A Amazônia que conhecemos é resultado da existência de comunidades ancestrais, que viveram na região há pelo menos 8 mil anos. Estudos indicam que de 8 a 10 milhões de pessoas ocuparam o território, muito antes da invasão portuguesa e da delimitação do que hoje é o Brasil.
Não é uma percepção nova. Achados arqueológicos das últimas décadas já vinham apontando a presença de sociedades com práticas de agricultura e comércio e regiões densamente povoadas. Ainda assim, a imagem da floresta está associada à natureza intocada e à ideia de local inóspito para a presença humana.
No livro Sob os tempos do equinócio: Oito mil anos de história na Amazônia Central, o arqueólogo Eduardo Góes Neves desmonta esse mito.
Com base em uma pesquisa que desenvolve há mais de quinze anos, ele traz elementos da vida de sociedades responsáveis pelo manejo que influenciou a biodiversidade encontrada hoje na floresta.
Ao mesmo tempo, o pesquisador ressalta na obra o próprio trabalho da arqueologia e como a área vem abrindo espaço, ainda que aos poucos, para “a elaboração de uma história indígena de longa duração.”
Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, Neves afirma que não é possível entender o Brasil de hoje sem conhecer essa história ancestral.
“Nós aprendemos na escola, até hoje é repetido para nós, que o Brasil foi descoberto no dia 22 de abril de 1500. O Brasil é um país que tem data e certidão de nascimento. A certidão é a carta do Pero Vaz de Caminha. Mas, na verdade, a arqueologia mostra para nós que essa história é muito mais antiga, que ela tem milhares de anos. Certamente mais de 12 mil anos, talvez mais de 20 mil anos. Esse espaço que o Brasil ocupa hoje foi profundamente modificado pelos povos indígenas.”
Leia a entrevista na íntegra abaixo ou ouça no tocador de áudio no início desta matéria.
Brasil de Fato: É possível afirmar que a biodiversidade de hoje na Amazônia teve o manejo e foi influenciada pela agricultura dessas populações ancestrais?
Eduardo Góes Neves: Quem anda pelo interior da Amazônia já deve ter visto o que chamamos de terra preta ou terra preta de índio, que é muito comum. São solos escuros, muito férteis, muito bons para fazer roça.
Nós sabemos que a terra preta foi formada pelos povos indígenas no passado. É um indicador importante. Essas áreas de terra preta ocupam talvez 2% de toda a área da bacia amazônica, que é muito grande.
Outra coisa, as espécies de árvores. Tem muitas árvores de algumas espécies que chamamos de hiperdominantes, que são mais frequentes. É o caso da bacaba, do açaí do mato, do murumuru, do próprio cacau. Uma boa parte delas são plantas que têm sido consumidas e cultivadas pelos povos indígenas, ao longo dos milênios.
Existe um consenso entre nós, arqueólogos, de que não dá para separar a presença humana indígena e, depois, ribeirinha e quilombola, da história de formação desse bioma tão complexo. Não podemos também pensar no futuro da Amazônia sem pensar no futuro dos povos tradicionais que vivem ali. Acho que essa é a grande são lição que a arqueologia.
Que detalhes o livro traz sobre a vida dessas populações que habitaram a Amazônia?
Eu trabalho há muitos anos na Amazônia e sou professor universitário. Normalmente, na academia, nós somos treinados para divulgar o conhecimento que nós produzimos entre os nossos pares, por meio de artigos científicos, muitas coisas em inglês.
Isso é muito importante. Mas eu senti falta de uma obra que pudesse trazer essas informações, numa linguagem acessível e em português, uma vez que eu trabalho numa universidade pública, sustentada com dinheiro público. O papel fundamental que temos que ter também na universidade é tornar esse conhecimento acessível para todo mundo.
O livro mostra essa história ancestral, essa história antiga. Não gosto de falar em pré-história, porque dá uma ideia de que não tinha história aqui. Que foram os europeus que trouxeram a história para nós.
Na verdade, não. Nós temos uma história antiga que é muito rica, e isso vemos na Amazônia Central. São diferentes povos que viveram ali. Sabemos que eram diferentes pelo tipo de objeto que produziam, que variava muito, de decoração, de forma, cerâmica diferentes.
Também pela maneira de ocupação do espaço. Alguns viviam em aldeias de formato circular, outros viviam em aldeias com grandes aterros, plataformas de terra, outros viviam em aldeias pequenininhas.
Os contrastes na produção material, nos objetos, as formas de ocupação do espaço foram muito diferentes. Essas diferenças nos permitem dizer que eram povos diferentes que viveram ali.
