Os crimes ambientais no Brasil têm gerado repetidas violações de direitos sociais que não são investigadas com a transparência que a situação demanda, garantindo que haja responsabilização, acesso à informação, participação e, principalmente, justiça. Quem nos traz um relato emblemático a respeito disso é Eliane Balke, que era catadora de caranguejo na comunidade de Barra Nova Sul, no município de São Mateus, Espírito Santo. Sua identidade era a água doce e salgada, suas relações comunitárias eram entrelaçadas com o mangue e o mar. Agora a pimenta rosa se torna alternativa de geração de renda, pelas próprias mãos dela, já que o processo de reparação ainda não saiu do papel - sete anos depois do rompimento da barragem de Fundão da mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais.
Eliane teve sua vida e rotina atingida três vezes: pela lama da barragem, pela pandemia e pelas enchentes no Estado em janeiro deste ano. “Atualmente eu estou separada. Meu companheiro era pescador e ele ficou muito doente e teve que tomar remédio controlado. Aqui nós estamos a 66 quilômetros de São Mateus, ele foi buscar tratamento lá. Ele não conseguia mais organizar na mente dele como iria fazer sem poder entrar no mar para pescar. Tem mais de um ano que ele foi e não voltou. E eu sofro muito com isso”, desabafa.
Este crime na região do Rio Doce motivou a criação de um sistema complexo de governança para definir as ações necessárias para que a mineradora pudesse reparar e compensar os danos ambientais e socioeconômicos. As mineradoras assinaram, em 2016, um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta, com a União e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. Este acordo levou à criação da Fundação Renova, que é mantida com recursos das empresas.
Logo depois do rompimento foram identificadas as comunidades consideradas atingidas, mas o Espírito Santo ficou de fora. Somente após muita luta de movimentos de atingidos em 2017 várias comunidades do litoral capixaba foram reconhecidas como impactadas pelos danos. Mesmo assim, as mineradoras tentaram recorrer. Eliane foi reconhecida somente em 2018, e passou a integrar as comissões de atingidos e atingidas. Ela participou de uma assembleia para escolher uma assessoria técnica independente que atenderia sua comunidade e tentaria equilibrar essa luta.
“Até 2020 eram a Defensoria Pública e o Ministério Público Federal do Espírito Santo que cuidavam desse processo aqui na comunidade e depois da pandemia foi outro sistema que passou a nos atender. O que eu recebia do meu trabalho antes do rompimento era três vezes esse valor que eu recebo enquanto auxílio emergencial”, diz inconformada Eliane.
Em 18 de novembro deste ano houve a assinatura dos Termos de Compromisso1 que regulamentam a prestação de serviços pelas cinco Assessorias Técnicas Independentes (ATI) em 13 territórios atingidos, incluindo a comunidade de Eliane. Contudo, as ATIs dependem da liberação dos recursos para de fato iniciar as atividades e isso está no âmbito da justiça.
Recorrência em crimes com barragens
Mesmo o sistema de governança em Brumadinho – rompimento da barragem de Córrego do Feijão da Vale ocorrido em 2019, sendo diferente do Rio Doce, os desafios para o acesso e participação à justiça perduraram. “Infelizmente, o caminho a ser percorrido para a reparação integral é longo. As pessoas têm pressa e atrasar é arrastar também o luto e o sofrimento que persistem nas comunidades. Esta situação provoca um sentimento de impunidade e descrédito das instituições de Justiça. Além de todos os danos, o processo em si vem adoecendo pessoas e estigmatizando lideranças que se sentem ameaçados”, analisa Marleide Rocha, coordenadora da equipe de Diretrizes de Reparação Integral da Aedas, Assessoria Técnica Independente.
Simone de Assis é pescadora de Vila Jataí, no município de Abaeté, distante a cerca de 200 km de Brumadinho. Ela demorou dois anos para ser reconhecida pela mineradora, que entendia ser atingido apenas quem tivesse residindo a um quilômetro do rio Paraopeba, onde a barragem rompeu. Tanto Simone quanto outros pescadores da região tiveram dúvidas se houve ou não contaminação da água da represa de Três Marias, mas têm certeza que suas rendas mudaram completamente após o crime. “O problema que tivemos aqui foi uma desvalorização muito grande de nosso pescado após o rompimento. O peixe perdeu todo seu valor porque acharam que foi contaminado”.
Dentre as principais reivindicações das populações atingidas estão à participação informada, a garantia do protagonismo das vítimas e a celeridade na reparação dos danos individuais. “Se por um lado os direitos coletivos e difusos estão reparados através dos programas e projetos do acordo, por outro lado, a reparação dos danos individuais encontra cada vez mais obstáculos. Passados mais de três anos, até o momento, contamos com um número pouco expressivo de pessoas que realizaram acordos diretamente com a Vale. Acordos esses com cláusulas de sigilo e que, portanto, não se pode avaliar se foram negociações proporcionais e justas”, explica Marleide Rocha.
