Trabalho precarizado

Em evento com Lula, catadores de todo o país cobram participação nas políticas de reciclagem

Em defesa da profissão e do meio ambiente, cerca de dois mil catadores, público de maioria negra, se reuniram em SP

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O Natal dos Catadores de Materiais Recicláveis aconteceu no Galpão do Armazém do Campo, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).   - Gabriela Moncau

Em um evento com a presença do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em São Paulo, na manhã desta quinta-feira (15), o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) reivindicou que seja recriado um comitê interministerial dentro da Secretaria-Geral da Presidência para tratar de políticas públicas para a cadeia da reciclagem no país. O Natal dos Catadores com Lula, organizado também com o Movimento Nacional da População em Situação de Rua, já é tradicional e chega à sua 19ª edição.

Maria Nazaré dos Santos, com 62 anos de idade e 18 de trabalho como catadora em Volta Redonda (RJ), participa do evento com Lula pela terceira vez. Pausou o cartaz que escrevia junto com uma colega para expor ao Brasil de Fato que as condições de vida da sua categoria melhorariam se simplesmente se cumprisse a Lei Federal 12.305/10. Ela dispõe sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos mas, segundo Maria, é ignorada por boa parte dos municípios.

Na cartolina apoiada no banco, a demanda endereçada ao "Senhor presidente": "que tenha nas três esferas de governo representações de catadoras para que os mesmos possam atuar diretamente nas políticas públicas para nossa categoria".

"Em meio a pandemia, nós tivemos muitos retrocessos. Nossa questão de luta é a sustentabilidade, o meio ambiente e a parte emocional, financeira e social dos catadores", conta Maria Nazaré, que vive sozinha e acorda às 6h para trabalhar, junto com outras 12 mulheres e dois homens, na Cooperativa Cidade do Aço, formalizada em 2012.

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Reciclagem x incineração 

"Nós não podemos perder o foco, temos que lutar constantemente. Porque hoje a catação não é mais um meio de ganho, é uma profissão realmente", afirma Maria Nazaré. "Somos pioneiros", avalia, "e muitas pessoas e empresas querem tomar o nosso trabalho. Isso torna nossa luta cada vez mais necessária. É um leão por dia que nós temos que matar. E não esquecer nunca que a natureza está gritando".


As catadoras cariocas Maria Nazaré e Ana conversam sobre a frase que estamparão no cartaz / Gabriela Moncau

Uma das expectativas de Maria Nazaré é que as gestões municipais sejam pressionadas a largar a via da incineração do lixo. "Polui cada vez mais nosso meio ambiente, nosso ar, nossa água. A incineração é um perigo constante que ronda nossas cabeças", define.

Entre as demandas da categoria apresentadas ao presidente eleito está a revogação dos decretos 10.936/2022, 11.043/2022 e 11.044/2022. Na visão do MNCR, essas normativas dificultam que embalagens sejam prioritariamente feitas de materiais reciclados e deixam de impor que empresas optem por organizações de catadores para fazer esse serviço. Segundo o movimento, catadores são responsáveis por 90% de tudo o que é reciclado no país.

Compromissos de Lula 

"Sei da tentativa de facilitar para que os empresários pudessem ocupar o lugar de vocês", afirmou o presidente eleito em sua fala no evento, que reuniu catadores de todo o Brasil e também de países como Panamá, Chile e Argentina.

"Vamos fazer o que tiver ao meu alcance, mudar o decreto que tiver que mudar, fazer a lei que precisar fazer, para dar a vocês a cidadania que vocês merecem", disse Lula.

O futuro presidente também se comprometeu a, em 2023, comparecer a uma reunião a ser organizada pelo padre Júlio Lancellotti para tratar das condições das pessoas em situação de rua.

Luta de gerações 

Há 12 anos, Aline das Graças Vieira, de 36 anos, tem a rotina de acordar às 6h, na cidade de Betim (MG), para trabalhar, "pegando pesado". Soube do trabalho por meio de uma amiga - "gostei, lógico". "Hoje em dia eu trabalho na Ascapel (Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis de Betim) e faço parte do movimento", relata, segurando a bandeira do MNCR junto com Katiane Stephanie Almeida dos Santos, com quem compartilha a idade e a origem mineira. 


Aline e Katiane viajaram de Minas Gerais para a capital paulista para participar da Expocatadores e do Natal com o presidente eleito / Gabriela Moncau

Mãe de quatro filhos, Katiane atualmente só consegue trabalhar meio período. "Devido à política do Bolsonaro, muitas escolas não são integrais. Então aquela mãe que necessitava de trabalhar de 8h às 18h da tarde ficou limitada", critica. Mas afirma ter planos de terminar os estudos, se preparar para o Enem e cursar Gestão Ambiental.

Katiane é a segunda geração da família que traz o sustento para casa por meio do trabalho da reciclagem. Sua mãe é a fundadora da Associação dos Catadores e Recicladores Bom Jesus, da cidade de Vespasiano (MG). "Fui criada, sustentada, através do trabalho honesto que a minha mãe sempre exerceu. Ela também sempre fez parte da mobilização, buscando recursos para os catadores", conta, orgulhosa.

Sentada ali ao lado, com uma longa trança grisalha apoiada no ombro, estava a mãe em questão. Nascida em Belo Horizonte (MG), Maria Sueli dos Santos, hoje com 68 anos, começou "na catação" ainda criança, aos 12, "para ajudar a comprar o pão". Com ela, eram seis crianças cujas barrigas era preciso encher. O número de filhos fazia com que sua mãe se referisse, sempre, ao título do romance de Maria José Dupré: Éramos seis.


O trabalho de reciclagem sustentou os filhos de Maria Sueli e, agora, também os netos / Gabriela Moncau

O trabalho que começou, literalmente, como um ganha pão para ajudar em casa se tornaria sua profissão e ativismo. "Já tínhamos mais de 20 anos na rua", conta Maria Sueli, se referindo ao trabalho avulso de catadora, quando, em 2005, criou a cooperativa. "Ainda falta muito", afirma, com a avaliação de quem está há décadas na caminhada: "mas é uma profissão que vem sendo valorizada".

Edição: Nicolau Soares