Após passar anos boicotando eleições e apostando na criação de uma "institucionalidade paralela" para forçar uma mudança de governo, o principal setor da direita venezuelana dá sinais de esgotamento e decide se reconfigurar politicamente. Nas últimas semanas de dezembro, três dos quatro principais partidos da oposição encerraram o maior artifício político utilizado em sua estratégia desde 2019: a "presidência interina" de Juan Guaidó.
Reunidos no que chamam de "Assembleia Nacional legítima", uma espécie de legislativo paralelo composto por ex-deputados eleitos em 2015, 72 dos 104 ex-parlamentares que compunham o "governo interino" concordaram em desmontar o cargo fictício de Guaidó por considerar que "o processo político que se iniciou em 23 de janeiro de 2019 se debilitou e não é visto como uma opção real de mudança".
A decisão havia sido tomada durante a primeira votação que ocorreu em 22 de dezembro e foi ratificada em uma segunda reunião realizada no dia 30 do último mês. Guaidó e aliados próximos tentaram adiar o segundo encontro, mas não tiveram sucesso.
De acordo com a resolução elaborada pelos partidos Ação Democrática, Primeiro Justiça e Um Novo Tempo, a "presidência interina" e todos os supostos cargos ligados a ela serão encerrados quando a Assembleia Nacional paralela reiniciar suas atividades na próxima quinta-feira (5).
Na prática, toda a estrutura fictícia de embaixadores, ministros, assessores e diretores de empresas estatais será desmontada para dar lugar a uma comissão composta por cinco ex-deputados. O controle desse setor da oposição sobre os ativos que pertencem ao Estado venezuelano no exterior - que se converteram na principal fonte de renda do "interinato" - será mantido, já que as "direções interinas" da PDVSA e do Banco Central seguirão existindo.
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"A primeira coisa que deve ser dita sobre esse processo é que existe uma grave crise de liderança política nos setores de oposição da Venezuela", explica ao Brasil de Fato o cientista político venezuelano Luis Díaz. Para o pesquisador, a crise é reflexo do fracasso da estratégia de "pressão máxima" adotada nos últimos anos, que consistiu em boicotar eleições e pedir a Washington a ampliação do pacote de sanções para asfixiar economicamente o país e tentar derrubar o governo Maduro.
"Sob o ponto de vista retórico, se supõe que as sanções afetam exclusivamente o governo, mas na prática o bloqueio afetou toda a população, afetou o desenvolvimento econômico de todos os setores da sociedade venezuelana, inclusive de empresários e empreendedores", diz.
O esgotamento da política de sanções e da "pressão máxima" estaria por trás desse rearranjo de forças dentro da direita venezuelana, pois setores econômicos internos e externos passaram a encarar o bloqueio estadunidense como um obstáculo para seus próprios interesses.
"Neste momento existe a necessidade de uma mudança de alianças, de suspender sanções e sobretudo de levar a Venezuela de volta ao contexto internacional, principalmente pelo tema energético por conta das consequências do conflito entre Ucrânia e Rússia. A Venezuela volta a entrar nesse contexto internacional e, certamente, para o governo dos Estados Unidos, o interinato já era algo muito incômodo e difícil de sustentar", afirma.
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O governo do presidente Joe Biden se manifestou nesta terça-feira (03) sobre as mudanças políticas feitas pela oposição. Em coletiva de imprensa, o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Ned Price, afirmou que o país seguirá sem reconhecer a presidência de Maduro, mas se referiu a Guaidó como “membro da Assembleia Nacional” e não mais como “presidente interino”.
“Juan Guaidó continua sendo um membro da Assembleia Nacional de 2015, a qual nós reconhecemos porque é a última instituição eleita democraticamente no país. Nós seguiremos coordenando com ele como membro da Assembleia Nacional de 2015 assim como com outros atores democráticos na Venezuela", disse.
A posição marca um giro no tratamento de Washington em relação a Guaidó, que, até então, era considerado "presidente” pela Casa Branca. Apesar de ter dado alguns sinais de aproximação com o governo Maduro ao longo de 2022, Biden vinha mantendo a estratégia de seu antecessor, o republicano Donald Trump, de considerar o ex-deputado como chefe do “governo interino”.
Citgo e ouro: quem controla?
O papel dos EUA também será decisivo para o futuro das empresas e dos fundos venezuelanos que estão bloqueados no exterior. Isso porque foi o reconhecimento dado por Washington e por países europeus aliados ao “interinato” que permitiu que os aliados de Guaidó controlassem esses ativos.
Por meio da "direção interina" da PDVSA, a subsidiária da estatal petroleira venezuelana Citgo, que possui uma rede de refinarias e postos nos EUA cujo patrimônio é avaliado em cerca de 10 bilhões de dólares, passou às mãos da oposição que era liderada por Guaidó. Já o "Banco Central" da oposição é o responsável por gerir fundos e reservas como, por exemplo, as 31 toneladas de ouro que estão retidas no Banco da Inglaterra.
