Ainda que esteja distante de voltar aos patamares sociais e econômicos de antes da crise, a Venezuela segue registrando mudanças positivas em alguns indicadores. Após encerrar um ciclo hiperinflacionário e sair da recessão iniciada em 2014, o país teve uma queda nos níveis de pobreza pela primeira vez em sete anos.
Segundo a Pesquisa Nacional sobre Condições de Vida publicada pela Universidade Católica Andrés Bello (UCAB) em novembro, o índice de pobreza multidimensional para 2022 caiu cerca de 15 pontos percentuais em relação a 2021. O indicador mede não apenas a pobreza relacionada à renda, mas também a outros fatores como acesso à moradia, educação, emprego e serviços.
Em 2021, o índice foi de 65,2% e neste ano caiu para 50,5%, a primeira queda desde 2014. Para efeitos de comparação, os níveis de pobreza multidimensional de 2021 na Argentina foram de 36%, no Equador foram de 39%, e na Colômbia 16%. Já o nível de pobreza relacionado exclusivamente a condições econômicas caiu 11 pontos percentuais nos últimos 4 anos, refletindo melhores condições de emprego e renda.
“É uma mudança positiva, mas moderada”, diz o cientista político venezuelano Luis Javier Ruiz. Ao Brasil de Fato, ele afirma que qualquer redução na pobreza deve ser celebrada, “ainda que os níveis não estejam nos mesmos patamares de uma década atrás”.
“Ainda estamos distantes do melhor momento do PIB venezuelano entre 2010 e 2012, ou quando tínhamos uma melhor renda média e um alto PIB per capita, que chegou a níveis históricos há 10 anos”, afirma.
Em 2009, antes da recessão, 26% das famílias venezuelanas eram pobres, o menor índice dos últimos 20 anos. Já em 2014, segundo dados da mesma pesquisa realizada pela UCAB, o índice de pobreza multidimensional no país foi de 39% e vinha registrando uma tendência de crescimento até este ano.
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Para o pesquisador, a queda nos índices de pobreza e a melhoria dos níveis de renda pode ser explicada pelo aumento na atividade econômica do setor privado que, segundo Ruiz, foi beneficiado por algumas medidas econômicas adotadas pelo governo venezuelano para atenuar a crise.
“Isso se deve a diversos fatores, mas fundamentalmente responde a muitas medidas econômicas que o governo tomou para, como classificam alguns economistas, liberalizar certos aspectos econômicos e legais. Se fizermos um quadro comparativo entre a economia venezuelana de 2017 a 2019, e colocarmos de outro lado a situação de 2020 a 2022, se nota uma diferença substancial no dinamismo do setor privado e individual”, diz.
A hipótese de Ruiz é respaldada pelos dados divulgados na pesquisa da UCAB. Em 2022, o país registrou um crescimento de 7,9 pontos percentuais em empregos formais em comparação com o ano passado, sendo que a maioria dos postos foram gerados no setor privado. Ainda que a economia informal siga dominando o mercado de trabalho com 44% da população economicamente ativa, houve uma redução anual de 7,7 pontos percentuais no setor.
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Em relação aos salários, a pesquisa indica que a maior média está no setor privado, que alcança US$ 150. Já o setor público e o informal registraram uma remuneração média de US$ 113 e US$142, respectivamente.
“Pressionado pelo bloqueio e pela pandemia, o governo adotou medidas de viés liberal que privilegiaram uma parte do empresariado nacional, até porque a capacidade produtiva e financeira do Estado estava muito abalada pela crise do setor petroleiro", argumenta Ruiz.
Política econômica e crescimento
Nos últimos anos, o governo do presidente Nicolás Maduro vem acenando ao capital privado nacional e estrangeiro com medidas que buscam promover a cooperação e incentivar investimentos, postura que marca um giro em relação à política econômica adotada durante seu primeiro mandato (2013 - 2018) e até mesmo em relação às posições de seu antecessor, o ex-presidente Hugo Chávez.
A aprovação da Lei Antibloqueio, que concedeu ao Executivo permissão para reavaliar ou até mesmo retirar a participação do Estado em empresas públicas ou mistas, o fim do controle cambial, que deu vazão ao dólar na economia para combater a hiperinflação, e mais recentemente a venda de ações de empresas públicas na bolsa e a promulgação da lei de Zonas Econômicas Especiais são algumas medidas que caracterizam essa nova fase da política econômica do governo.
Além disso, sinais políticos como a presença da vice-presidenta Delcy Rodríguez na Assembleia Nacional da Fedecâmaras, a maior organização patronal do país, e a instalação em abril deste ano das mesas de negociação entre governo, empresários e sindicatos para discutir o salário mínimo indicam um clima mais ameno nas relações entre Executivo e burguesia nacional.
O ambiente mais favorável ao investimento privado e a estabilidade da inflação e do dólar alcançadas durante o primeiro semestre deste ano parecem ter dado resultados e iniciado uma modesta recuperação. Segundo dados da CEPAL, a Venezuela deve crescer 10% em 2022, atingindo o maior índice de crescimento da América do Sul, mas que representaria um pequeno alento para a economia nacional frente a uma queda de mais de 70% no PIB nos últimos 12 anos.
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Para Antonio Plessmann, advogado e membro do coletivo de direitos humanos Surgentes, o impacto dessas melhorias nos indicadores ainda não pode ser sentido entre os trabalhadores, que tiveram suas condições de vida extremamente afetadas pelos anos de crise e pelas sanções impostas pelos EUA.
“O fim das sanções é fundamental para recuperar não somente o poder de compra, mas também um mínimo alento de vida como sociedade, pois as sanções violam princípios de direitos humanos porque não afetam somente o governo, mas todo o povo venezuelano”, diz ao Brasil de Fato. Por outro lado, Plessmann critica a linha econômica adotada recentemente pelo governo e afirma que a tendência das medidas é produzir, ao mesmo tempo, crescimento e desigualdade.
“É evidente que o cenário de crescimento econômico vai continuar e isso pode ter um impacto favorável na redução da pobreza, mas não na redução da desigualdade. Os efeitos desse processo estão fazendo com que um setor da burguesia esteja acumulando grandes quantidades de dinheiro por conta dessa política de estímulo do Estado enquanto setores da população seguem se mantendo com menos do que um dólar diário estabelecido pelos padrões das Nações Unidas”, afirma.
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Segundo cálculos próprios, a pesquisa da UCAB estima que o índice de Gini da Venezuela é de cerca de 0,6. Feito para calcular a desigualdade, quanto mais próximo 1 o índice Gini de um país, mais desigual ele é; quanto mais próximo de 0, maior é a igualdade. Se corretos, os números contrastariam com o histórico do país que, de acordo com dados da ONU, chegou a ser o menos desigual da América Latina quando em 2009 possuía um índice de Gini de 0,41.
“Claro que qualquer redução na pobreza é bem-vinda, mas os dados indicam que mais da metade da população é pobre, portanto não se trata de um país que superou a grave crise que vivemos, ainda precisamos lidar com os efeitos desse processo”, diz Plessmann.
Edição: Thales Schmidt