Entrevista

Vladimir Cerrón: "Castillo caiu porque o Peru Livre e a população o viram como traidor"

Secretário-geral do partido Peru Livre disse ainda que a nova presidente Dina Boluarte se tornou "refém da direita"

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Cerrón e o então presidente Pedro Castillo - Agencia Andina

Para entender a crise política no Peru, é necessário compreender a relação do ex-presidente Pedro Castillo e de sua sucessora, Dina Boluarte, com o partido Peru Livre, pelo qual ambos foram eleitos em junho de 2021.

Por essa razão, também é importante conhecer as opiniões do neurocirurgião Vladimir Cerrón, que é secretário-geral do Peru Livre, partido que se afastou de ambos os políticos, ou melhor, que viu ambos os políticos se afastarem da sua bancada durante os últimos 16 meses, desde as eleições de 2021.

Cerrón é um dos fundadores do Peru Livre, e um dos principais idealizadores do programa de governo que venceu as últimas eleições presidenciais peruanas. Foi duas vezes governador do departamento de Junín, na Zona Central do Peru, e é irmão do congressista Waldemar Cerrón.

Nesta quarta-feira (07/12), Castillo, que renunciou à sua militância partidária em julho deste ano, foi destituído da Presidência do Peru. Antes disso, tentou um autogolpe, ao anunciar a dissolução do Congresso e a formação de um governo de exceção, mas as medidas não foram acatadas pelas demais instituições peruanas. Por essa razão, ele acabou preso e está sob investigação do Ministério Público. Boluarte, por sua vez, assumiu o cargo em seu lugar.

Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, Cerrón afirmou que Castillo foi alvo “de um golpe de Estado da extrema direita”. Porém, ele acredita que esse cenário foi propiciado, principalmente, pelo fato de que o ex-presidente “nunca colocou em prática o programa de governo que foi eleito nas urnas, foi perdendo a sua bancada, o seu partido, a sua principal força de resistência e a possibilidade de superar esta crise”.

Sobre Boluarte, ele disse suspeitar que “ela já é refém da direita, que só a necessita por um tempo, depois irão derrubá-la”.

Leia a entrevista na íntegra:

Opera Mundi: Você disse no Twitter que a assembleia extraordinária realizada pelo partido Peru Livre considerou que houve um golpe de Estado da extrema direita nesta semana. Que elementos sustentam essa conclusão?

Vladimir Cerrón: Efetivamente, o que ocorreu no Peru é um golpe de Estado perpetrado pelo hiperparlamentarismo direitista, em sua terceira tentativa. Não houve um dia de trégua para o governo de Pedro Castillo desde que ele ganhou o primeiro turno eleitoral. A instalação do programa de governo do Peru Livre, prometido e aceitado pelo povo na campanha eleitoral, é o grande temor da oligarquia peruana. Os organismos de Justiça, os meios de comunicação hegemônicos, os serviços de inteligência, o poder empresarial e financeiro decidiram declarar guerra ao partido e ao governo.

Em sua primeira fase, a tarefa foi separar o governo do partido e depois passaram a atacar o governo até liquidá-lo. A pesar das advertências, Castillo caiu ingenuamente no jogo de acreditar que era o partido que fazia ele perder popularidade, como os meios diziam. Agora vemos que o único beneficiado com a queda de Castillo é a direita fascista, uma direita que não admite dúvidas, uma direita macartista, uma direita que derruba outro presidente que exerce governo direitista moderado. Dina Boluarte anunciará o seu Ministério e minha previsão é que ela ficará refém [da direita].

Qual é a sua avaliação sobre o que aconteceu com Castillo? Que balanço você faz do seu período na Presidência do Peru?

Meu balanço é que Pedro Castillo contribuiu para que o povo perdesse uma boa oportunidade de mudar as estruturas do país. Nunca quis aplicar o programa de governo com o qual ganhamos as eleições. Ele traiu as promessas de convocar uma Assembleia Constituinte, de renegociar os contratos de lei, de nacionalizar recursos estratégicos, de eliminar os monopólios, descentralizar o país, entre outras.

[Castillo] não tentou nada disso, se rodeou de familiares e amigos do seu povoado, que cometeram crimes e isso abriu uma brecha, o tornou vulnerável. Na verdade, por mais doloroso que seja reconhecer, o que se mudou [com sua queda e a posse de Boluarte] é que se trocou um presidente neoliberal moderado por um extremo. Castillo nunca enfrentou o sistema, os bancos continuam roubando o povo, as empresas usufruem de concessões que lesam a Pátria, as mineradoras continuam ficando com 70% das utilidades, e tudo isso enquanto ainda somos um país com analfabetos, com tuberculosos, campeões em mortalidade por covid-19, com direitos que se transformaram em mercadoria, etc.

Seu governo esteve muito longe de ser um de esquerda. No final, esteve rodeado de apristas [do partido APRA, espécie de “centrão” do Peru], fujimoristas, apepistas [da APP, partido de extrema direita], etc, que o levaram a esta crise. Com dois meses de governo, ele decidiu prescindir do seu partido, Peru Livre, e pior, conspirou contra o partido, fracionando sua bancada, convidando os seus membros à dissidência, criando outros partidos, entre outras coisas.

Como você avalia as decisões que Castillo tomou nesta última crise, desde a apresentação da moção de vacância até este os acontecimentos desta última quarta-feira?

Foram decisões sem objetividade, alheias a uma análise histórica e dialética, um suicídio político, com grande dose de influência e ingenuidade. [Castillo] se precipitou, foi desesperado, não havia votos suficiente para [aprovar] a destituição. No pior dos casos chegaria a 82, mas não aos 87.