Nesta terça-feira, o porta-voz do Departamento de Estado também se referiu aos ativos venezuelanos no exterior e disse que o programa de sanções continua, mas reconheceu a necessidade de discutir o tema com os opositores. “Entendo que os membros da Assembleia Nacional estão discutindo entre eles como irão lidar com os ativos no exterior. Nós vamos continuar discutindo esse tema com eles", disse.
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Para Diaz, é improvável que Washington abra mão de ter alguma influência no futuro desses ativos, pois devolver as empresas e os fundos ao Estado venezuelano implicaria reconhecer a autoridade do governo Maduro, algo que o pesquisador acredita que não está no horizonte da Casa Branca.
“As juntas interinas da PDVSA e do Banco Central serão mecanismos que seguramente o governo dos Estados Unidos vão reconhecer para manter uma legitimidade porque não pode, no seu ponto de vista político, manter uma relação direta com o governo de Nicolás Maduro. Acho que existirá uma relação chamada de duas faixas, ou seja, abertamente não irão reconhecer Maduro, e sim os setores da oposição, mas pragmaticamente buscarão mais aproximação e pontos de interesses comuns com Caracas", diz.
A devolução de empresas e reservas bloqueadas no exterior é uma das principais reivindicações do governo na mesa de negociações com a oposição instalada no México e retomada em novembro deste ano. Na última rodada, a delegação opositora concordou em desbloquear cerca de 3 bilhões de dólares que serão destinados a investimentos no sistema público de saúde, no serviço de energia elétrica, na infraestrutura escolar, em programas de alimentação e atenção a emergências causadas por desastres naturais.
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Além disso, o governo exige a suspensão de todas as sanções e a liberação do empresário Alex Saab, detido nos EUA acusado de lavagem de dinheiro e corrupção. Já a oposição pede a definição de normas e cronograma eleitoral para estabelecer as condições da próxima eleição presidencial prevista para 2024.
Rachas internos ameaçam primárias
Fragmentada em muitos partidos de distintos espectros ideológicos, a oposição venezuelana pode ser classificada em ao menos três grandes setores. Há um setor que abriga legendas de centro e de direita, que ocupa assentos no Parlamento, participa de processos eleitorais e se reúne na chamada Aliança Democrática, coalizão que hoje possui a bancada minoritária na Assembleia Nacional.
Já o setor liderado por Guaidó era conhecido até então como G4, por agrupar os quatro maiores partidos de direita do país. Essa fração opositora foi responsável pela construção do “interinato” e, após boicotar a maioria dos processos eleitorais nos últimos anos, hoje não possui representação legislativa.
Além disso, uma fração da esquerda radical se opõe ao governo Maduro e tem no Partido Comunista da Venezuela (PCV) seu principal representante partidário.
Desde o início de 2022, o G4 vinha defendendo a realização de eleições primárias para definir um candidato presidencial que pudesse unificar suas propostas e, supostamente, chegar com mais força ao pleito de 2024. Apesar de já terem definido um prazo limite para a realização da votação - junho de 2023 - diversos empecilhos já pareciam impossibilitar que os partidos desse setor da direita chegassem a um consenso sobre as regras da eleição.
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Agora, com as mudanças políticas internas e o fim do “mandato” de Guaidó, analistas veem as primárias cada vez mais distantes. O advogado venezuelano Leonardo Morales, ex-reitor do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do país e dirigente do partido opositor Avanzada Progressista - que integra a coalizão Aliança Democrática - afirmou ao Brasil de Fato que, diante da atual crise instalada no G4, o mais provável é que as eleições primárias não aconteçam.
“Claro, temos que esperar os desdobramentos, mas se a pressão interna se converter em uma espécie de granada que fragmente esse setor da oposição para vários lados, não terá sentido nenhum realizar primárias”, afirma.
Morales também diz não acreditar que as primárias poderiam unificar os opositores, "porque estão buscando uma solução técnica para resolver um problema que na verdade é político”. Além disso, ele descarta a possibilidade de um acordo entre o G4 e a Aliança Democrática, por considerar que é preciso mais tempo para se construir relações de confiança entre os atores.
“Em 2018 nós pudemos trocar de presidente, não trocamos porque o G4 decidiu pela abstenção. Logo depois, para a Assembleia Nacional, eles poderiam ter tido uma representação importante, talvez até a maioria outra vez, e não foi possível porque uma parte da oposição decidiu se abster. Então existia uma relação muito incômoda que precisava de tempo para encontrar um acordo, que ainda precisa de tempo, ou seja, não é um processo simples, é preciso que comecemos a ter confiança, que a oposição comece a ter confiança entre si”, diz.
Edição: Arturo Hartmann