Eu arrisco algumas hipóteses. Tento fazer algumas correlações entre esses povos antigos da região e os povos indígenas contemporâneos. Porque os dados de DNA, por exemplo, mostram para nós que existe uma relação histórica entre os povos indígenas contemporâneos e esses povos que estão representados para nós nos sítios arqueológicos que nós escavamos.
Tem algumas ideias que eu tento colocar no livro, mas acho importante, na arqueologia, tentarmos fazer sempre essa correlação entre o passado. Se não, parece que essa esses povos desapareceram, que essa história acabou e que essa luta acabou. Na verdade, ela continua.
É uma questão é fundamental para o Brasil de hoje entender e promover uma reconciliação. Promover um entendimento com essa herança que é tão importante para nós, que é a herança dos povos indígenas e dos povos da floresta.
Que reflexões o livro pretende promover sobre as descobertas dessas sociedades ancestrais?
O que está acontecendo na Amazônia — desde a chegada dos Europeus, na época da (exploração) da borracha, durante a ditadura militar e agora voltou com muita força desde 2016 — é um ataque à Amazônia e aos seus povos.
Esse debate sobre a Amazônia está baseado numa falsa premissa, a meu ver. Uma ideia que separa a possibilidade de ter a proteção da Amazônia e a presença humana. Não estou falando que temos que derrubar a floresta, plantar soja ou capim, porque vai ser uma catástrofe. Já está sendo uma catástrofe.
Mas o que sabemos é que não deve haver uma contradição entre a proteção da Floresta e a ocupação dos seus povos tradicionais. Se olharmos para o mapa da Amazônia, no arco do desmatamento, o que sobrou de floresta basicamente são as terras indígenas ou as terras protegidas.
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Temos que olhar para os povos da floresta e aprender com eles. As maneiras pelas quais eles manejam os recursos, trabalham com a natureza. Esse tipo de informação pode ser importante para pensarmos em uma Amazônia que seja mais interessante e mais justa.
Talvez a grande lição seja que não deve existir uma contradição entre a presença humana e a preservação da floresta. Só que essa presença humana tem que estar mediada e organizada a partir de outra lógica. Não essa lógica predatória que se construiu no Brasil, principalmente depois da ditadura militar.
Frente à tecnologia disponível, tanto ancestral quanto atual, o modelo exploratório pode ser considerado um atraso?
Temos a produção científica e a ciência dos povos tradicionais. Do ponto de vista da política pública, nós já aprendemos a fazer isso. Se olharmos os dados do desmatamento, por exemplo, eles caíram acentuadamente há mais ou menos 15 anos.
Sabemos como fazer e já lideramos isso no mundo. Perdemos isso por causa de uma lógica política que, a meu ver, é uma lógica política oportunista, de curto prazo, que não gera riqueza para ninguém em longo prazo. Só gera destruição e muita miséria.
Quais são as perspectivas para o futuro dos estudos sobre os povos ancestrais da Amazônia, principalmente levando em consideração o desmantelamento das políticas de apoio à pesquisa nos últimos anos.
Eu tenho uma situação privilegiada, porque estou em São Paulo, onde existe uma fundação pública chamada Fapesp, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Essas pesquisas que faço têm sido financiadas por essa instituição pública aqui de São Paulo e isso dá um certo conforto, digamos assim.
Mas eu vejo meus colegas e minhas colegas que estão em outras universidades. Principalmente no norte do Brasil. Pessoas maravilhosas, excelentes cientistas, que estão passando e passaram por dificuldades muito grandes.
São dificuldades que tem a ver com o financiamento à pesquisa e com o ataque que o sistema de educação pública de nível superior sofreu durante os últimos anos. Não foi só falta de dinheiro para manter as universidades funcionando, mas também para as bolsas dos alunos.
O Brasil tem feito uma política de ação afirmativa, que tem funcionado muito bem e provê o acesso à universidade por alunos que, historicamente, nunca tiveram acesso à educação pública superior. Quilombolas, indígenas, ribeirinhos, famílias de baixa renda. Mas o que que adianta promover o acesso a essas pessoas se elas não tiverem condições de permanecer na universidade recebendo bolsa.
Nós passamos por uma época muito difícil no Brasil. A ciência foi criminalizada e foi atacada, o conhecimento foi combatido. Existe uma espécie de ignorância orgulhosa, que bate no peito e que se estabeleceu.
As perspectivas que nós temos não são fáceis no curto prazo. Mas, certamente, esse ataque irracional e criminoso, que aconteceu contra a educação, a ciência, os povos indígenas, as populações tradicionais, vai parar de acontecer.
Edição: Glauco Faria