Outro fenômeno que Marleide afirma ocorrer é o abarrotamento de ações individuais nas comarcas ao longo da Bacia, sobre as quais não se tem nenhuma sistematização sobre os resultados. Tudo isso somado ao fato de as Assessorias Técnicas “estarem expressamente impedidas de atuar nesta frente até que se tenha uma decisão judicial, no sentido de acolher o pedido das Instituições de Justiça para que as ATIs possam elaborar um plano de trabalho para construir junto às pessoas atingidas a identificação e valoração dos danos”, complementa.
Corredor da morte na Amazônia Legal
A ampliação da Estrada de Ferro Carajás para o escoamento do minério de ferro das jazidas do Pará para os portos em São Luís, no Maranhão, também do Grupo Vale S.A, está em situação semelhante à atuação em violações da empresa e a conivência da Justiça em Minas Gerais. “Depois que o Projeto Grande Carajás foi instalado na Amazônia, a expansão das atividades extrativas da Vale ocorre sem a realização de diagnósticos completos de todo o passivo ambiental, sem levantamentos dos danos e sem a elaboração de um plano de reparação integral”, explica Larissa Santos, coordenadora Política e de Projeto na Justiça nos Trilhos, organização da sociedade civil.
Esse empreendimento integra o Programa Grande Carajás, que foi implementado na década de 1980, cortando áreas rurais nos dois estados citados. Mesmo com o término oficial do Programa em 1991, suas estruturas produtivas e logísticas continuaram a se expandir nas duas últimas décadas, com a integração a outras logísticas de escoamento – rodovias, ferrovias, portos, hidrelétricas. Foi o caso da Estrada de Ferro Carajás, em que, de 2013 a 2017, foram duplicados mais de 500 quilômetros, aumentando a capacidade para 230 milhões de toneladas de minério de ferro transportadas por ano.
Toda essa logística com transporte incessante, 24 horas por dia, acaba trazendo consequências a comunidades do Maranhão, que são pelo menos 130 atravessadas pelo corredor Carajás. As principais reclamações de quem convive diariamente com o trem de ferro incluem a falta de acessos viáveis para atravessar a ferrovia de lado a lado, como viadutos e passarelas, atropelamentos de pessoas e animais, incluindo a morte e mutilação de moradores, além da perseguição a lideranças e a falta de diálogo da Vale com as comunidades.
“Essas violações são sentidas dentro de um contexto onde há a prevalência de estratégias jurídicas e institucionais propagandeadas pela empresa em tensão ou imbricação com o Estado, seja na fragmentação do licenciamento ambiental, na não consideração da Consulta Prévia, na criminalização e tentativas de desmoralização de lideranças e comunidades”, afirma Larissa.
As comunidades atingidas e a Justiça nos Trilhos têm exaustivamente questionado aos órgãos de proteção o processo de licenciamento da duplicação da Estrada, que suprimiu etapas previstas na legislação em afronta aos princípios de divulgação e da participação popular. “O juiz determinou a realização de perícia acerca do estudo ambiental feito pela Vale sobre a Estrada durante licenciamento. O laudo foi apresentado em dezembro de 2020 e se resumiu em responder apenas ‘sim’ ou ‘não’, sem maiores detalhamentos. Em contraposição, desenvolvemos uma Nota Técnica que aponta a existência de graves problemas no licenciamento”, reforça Larissa.
Causa ainda preocupação, por parte das organizações que lutam pelos direitos das populações atingidas, que porta vozes de órgãos públicos têm, por diversas vezes, referendado os canais de comunicação das empresas como fonte de informações sensíveis para os familiares de vítimas e para a população em geral. E isso vai na contramão dos direitos das pessoas que sofrem danos – não só porque esse é o fundamento de processos democráticos, mas porque a informação e participação dos atingidos e atingidas podem ser determinantes para não colocar mais vidas em risco ou para que um plano de emergência seja efetivo.
Vale enfatizar que existem dispositivos, como o Artigo 5 (direitos individuais), o Artigo 37 (princípios de administração pública) e os artigos 220 a 224 (que tratam da comunicação social), da Constituição de 1988, que contemplam o direito ao cidadão de informar, de se informar e de ser informado, “comandos plenos para garantir também o acesso às informações públicas”.
É importante lembrar ainda que o Brasil firmou compromissos internacionais nesse sentido, incluindo a assinatura do Acordo de Escazú em setembro de 2018 – tratado que estabelece os parâmetros para a participação social, acesso à informação e à Justiça em questões ambientais em países da América Latina e no Caribe. Isso demonstra que, além de justas, as reivindicações das comunidades de territórios atingidos são, portanto, amparadas em bases legais.
*Este texto integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
**Raquel Santos é jornalista e educadora popular, mestre em comunicação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), associada ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
***Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo