Tecnologia em saúde

Da concepção ao envase: o Brasil pode desenvolver as próprias vacinas?

País tem capacidade para fabricar imunizantes; desafio é diminuir a dependência tecnológica do exterior

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No Brasil, o laboratório BioManguinhos, da Fiocruz, e o Instituto Butantan são as maiores referências na fabricação de imunizantes - Bio-Manguinhos

A pandemia de covid-19 mostrou que o Brasil tem capacidade de fabricar, ao menos, parte das próprias vacinas, com o protagonismo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Butantan. A mesma pandemia, porém, também escancarou que essa produção depende de ciência e tecnologias externas: nenhum dos imunizantes usados até agora contra a doença foi integralmente feito no Brasil, ou seja, das primeiras etapas de pesquisa ao envase.

A dependência estrangeira não é realidade apenas para as vacinas contra o coronavírus. Nenhuma das aplicações já ofertadas no país, seja contra o tétano, a hepatite, a pólio ou o sarampo, entre outras, foram desenvolvidas aqui – embora haja projetos caminhando para isso. Se a autonomia na área traria vantagens estratégicas, num mundo globalizado em que crises causam efeito dominó no mercado e no abastecimento, os últimos governos não parecem tê-la visto como prioridade. Muitos dos entraves no setor, defendem especialistas, poderiam ser solucionados com mais empenho político e investimento público.

Mas, realisticamente, até onde poderíamos ir no desenvolvimento e fabricação de vacinas nacionais? Nesta reportagem especial em quatro partes, buscamos apresentar um panorama nacional do setor; o que já se faz e no que ainda esbarramos, entendendo quais são os entraves para avançarmos. E, em última análise, procurando responder: podemos ser um pouco menos dependentes de importação da tecnologia quando o assunto são vacinas?

Do projeto ao produto

Primeiro é preciso diferenciar fabricação de desenvolvimento. Desenvolver um imunizante é quando os pesquisadores de fato criam a fórmula do zero. Começa nas instituições científicas, com a análise de quais tipos de tecnologias podem ser usadas, e com quais materiais biológicos, para induzir o sistema imune a produzir as defesas contra um agente causador de doenças. Na etapa seguinte, são conduzidos os primeiros testes, ainda em laboratório, chamados de pré-clínicos. Em caso de resultados positivos, eles seguem para os estudos clínicos de fase 1, 2 e 3, em humanos, que atestam a segurança, a capacidade de gerar uma resposta imunológica e, ao final, a eficácia em grandes grupos populacionais. Depois, se comprovada a capacidade de induzir à proteção, aquela formulação está pronta e pode ter o aval para aplicação na população solicitado às agências reguladoras.

Quando uma vacina foi desenvolvida e aprovada, chegamos ao próximo passo: a fabricação em larga escala para venda e distribuição. Ela pode ser feita pelo próprio centro que criou a fórmula, e pode também ser licenciada por meio de acordos para que outras fábricas detenham o direito de produzir aquela fórmula e comercializá-la. É o que fazem muitas fábricas de imunizantes, usando tecnologia externa.

Como exemplo de excelência na fabricação aqui no Brasil, temos a planta de Bio-Manguinhos, da Fiocruz. Quem indica é o médico sanitarista Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, ex-diretor da Anvisa e com décadas de atuação no setor de imunizantes. "Bio-Manguinhos é certificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e faz uma vacina de febre amarela que é vendida para o mundo inteiro", relata. "Além desta e de outras vacinas, a instituição também faz muitos itens para diagnóstico. E Bio-Manguinhos tem uma coisa fantástica, que é unir a fábrica à ciência", diz, ao lembrar que a Fiocruz é uma instituição de pesquisa com cientistas continuamente estudando o que está sendo produzido, além de ter projetos próprios de desenvolvimento de vacinas e outros imunobiológicos em andamento.


A vacina de febre amarela produzida pelo laboratório Bio-Mangujinhos (Fiocruz) é vendida para o mundo todo / Biomanguinhos/Fiocruz

Em São Paulo, ele cita o Butantan como referência. A produção de maior volume, segundo o médico, é a do imunizante da gripe (influenza), mas ele destaca ainda a vacina do HPV, vírus causador do câncer de colo de útero. "E lá também há essa característica de que, ao lado da fábrica, há o instituto de pesquisa", diz. Além da produção com tecnologias licenciadas, o Butantan também trabalha na criação de vacinas próprias.

