"Candidato do partido Peru Livre ainda não foi declarado vencedor porque pedidos de contestação de milhares de votos e centenas de atas das assembleias de voto continuam pendentes. Ele obteve 50,125% dos votos válidos, contra 49,875% de Keiko Fujimori."
Peru encerra contagem oficial de votos de eleição presidencial, com Castillo na liderança.
Esta era a manchete do periódico globo.com de 15/06/2021.
Os problemas eram mais que muitos. Um país dividido, eleitoralmente, entre o país urbano, com uma capital, Lima, a votar maioritariamente à direita, na oligarquia, capital onde reside um terço da população, e um país rural onde residem dois terços da população, a votar maioritariamente à esquerda. A votação massiva de Lima na direita desequilibra muito a correlação de forças.
Eis quando senão um professor primário rural, ele é do norte do Peru, que liderou uma greve sindical de professores, se postula como candidato num mar de vários candidatos à presidência do Peru, onde quem aparecia como "elegível" era nada mais nada menos que a filha de Alberto Fujimori, ainda preso pelos vários crimes graves cometidos, incluindo esterilização forçada de mulheres peruanas, duma forma que os nazis invejariam, pelo cinismo e eficácia.
Um país rico, a sua oligarquia vive entre Lima e Miami, e a grande maioria da sua população é muito pobre. Peru, o segundo produtor mundial de cobre, o quarto produtor mundial de ouro e prata, uma produção de petróleo de 40,270 barris por dia (dados de 2018), agricultura e pescas… Um PIB de 226,8 mil milhões de dólares (2019), segundo o Banco Mundial.
Com 33 milhões de habitantes, a capital Lima tem cerca de 10 milhões de habitantes, é uma típica grande metrópole latino-americana, com todas as características sociais e económicas usuais em todas as grandes metrópoles desse continente. As principais etnias são a quíchua (47%), a mestiça (32%) e a branca (12%). As línguas oficiais são o castelhano, o quíchua e o aymara.
Mandato marcado por ofensiva constante da direita e fragmentações na maioria presidencial
Recapitulando: Pedro Castillo obteve 50,125% dos votos válidos, contra 49,875% de Keiko Fujimori.
Este exercício da presidência tem sido objecto de muito "acidente".
Ofensiva constante, no Congresso contra o seu mandato, mudanças constantes de membros do governo, dissonâncias entre a coligação de partidos que suportaram a sua maioria presidencial e o presidente também levaram a algumas fragmentações. Sobretudo com o Partido Perú Libre.
Desde o inicio do seu atribulado mandato e com muitas hesitações, diga-se, altos e baixos, mas com quem a maioria do país e das populações, sobretudo as populações de fora de Lima, rurais, e muitas urbanas de cidades mais pequenas se identifica.
Uma das necessidades básicas para um bom exercício do seu mandato, com vista até a uma reeleição, teria sido o de alargar a sua base social de apoio, sobretudo em Lima, junto de populações mais urbanizadas, onde reside um terço do eleitorado.
Não o conseguiu. Pedro Castillo, que me convidou para ser observador internacional nas eleições presidenciais, convite amável a que acedi, integrado na delegação do Partido da Esquerda Europeia, não é um politico. É antes mais um professor rural e um sindicalista. Com um forte pendor de preocupação social e com bastante apoio nesse meio.
Ganhou e a guerrilha da direita já o tinha tentado destituir várias vezes no Congresso sem o conseguir. O "Lawfare" já utilizado em outros países, também, como foi o caso do Brasil, Equador, Bolívia, Argentina.
Desde a tomada de posse, também o presidente eleito Pedro Castillo esteve constantemente sobre a mira da "perseguição" ilegítima do aparelho judicial, nunca tendo conseguido, este, os seus intentos.
Decisão inadequada conduziu à rotura institucional
Anunciava-se mais uma votação para destituir o presidente eleito, no Congresso dos deputados. Este, o presidente Pedro Castillo, com alguma inabilidade política própria de quem chegou à política com esta eleição, e por algumas decisões controversas na escolha de renovadas equipas de governantes, com a sua feição cultural, algo tradicional e conservadora, que vê reduzida a sua base de apoio, quando o aconselhado era o inverso, no mesmo dia dessa votação decreta a dissolução do congresso a nomeação de um governo de emergência nacional, decreta o estado de excepção, com vista à marcação de eleições para uma Assembleia Constituinte e à regularização, então, da vida democrática. Essa eleição, de uma Assembleia Constituinte, tinha sido uma das promessas eleitorais.
Não querendo entrar aqui em discussões sobre direito constitucional peruano, que não conheço, no entanto sou informado de que tal decisão presidencial não seria aconselhada, nem democraticamente viável. Teriam de ser outras as circunstâncias para tal decisão ter o seu legal enquadramento constitucional, como grave crise nacional ou grave crise de segurança ou soberania nacional.
Certamente existindo um "Tribunal Constitucional", esse seria o repto de tal decisão, que de resto não foi acatada por nenhuma instituição do país. Uma decisão pouco adequada e um incumprimento da mesma, estava dada a rotura institucional.
Quem aconselhou ao presidente tal caminho está por se saber. Passo seguinte, o Congresso vota a destituição do presidente e se, anteriormente, nunca tinha conseguido os votos necessários, consegue-os desta vez.
Vagando o lugar de presidente sobe, com o acordo do Congresso, o vice presidente, neste caso uma mulher, Dina Boluarte, à presidência.
Relatava a Radio France International: "O presidente peruano, Pedro Castillo, continuava detido nesta quinta-feira (8) em uma delegacia de Lima, um dia após ser destituído do cargo pelo Congresso. O chefe de Estado foi substituído pela sua vice-presidente, Dina Boluarte, duas horas depois. Castillo ameaçou dissolver o Parlamento, "manobra politica" que foi considerada como uma tentativa de golpe de estado."