Os que tinham o botão vermelho [para derrubar Castillo] éramos nós, do Peru Livre, e em nossa última reunião de bancada com o partido foi decidido que apoiaríamos o presidente, apesar de sua inconsequência, votaríamos contra a destituição e anunciamos a decisão um dia antes, através do porta-voz Flavio Cruz, e no dia seguinte dissemos isso a ele pessoalmente. Mas, ao que parece, vazou uma informação de que a bancada do Partido Magisterial, legenda que ele havia criado, teria negociado com a sucessora. Isso desesperou o mandatário.

Diante desse fato, ele decidiu seguir os conselhos do “presidente de fato” Aníbal Torres, da premiê Betssy Chávez, que tem muita influência em sua vida, e do congressista [Guillermo] Bermejo, que tomou conta do círculo interno do presidente, de forma oportunista, e foi com a assessoria desse trio que ele decidiu pelo fracassado autogolpe, sem ter suporte político, nem militar, nem econômico, nem social para isso.

A vitória de Castillo se deu em uma disputa muito acirrada contra Keiko Fujimori no segundo turno, apesar de que, no primeiro, o candidato venceu de forma tranquila. Já se esperava então que Castillo teria uma oposição hostil contra si? O mandatário estava preparado para enfrentar uma resistência política forte ao seu programa e suas decisões?

Sabíamos que a luta seria duríssima e por isso era isso crucial ganhar as massas populares. Castillo chegou à Presidência por vontade do povo, um triunfo histórico porque era a primeira vez que a esquerda marxista-leninista-mariateguista ganhava um processo eleitoral em 200 anos.

No segundo turno, quando Castillo recebeu o assédio, o caviar socialdemocrata, para passar de ser revolucionário a reformista, aí começaram as suas desgraças. Não quis aplicar o programa do Peru Livre, preferiu negociar, fazer o “toma lá dá cá” com as bancadas opositoras, dividiu a nossa bancada em quatro, sendo que era a mais numerosa, e com isso deu a vantagem ao fujimorismo, que se converteu em primeira força política parlamentar.

O partido, para não ter mais problemas, decidiu convidá-lo a renunciar à sua militância, o povo começou a percebê-lo como traidor e ele foi perdendo apoio popular, razão pela qual o povo se revolta hoje, mas não pede o seu retorno. E assim ele foi perdendo a sua bancada, o seu partido, a sua principal força de resistência e a possibilidade de superar [essa crise]. Acrescentemos a esse cenário os casos de corrução, embora não existam provas diretas contra ele, mas permitiu este mal, cometido por familiares e amigos, que agiram de forma oportunista, e o envolveram.

O que aconteceu entre Peru Livre e Castillo? A saída do presidente do partido que o levou a vencer as eleições contribuiu para o desgaste do seu governo?

O maior erro de um político, e mais ainda de um governante, é desconhecer a vanguarda que o levou ao poder. E essa vanguarda, com erros e virtudes, é o partido político. Não se pode chegar ao poder sem um partido. Até as ditaduras militares, em um curto ou médio prazo, terminam construindo seus partidos.

Castillo, no começo, teve a intensão de se tornar dono do partido. Logo, ao não poder, tentou criar dois partidos políticos, em plena campanha, aconselhado pelos seus “maestros” como ele dizia, que não eram mais que oportunistas e mercenários, entre eles Mery Coilav [presidente do Partido Magisterial], Segundo Quiróz [congressista] e Bruno Pacheco [ex-secretário geral da presidência de Castillo].

Já no governo, Castillo decidiu dividir a bancada [do Peru Livre], e disso surgiram três novas bancadas de ocasião, que na verdade eram formadas por sanguessugas. Apesar disso, ele ainda nos considerava como governistas, e nós decidimos deixar as coisas claras quando o convidamos a renunciar de forma irrevogável à sua militância, para evitar uma expulsão desonrosa. E assim terminou a relação partidária.

Não obstante, apesar dessas desavenças, o partido ainda mantinha o sentimento de que [Castillo] era o nosso presidente, e sempre decidiu apoiá-lo, até o ultimo momento, mas censurando seus ministros quando era o caso.

Dina Boluarte ainda é militante do partido Peru Livre? A assembleia extraordinária decidiu não apoiar o seu governo. Qual é a postura com respeito a ela pessoalmente?

Dina Boluarte foi expulsa do partido, porque chegou às minhas mãos um áudio do Conselho de Ministros que ela menciona três pontos: que o Peru Livre e seu programa não tinham nada o que fazer no governo [de Dina], porque o povo teria nos abandonado; que éramos uma organização de esquerda radical; e que eu, Vladimir Cerrón, estava incentivando a destituição presidencial [de Dina]. Isso foi analisado pelo partido e se determinou a sua expulsão, que não foi apelada.

A Assembleia Nacional concluiu que não devemos integrar o Ministério, apesar dos múltiplos convites, porque seria respaldar o golpe de Estado, respaldar o neoliberalismo fascista que se assoma. O partido não se vende, é uma instituição de princípios e de combate.

Dina só teria uma oportunidade de continuar no poder apoiada pelo povo que era seguir o programa do partido, voltar à Constituição de 1979 e convocar um Parlamento com faculdades constituintes, além de devolver ao povo o seu direito a ter um referendo, negado por esta ditadura parlamentar. Mas tenho a suspeita de que ela já é refém da direita, que só a necessita por um tempo, depois irão derrubá-la para que o fujimorismo assuma o poder.

Qual é a opinião do Peru Livre sobre a possibilidade de se antecipar as eleições no Peru?

Somos a favor dessa ideia, mas com as características que acabo de mencionar: novas eleições, referendo, Assembleia Constituinte e nova Constituição. Não basta somente ter novas eleições, já que sem essas demandas principais nada vai mudar.