Além desses dois casos de sucesso, Vecina lembra outros não tão animadores. "O Vital Brazil, que é uma instituição muito antiga no Rio de Janeiro, está praticamente paralisado. Temos ainda a Fundação Ezequiel Dias, em Minas Gerais, infelizmente outra numa situação de grande dificuldade." Ele cita ainda o caso da Fundação Ataulpho de Paiva, instituição privada sem fins lucrativos sediada no Rio de Janeiro, responsável no Brasil pela produção da BCG, a vacina contra tuberculose. "A Fundação suspendeu a produção por falta de investimento em renovação das condições da fábrica", lamenta Vecina, o que levou o país a depender da importação dos imunizantes prontos por meio da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) para não interromper a aplicação.

Todo esse desmonte soa muito triste e leva ao questionamento se, na ponta do lápis, compensaria mesmo o país ter como objetivo fazer de forma completa as vacinas aqui – em vez de apenas importá-las prontas ou os ingredientes e licenças para produzi-las e envasá-las. Vecina acredita que valeria a pena sim investir em fazer tudo por aqui. Perguntado sobre os diferenciais de não depender tanto de importação, ele responde: "É ter certeza de garantir o fornecimento desses produtos para a população brasileira. Existe inclusive a possibilidade, se adequadamente planejada como política pública, de que o País possa se transformar em um player mundial, competindo com a Índia. 'Ah, mas os indianos têm uma escala em que é impossível competir', podem dizer. Depende dos instrumentos que utilizaremos para participar dessa competição. Existe a possibilidade de atender países vendendo uma vacina com um preço competitivo e até participar de ações ligadas à OMS para entregar imunizantes em países mais pobres. O mundo é globalizado, não pode ser encarado em ilhas."

Neste sentido, mesmo um representante da indústria farmacêutica que não concorda que devemos ter como meta instalar grandes plantas (inclusive privadas) no Brasil, diz que podemos ao menos ter um papel regional. "Falar que o Brasil trará plantas só por trazer não é sustentável. As plantas que temos hoje [no mundo] são suficientes para atender à necessidade global", defende Eduardo Calderari, presidente-executivo da Interfarma, entidade que reúne fabricantes de produtos farmacêuticos. "Temos grandes polos nos Estados Unidos, Europa e Ásia, principalmente na China e no Japão. Talvez não devesse ser uma prioridade nossa competir com estas plantas já instaladas. Mas se queremos tornar o Brasil importante no cenário, poderíamos focar em uma estratégia mais regional, com o Brasil virando um hub para a América Latina, por exemplo", sugere Calderari.

A Fiocruz, por exemplo, trabalha no desenvolvimento de uma vacina de RNA mensageiro para a covid, ainda em estágio preliminar, que pode vir a ser distribuída ou ter a tecnologia licenciada para países da Organização Pan-Americana de Saúde.

Voz dissonante, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mauro Schechter acha que não vale a pena investirmos em parques nacionais para desenvolvimento de vacinas. Para ele, o custo é muito alto, e o país deve investir em outras prioridades como, por exemplo, "zerar a fila do SUS". "Com recursos limitados, o país tem que definir para onde vai destinar seu dinheiro. Temos um número enorme de pessoas passando fome; um analfabetismo funcional grande. Acho que as necessidades são outras. Cada vacina que a gente fosse tentar fazer seria gasto muito recurso. Para que competir com quem tem [outros países] muito mais dinheiro que você?", indaga o médico.

Ficando para trás

Para o pesquisador do Núcleo de Vacinas do Butantan Paulo Lee Ho, o cenário do Brasil tem avanços e retrocessos. O problema, segundo ele, é a baixa velocidade com que avançamos comparativamente aos países mais desenvolvidos. "Em velocidade relativa, a gente acaba ficando para trás." O que limita esta velocidade, de acordo com Ho, é a falta de apoio, que se mistura à carência de investimento em um problema só – e que é estrutural.

"Só temos investimento maior em momentos de crise, como a pandemia", queixa-se Ho. Para ele, esse investimento pontual torna difícil tanto resolver a crise da vez com rapidez quanto avançar numa produção contínua de outras vacinas.

Tão importante quanto o investimento, diz ele, é o apoio político. "Muitas das decisões hoje, dependendo da esfera que você examinar, têm um ranço político muito grande, quando a população seria melhor atendida com uma decisão técnica", diz, referindo-se aos problemas que o Instituto Butantan enfrentou ao negociar com o governo federal na pandemia.

Polêmica de Estado

Paulo Lee Ho acredita que o Brasil carece de uma política de Estado para o setor. "Algumas políticas foram muito bem estabelecidas nas décadas de 1970 e 80, e são essas que estão nos segurando. Mesmo assim, hoje, nem sempre essas diretrizes são implementadas, obedecidas ou mesmo entendidas."

Gonçalo Vecina segue na mesma linha, ao dizer que "os últimos governos tiveram uma visão muito utilitarista de olhar exclusivamente do ponto de vista financeiro a questão sobre 'desenvolver e produzir vacinas ou comprar fora do Brasil'. Em nenhum momento essas gestões pensaram em tornar o país autossuficiente", afirma. Para o ex-diretor da Anvisa, pensando só em custo, deixa-se de considerar o problema que é depender totalmente de vacinas importadas para atender a um mercado do tamanho do brasileiro. "Tem que ter um pouco mais de inteligência estratégica. Entendo, por exemplo, um país pequeno como o Uruguai não desenvolver e produzir suas vacinas, mas um país do tamanho do Brasil não pode abrir mão dessas coisas."


Para Gonçalo Vecina, os últimos governos tiveram uma visão muito utilitarista na hora de avaliar se valia a pena desenvolver vacinas no país / CARL DE SOUZA / AFP

A fala do médico sanitarista ganha corpo se pensarmos num mundo em que guerras, pandemias, crises diplomáticas e até energéticas muitas vezes resultam em desabastecimento, que também atinge insumos médicos e produtos imunobiológicos como as vacinas.

Além disso, há interesses divergentes em relação a para quais doenças serão desenvolvidas novas proteções: países mais avançados na criação de imunizantes, como Estados Unidos, podem não enxergar com tanta atenção patologias mais prevalentes em outras partes do mundo, como é o caso das doenças tropicais que afetam o Brasil.

O desafio de dominar o ciclo

O professor e coordenador do Laboratório de Desenvolvimentos de Vacinas da USP, Luís Carlos Ferreira, reconhece o papel fundamental da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Butantan na produção de vacinas, durante a pandemia e fora dela. Ele chama a atenção, porém, para o fato de o processo não ser integralmente dominado por essas instituições.

E o que seria esse ciclo completo? É o que contém todo o desenvolvimento, desde as primeiras etapas de pesquisa, testes e aprovações, até chegar à fabricação e ao envase. "É desenvolver a formulação em laboratório, em condições experimentais, e mostrar que ela de fato funciona. Então você avança para a produção dessa vacina em maior quantidade, e depois avalia se essa formulação, que vai ser testada em humanos, é segura nos ensaios pré-clínicos. E aí, finalmente, busca a aprovação pela Anvisa para iniciar os testes clínicos", explica.


Fiocruz e Instituto Butantan (foto) foram fundamentais para a produção de vacinas durante a pandemia e fora dela, mas não dominam o ciclo completo do desenvolvimento de imunizantes / Divulgação/Instituto Butantan

O professor da USP compara, didaticamente, a produção de uma vacina à de um carro. "As montadoras recebem uma infinidade de peças e componentes, montam, e o carro sai de lá andando. Mas existe uma cadeia produtiva que vai desde o desenhista que faz o modelo até todos os outros que desenvolvem o motor, os sistemas eletrônicos e tudo mais que precisa estar constantemente evoluindo. Dominar essa cadeia completa, demanda uma quantidade muito grande de profissionais e de infraestrutura".

Para Ferreira, a crise da pandemia deixou muito evidente a necessidade de o Brasil ter mais autonomia nesse processo. "Mesmo a Fiocruz e o Butantan estão olhando com um pouco mais de atenção para a necessidade de dominar todo o ciclo", que vai muito além de envasar e rotular vacinas a partir do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) importado ou com a fórmula licenciada.

Paulo Lee Ho, do Butantan, acha que, no país, o setor público ainda é quem teria mais condições de fazer esta produção integral. "Nós sabemos fazer a produção do IFA da vacina de influenza, por exemplo, temos toda a cadeia dela no Butantan", exemplifica, embora a tecnologia empregada tenha sido licenciada, e não desenvolvida integralmente aqui.

Mas um problema que já é crônico se mostra, segundo Ho, quando é necessário modernizar e adequar as áreas produtivas às novas regulamentações de qualidade. "O dinheiro para isso não vai vir da venda das vacinas, porque o preço é baixo. E também não temos o recurso público, que deveria ser constante, para ser usado no momento em que estas questões aparecem. Por isso, tivemos que interromper parte da cadeia da produção de muitas vacinas do Butantan na falta de adequações necessárias – os produtos não seriam aprovados pela Anvisa. Ao mesmo tempo, não conseguimos recursos e apoio para atualizar essas plantas", lamenta Ho, enquanto faz coro a Vecina: "A saúde pública deveria ser vista como algo estratégico para o país".

CTVacinas: promessa de autonomia

A iniciativa destacada por Luís Carlos Ferreira que vai ao encontro da necessidade de produzir o ciclo todo no país é o Centro de Tecnologia de Vacinas (CTVacinas), polo de pesquisas em biotecnologia ligado à UFMG e que tem parceria com a Fiocruz-Minas, além de manter algumas colaborações com laboratórios da USP e outras instituições.

O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do CTVacinas, Ricardo Gazzinelli, lembra que não há ainda imunizantes em que a fase 1 tenha sido feita originalmente por instituições brasileiras, ao menos não sem já receber a tecnologia externa. Ele diz que, em geral, somos focados nas fases 2 e principalmente 3, em uma etapa em que a tecnologia já foi desenvolvida por terceiros no exterior e até aprovada por agências regulatórias, o que facilita todo o desenrolar dos processos.


Ricardo Gazzinelli, coordenador do CTVacinas, afirma que falta no país quem transponha a prova de conceito de novos imunizantes para os ensaios de fase 1 / Graziella Rivelli/CT Vacinas

"O Brasil tem um ecossistema de vacinas bem completo. Temos a prova de conceito na universidade e institutos de pesquisa; temos muita gente fazendo os ensaios clínicos, principalmente de fase três; temos as fábricas, Butantã e Bio-Manguinhos, que produzem uma grande quantidade de vacinas para o Plano Nacional de Imunizações; e temos o SUS, que funciona muito bem para distribuí-las. O que falta no país é exatamente quem transponha a prova de conceito para os ensaios de fase 1. Para a inovação tecnológica, o que faz mesmo diferença é passar da Universidade para a fase 1", detalha o professor, ao explicar a principal carência no setor que o CTVacinas tenta suprir.

Ele exemplifica, com exceção da Pfizer, como este elo foi feito para as vacinas da Covid a partir de universidades e instituições públicas, como Oxford, para a Astrazeneca; Harvard, para a Jonhson; e o NIH – National Institutes of Health (agência de pesquisa dos EUA), para a Moderna.

O CTVacinas está em pleno processo de se converter no Centro Nacional de Vacinas, uma espécie de expansão do projeto. "A expectativa é que no máximo em três anos tenhamos uma instituição voltada para dominar toda a cadeia. Aí sim nós poderemos dizer que somos autônomos na produção de vacina", prevê Ferreira.

Recursos humanos

O professor da USP ressalta ainda a importância dos recursos humanos ao se organizar a produção de imunizantes. "Não adianta pensar em estrutura e depois não ter gente preparada para tocar e fazer a coisa funcionar. As duas variáveis precisam caminhar juntas, com a formação de pessoas nas mais diversas áreas que envolvem uma vacina."

Perguntado se o fenômeno da "fuga de cérebros" é uma realidade também no setor, Ferreira assente. "Eu diria que isso se acelerou nos últimos 3 ou 4 anos, porque a oferta de emprego para quem trabalha com imunobiológicos, e na pesquisa científica em saúde de modo geral, caiu tremendamente. Quem absorvia esses profissionais eram as próprias universidades e centros de pesquisa. Com a redução das contratações, houve uma verdadeira enxurrada de cérebros saindo do Brasil."


A oferta de emprego para quem trabalha com imunobiológicos, e na pesquisa científica em saúde de modo geral, caiu nos últimos 3 ou 4 anos / Biomanguinhos/Fiocruz

Ele chama atenção para que não se confunda isso com o fato de pesquisadores formados aqui passarem um tempo no exterior, "o que é muito importante e saudável", e depois retornarem para o país. "No momento, vejo que há uma saída [dos pesquisadores] sem esse planejamento de trazer o conhecimento de volta para aplicar aqui", diz Ferreira.

"No nosso país é muito difícil de se alcançar, como pesquisador, um patamar de segurança e estabilidade, então acabamos perdendo muita mão de obra qualificada para fora mesmo", concorda a pesquisadora do CTVacinas Natália Salazar.

Ela exemplifica com a experiência que o centro está adquirindo com a vacina em desenvolvimento para a covid-19: a Spintec. "Tivemos uma reunião com a Anvisa e precisávamos de um profissional para fazer as estatísticas dos estudos clínicos, e foi muito difícil achar uma pessoa com essa experiência disponível. Nós também temos que realizar testes muito específicos de tecnologia e temos uma equipe reduzida, que precisa ser expandida com especialistas nessa área, mas temos dificuldades de encontrá-los", diz a cientista.

Ferreira crê que as instituições de ensino necessitam se aproximar mais das empresas e vice-versa. "As universidades e centros de pesquisa detêm o conhecimento sobre pesquisa básica relacionada ao desenvolvimento de vacinas. Tal conhecimento precisa ser transferido e adaptado pelas empresas, que têm a capacidade de gerar os produtos. E esse pessoal formado que parte para o exterior e não volta poderia ser contratado pelas indústrias farmacêuticas no Brasil".

Caso Sintex

Para entender a nossa capacidade de produzir imunizantes em condições de excelência, nas instituições públicas como o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é preciso voltar no tempo. Nos anos 1980, a saída do Brasil de um laboratório particular que produzia a maior parte dos imunobiológicos utilizados deixou clara a dependência da iniciativa privada para garantir a vacinação dos brasileiros. O cenário motivou a criação do Programa de Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni), que mudaria a forma como o país atende às altas demandas para as campanhas nacionais de imunização dali em diante.

Essa história teve início ainda em 1973, logo após a erradicação da varíola no Brasil, com a criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), uma das maiores iniciativas do mundo destinadas à vacinação. O programa foi institucionalizado dois anos depois, em 1975, por meio da Lei nº 6.259. Na época, foi um marco no empenho do poder público em ampliar a proteção dos brasileiros contra os agentes infecciosos.

Alguns anos depois, em 1981, o país deu mais um passo nesse sentido com a criação do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), vinculado à Fiocruz, que passou a aplicar normas mais rígidas para fortalecer o controle de qualidade dos imunobiológicos que chegariam até a população. Embora celebrada pelos especialistas, a fundação do INCQS levou a uma crise no fornecimento de vacinas e soros no Brasil.

Isso porque a maioria das unidades utilizadas no Brasil eram fabricadas por uma multinacional privada chamada Sintex, que teve linhas de produção fechadas pelos órgãos públicos durante a fiscalização sanitária. Em vez de adaptar a cadeia produtiva às exigências da época, o laboratório preferiu deixar o país, o que evidenciou a dependência da iniciativa privada no setor.

"Ficamos sem imunobiológicos nesse período, principalmente soros antiofídicos. E soros são uma coisa que você não consegue comprar de outro país, pois tem uma especificidade relativa às serpentes, que são muito locais. E os produzidos aqui não tinham qualidade. O setor privado – que era o responsável, já que o principal produtor na época era a Sintex – simplesmente decidiu não mais produzir porque não valia a pena fazer adequação da planta, devido ao alto custo", explica o pesquisador do Núcleo de Vacinas do Butantan Paulo Lee Ho, ex-diretor da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e Produção do instituto.

Para contornar a necessidade de importação dos imunobiológicos, em 1985 o Ministério da Saúde decidiu investir de forma pesada na produção nacional de imunizantes e soros. Com isso, foi criado o Programa de Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni), que direcionou financiamento para alavancar a capacidade produtiva do Butantan e da Fiocruz, além de outros laboratórios menores, como a Fundação Ataulfo de Paiva, no Rio de Janeiro, que era o único produtor nacional da vacina da BCG, mas recentemente teve a produção suspensa por falta de readequações.


O Butantan foi um dos beneficiados com o financiamento nacional para alavancar a capacidade produtiva de imunobiológicos/ Instituto Butantan

O Pasni foi o responsável por levar o país, com o tempo, a dominar a produção de imunizantes e de fato deixar de depender da importação de outros lugares. Nos últimos dez anos, por exemplo, mesmo com uso de tecnologia e alguns insumos estrangeiros, a maior parte das vacinas entregues ao PNI foi fabricada no Butantan e na Fiocruz. Além disso, em meio à pandemia da covid-19, foram eles também os responsáveis por garantir a fabricação nacional de importantes vacinas utilizadas na campanha, a CoronaVac e a ChAdOx1-S (Oxford/AstraZeneca), que teve o ingrediente farmacêutico ativo (IFA) licenciado e, desde fevereiro já é completamente fabricado em Manguinhos.

O Centro de Tecnologia de Vacinas (CTVacinas) é um polo de biotecnologia em uma área projetada apenas para pesquisas aplicadas, o Parque Tecnológico de Belo Horizonte (BH-TEC). "Não priorizamos tanto pesquisa básica, estamos mais voltados para o desenvolvimento em si dos produtos", conta Natália Salazar, pesquisadora do centro. A equipe do centro é composta de pesquisadores ligados à UFMG e à Fiocruz, e atualmente tem como principal foco de trabalho a Spintec, uma vacina contra a covid com todas as etapas de pesquisa e desenvolvimento no CTVacinas.

"Nós iniciamos trabalhando principalmente com métodos diagnósticos e algumas vacinas para doenças endêmicas do Brasil, como dengue, zika, chikungunya, doença de Chagas, leishmaniose e malária, esta última em parceria com a USP", lembra Natália Salazar. Quando surgiu a pandemia, os esforços foram canalizados para a covid-19. "Começamos com diferentes projetos de vacina, cada um aplicando uma tecnologia diferente. E aí, entre os que foram apresentando resultados mais promissores, e caminhando mais rápido, tivemos com a Spintec o melhor resultado". A vacina recebeu no início de outubro o aval da Anvisa para que sejam iniciados os testes clínicos, fase dos estudos em humanos. 

Tanto a vacina da malária quanto a da leishmaniose e a da covid (Spintec) utilizam a tecnologia de proteína recombinante. "Existem outros projetos de vacina com outras tecnologias, mas que ainda estão em fases mais iniciais", esclarece a pesquisadora.

Vacina verde e amarela - e pioneira

A Spintec é uma bandeira para os pesquisadores envolvidos no CTVacinas por ser uma das pioneiras sendo totalmente desenvolvida no Brasil. "A Spintec tem muito a dizer sobre os desafios de fazer vacina no Brasil por ser a primeira [neste estágio] feita aqui sem dependência de nenhuma tecnologia ou parceria de fora", relata Natália. "Tivemos que lidar com diversos processos pela primeira vez para fazer com que uma pesquisa que começou dentro de uma universidade virasse um produto. Isso é muito difícil em se tratando de vacinas, porque o nível de exigência é alto. São muitos testes e embasamento para mostrar que o produto é seguro, puro e eficaz", detalha.

A pesquisadora comenta que os testes são caros, exigem tecnologia de ponta e pessoas extremamente qualificadas. Um desafio, que, superado, pode abrir caminho para outros projetos do tipo. "Acho que todo esse conhecimento adquirido vai facilitar e tornar mais rápidas as coisas quando as vacinas para outras doenças em que já estávamos trabalhando chegarem a esse estágio."

No futuro, diz a cientista, é bem possível que surjam novas pandemias "e podemos estar muito mais preparados, mais capacitados, com muito mais infraestrutura e investimentos". Ao menos no CTVacinas, ela vê que já há uma capacidade muito melhor do que havia antes para seguir com projetos do gênero.