Relatava ainda: "A detenção de Castillo, por "incapacidade moral permanente", foi aprovada nesta quarta-feira (7) e anunciada pela procuradora Marita Barreto. Ele ficou apenas 17 meses no poder. Imagens divulgadas pela imprensa local mostram o presidente sentado em uma poltrona, cercado de policiais e representantes da Justiça. A destituição de Castillo foi transmitida ao vivo na TV e aprovada por 101 dos 130 parlamentares, dos quais 80 da oposição."
E ainda: "Castillo está no poder desde julho de 2021 e é alvo de seis investigações por corrupção e tráfico de influência, que também atingem membros de sua família. Esta foi a terceira tentativa do Congresso de afastar o presidente – ele tem 70% de taxa de rejeição popular."
Dada a delicada situação, a detenção na simples forma policial, carecerá de legitimidade institucional protocolar?
Dada a rotura institucional havida aconselha-se bom senso e condução no estrito caminho da democracia e da legalidade democrática.
O "país de Pedro Castillo" já tomou as ruas
A detenção do anterior mandatário numa esquadra policial de forma simples e ao arrepio de qualquer cumprimento das normas protocolares institucionais judiciais não fazem adivinhar tempos fáceis. A justiça para ser justa e eficaz tem de ter também na forma algo de entendível pela cidadania e não pode ser vista como "ajuste de contas".
Com efeito, o "país de Pedro Castillo" já tomou as ruas e aeroportos em várias regiões do país e exige a libertação imediata do presidente deposto, a dissolução do Congresso, a realização de uma eleição para uma Assembleia Constituinte e parecem não desmobilizar perante enfrentamentos com as "forças policiais". A existência já de mortos nesses confrontos poderá radicalizar a situação. Algumas forças partidárias de esquerda juntam-se à reivindicação de eleições antecipadas já.
A imprensa, "La República " informa: ..."Aumentam as mobilizações em Lima e nas regiões para exigir o fecho do Congresso. No interior e na capital, cidadãos começam a organizar-se e a protestar para pedir também a antecipação das eleições gerais. Na noite passada, a estrada Panamericana Sur foi bloqueada em Ica, na zona do Bairro Chinês".
Esta mobilização cidadã tem uma característica, foi o povo anónimo da província, aqueles que têm vivido na margem do desenvolvimento que iniciaram as mobilizações de indignação perante a prisão de Pedro Castillo. Depois se juntaram centrais sindicais e outros partidos políticos peruanos.
Está convocada uma greve geral ilimitada e a situação continua a radicalizar-se.
Terá sido aberta a caixa de pandora das botas militares, de novo?
A nova presidenta garante o pedido ao Congresso que trabalhe na antecipação de novas eleições para o inicio de 2024. Constata-se uma crise institucional nos regimes presidenciais/parlamentares existente em muitos países da América Latina, que se manifestou no Brasil, no Chile, agora no Peru, sendo que nas Honduras a maioria presidencial foi acompanhada por uma maioria parlamentar, embora, depois, um sector tenha tentado romper essa maioria, mas que foi resolvido a seu tempo.
Uma maioria presidencial que não é seguida de uma maioria parlamentar, e dadas as dificuldades e as regras eleitorais de cada sistema, tornam inviável uma governação nestas condições. Estes sistemas liberais democráticos têm um problema de governabilidade decorrente do presidencialismo.
A situação tende a agravar-se no Peru. Já existem enfrentamentos militares armados nas ruas e em algumas regiões do país. O clamor é sobre a dissolução do Congresso, a libertação imediata de Pedro Castillo e a realização, já, de eleições para uma Assembleia Constituinte.
Algumas regiões militares estão a colocar as forças na rua decretando a suspensão dos direitos constitucionais e a darem ordens para disparar a matar sobre os manifestantes.....os militares a iniciarem uma governação ao arrepio das forças políticas e da presidenta designada, ao que se sabe.
Terá sido aberta a caixa de pandora das botas militares, de novo? A oligarquia mafiosa agradece.
É o que veremos nos próximos dias, pois a situação ainda está muito indefinida e confusa.
A ofensiva popular deve manter-se no quadro das exigências democráticas, de novas eleições, de uma Assembleia Constituinte e manter as ofensivas representativas e as mobilizações cidadãs nas ruas, evitando que a oligarquia e a extrema-direita possa fazer algum aproveitamento político da situação.
Pedro Castillo deve ter um tratamento justo e todo o direito à defesa, não se entendendo a necessidade de se manter detido, pois não pode já nada institucionalmente e mesmo quando podia não foi obedecido, pelo que a sua libertação poderia acalmar alguns ânimos e responder a algumas exigências populares, não constituindo, por isso, nenhum perigo.
Para que um país rico não possa estar cheio de pobres e para que uma oligarquia parasitária, que vive entre Lima e Miami, não continue a manter o domínio económico nesta realidade desigual, é importante que as forças da democracia, da esquerda, se unam na defesa dessa mesma democracia e de um programa económico e social claramente anti-neoliberal, passando a ser a defesa da soberania sobre as suas riquezas naturais a melhor garantia da aplicação dessas medidas.
Faço votos que as mobilizações populares saiam vitoriosas no respeito pela paz, pela democracia e pela majoritária vontade popular.
Assembleia Constituinte, eleições antecipadas o mais rápido possível, tratamento humano e condigno, julgamento justo com todas as garantias de defesa para o anterior presidente, com libertação imediata, parecem-me exigências justas e mais que razoáveis.