesado e medido nos 30 dias anteriores. É um procedimento básico que, ao menor sinal de desnutrição, deve acionar todo um protocolo do sistema de saúde para melhorar a alimentação da criança.
O mesmo grave problema de falta de acompanhamento aparece no documento enviado pelo Ministério da Saúde na semana passada ao Ministério dos Povos Indígenas. O papel indica, por exemplo, que cerca de 74% das crianças (116) da localidade de Hakoma não são acompanhadas. No Paapiú, metade das 45 crianças também não é acompanhada.
A explicação sobre a desnutrição entre os Yanomami está vinculada à explosão da invasão dos garimpeiros na terra indígena nos últimos cinco anos. As lideranças Yanomami estimam hoje de 20 mil a 30 mil invasores no território. Nos últimos quatro anos, o governo de Jair Bolsonaro não fez nenhuma operação completa para retirar todos os invasores. Limitou-se a ações pontuais, a maioria por iniciativa de fiscais do Ibama, que surtiram efeitos imediatos mas não conseguiram resolver o problema de vez.
O ex-vice-presidente e agora senador eleito Hamilton Mourão (Republicanos-RS), coordenador do “Conselho Nacional da Amazônia Legal”, um aparato quase todo militar criado por ele e Bolsonaro, repetiu ao longo dos anos que era “complexo” retirar os garimpeiros da terra Yanomami, mas dizia que eram apenas 3,5 mil. A presença dos invasores, tolerada pelo governo a despeito de inúmeras denúncias de organizações indígenas e indigenistas, afeta a alimentação dos Yanomami.
A pesquisa de Basta e Orellana apontou que “a alta concentração de pessoas e a sedentarização da população local levou a uma exploração excessiva dos recursos naturais, tornando a caça e a pesca escassas na região, além de deixar os locais de produção agrícola pouco produtivos”.
“Fatos que colaboram para escassez de proteínas e alimentos, resultando em uma série de problemas que incluem maior dispêndio de tempo e energia para obter alimentos. Este fato gera não somente uma constante sensação de penúria como também diminui o tempo de atividades dedicadas a socialização (rituais tradicionais, práticas xamânicas, processos de aprendizagem, visitas a outras comunidades etc), tendo ainda como potencial consequência o comprometimento do estado nutricional”, diz a pesquisa de Basta e Orellana.
“Uma das causas da concentração [de pessoas] e sedentarização da população”, diz a pesquisa, “está relacionada ao acesso a bens de consumo e serviços, que hoje podem ser considerados indispensáveis para o modo de viver dos Yanomami (ferramentas de metal, fósforo, sandálias, sabão, lanternas, pilhas, roupas, atendimento de saúde, escola, entre outros)”. A dependência desses bens, por sua vez, “é produto da proximidade da pista de pouso e da presença permanente de não indígenas na região”.