Luís Carlos Ferreira, professor e coordenador do Laboratório de Desenvolvimentos de Vacinas da USP, endossa. "Caso tudo corra bem, e acreditamos que sim, a Spintec vai de fato ser a primeira vacina 100% brasileira voltada para a prevenção da covid. Mas aí alguém pode dizer que 'agora a gente não precisa mais' [de vacina para covid], mas precisa sim, porque há a necessidade de reforços e sobretudo desse domínio da tecnologia. Para as vacinas que foram usadas aqui na pandemia o Brasil não domina o ciclo completo", reforça. 

Era de colaborações

Outro ponto que coloca o desenvolvimento da vacina Spintec como um modelo e, com sorte, um abridor de portas para vacinas futuras, são suas características colaborativas. "Nós temos convênios entre laboratórios da USP e da Fiocruz e a equipe aqui de Belo Horizonte. Essa parceria é muito importante", destaca Natália, explicando que o contexto da pandemia foi um incentivo para projetos com esse viés. "Quando começou a pandemia, pesquisadores de diferentes laboratórios se uniram para ajudar uns aos outros."

Também a pandemia, segundo Natália Salazar, trouxe uma visibilidade nunca experimentada para a área de vacinas. "O mundo inteiro parou para esperar uma vacina da covid. Com isso, os investimentos aconteceram muito mais rápido, e conseguimos realizar todas as análises e testes. Agora nossa plataforma está pronta para outros projetos", anuncia Natália.

O tempo da ciência, porém, tem uma dimensão mais lenta, se comparado a outros empreendimentos, e que é ainda mais demorado quando o assunto são vacinas, visando à segurança e eficiência. Isso significa que, ainda que a Spintec seja um produto considerado em fase bastante avançada pelos pesquisadores, ainda faltam etapas. Após o desenvolvimento, também é preciso pensar na produção, que ainda não está definida.

"Vamos iniciar a fase de estudos clínicos em humanos, e se a vacina eventualmente tiver os resultados esperados e for aprovada, o registro e a comercialização terão que envolver a colaboração com uma indústria para produção em larga escala e distribuição para a população. A gente produz aqui [no CTVacinas], mas não numa escala suficiente para comercialização nacional", explica Natália. 

Centro Nacional de Vacina

O Centro Nacional de Vacinas é um projeto de expansão do CTVacinas que contou com um investimento de R$ 50 milhões do MCTI e R$ 30 milhões do governo de Minas Gerais. A estrutura já começou a ser construída, visando justamente a diminuir a dependência brasileira de tecnologias e insumos estrangeiros.

"Na pandemia, ficou muito claro que o Brasil realmente tinha uma dependência tecnológica enorme. Até mesmo para os kits diagnósticos", diz Ricardo Gazzinelli, professor da UFMG e coordenador do centro. "Quem teve que sanar esse problema no início foram as universidades, fazendo testagem". Ele explica que o Ministério e outras instâncias investiram não só na área de diagnóstico, mas também na área de vacinas. O CTVacinas, que existia desde 2016, e está agora sendo transformado em Centro Nacional de Vacinas, se fortaleceu nessa esteira.

Ele exemplifica com o caso da AstraZeneca, em que foi feito um licenciamento para que a tecnologia fosse transferida para o Brasil por meio da Fiocruz. Em geral, quando se faz esse licenciamento, que no caso da AstraZeneca custou R$ 1,3 bilhão, quem paga não tem o direito de alterar a tecnologia, aprimorá-la e, sobretudo, de comercializá-la. "Então a instituição paga muito caro e não tem direito a melhorar aquela tecnologia. E se resolver melhorar, o direito de comercializar é de quem vendeu a licença, não dela."

Além do desenvolvimento das próprias vacinas, concebidas lá, o centro se dispõe a receber projetos externos e contribuir para que avancem. "Nós não queremos fazer o papel da Fiocruz no Rio, do Butantan em São Paulo ou da Fundação Ezequiel Dias aqui em Minas Gerais. Queremos simplesmente receber um pesquisador, seja de onde for, que tenha uma vacina candidata promissora e precise avançar para os ensaios clínicos. Nossa função é ajudá-lo a transpor o que chamamos de 'Vale da Morte", que é passar da universidade para a fase 1."