O ministro da Economia Paulo Guedes tentou, mas não conseguiu apagar o fogo criado pela revelação de que a equipe econômica de Jair Bolsonaro (PL) estuda desindexar reajustes no salário mínimo da inflação do ano anterior.
Frente às críticas e em meio à campanha eleitoral, Guedes agiu para negar que a mudança vai representar congelamento de salários e aposentadorias. Um dia depois de o assunto vir à tona, o candidato Bolsonaro disse que iria garantir ganho real no próximo ano.
Saiba mais: Guedes planeja proposta que desvincula reajuste do salário mínimo pela inflação
Na previsão orçamentária do governo dele, no entanto, o valor projetado para 2023 não traz ganho real. A gestão do atual ocupante do Palácio do Planalto vai completar os quatro anos de mandato sem recompor o poder de compra da população.
A possibilidade de que, em um segundo mandato de Bolsonaro, o salário mínimo perca também a garantia de aumento seguindo a inflação já medida e comprovada acende o alerta para um efeito dominó que tem potencial de atingir toda a economia.
O diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) Fausto Augusto Júnior afirma que a medida vai significar a ampliação da desigualdade e causará impactos diretos para mais de 24 milhões de aposentados e 33 milhões de trabalhadores.
"Ter o salário mínimo corroído pela inflação vai significar menor poder de compra e menor capacidade de melhorar a vida. A proposta do Guedes, no médio prazo e no longo prazo, vai significar uma compressão e uma redução em termos reais. Algo muito parecido com o que foi feito pela ditadura na época das políticas salariais, em que a ideia de reduzir o valor real do salário fazia parte da política econômica de concentração de renda."
Relembre: Como era viver no Brasil da inflação descontrolada dos anos 1980?
Segundo os últimos cálculos do Dieese, o salário mínimo ideal para garantir as necessidades de uma família de quatro pessoas atualmente é superior a R$ 6,3 mil. O valor é mais de cinco vezes maior que o piso atual praticado no Brasil, de R$ 1.212.
Fausto Augusto Júnior ressalta que, além de significar melhoria nas condições de vida da população, a valorização do salário mínimo impulsiona a economia e pode ajudar a reverter a crise que o Brasil vive atualmente.
"Ela puxa o conjunto das remunerações e amplia a participação do trabalho na renda e na geração da riqueza. Quando você tem a valorização do salário mínimo, de alguma forma, você também leva recursos para as regiões mais pobres do país, seja no interior, seja nas periferias. Inevitavelmente, quem ganha um salário transforma esse valor em consumo. Estamos falando da ampliação das compras, da movimentação do comércio e do setor de serviços."
A medida de Paulo Guedes pode ser enviada ao Congresso Nacional na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa apresentar mecanismos para a continuidade do Auxílio Brasil de R$ 600. Segundo documento obtido e revelado pelo jornal Folha de S. Paulo, a ideia do governo é atrelar o aumento do mínimo às expectativas de inflação ou à meta estabelecida e não pela alta real dos preços.
:: O Brasil e a escassez: o que os momentos históricos de carestia nos ensinam? ::
Os riscos de ampliação da desigualdade, esgotamento da classe média e aumento da pobreza são "desumanos" nas palavras do professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Daniel Negreiros Conceição.
"A proposta de desindexação do salário mínimo e das aposentadorias é tão absurdamente desumana que até muitos economistas ortodoxos se manifestaram indignados contra ela. É uma aberração baseada num entendimento totalmente incompetente do funcionamento de economias monetárias."
Paulo Guedes garantiu que o mínimo não ficará sem reajustes, mas não explicou em que base eles vão ocorrer se a desindexação for colocada em prática. Na análise de Negreiros, a proposta "subestima absurdamente a desvantagem dos trabalhadores na barganha com seus patrões por salários maiores, especialmente em economias com sindicatos cada vez mais fracos ou inexistentes".
"Na ausência de um piso legal para os salários, a tendência é que os salários se tornem cada vez mais deprimidos, pois a alternativa ao emprego remunerado para o trabalhador é a impossibilidade de garantir o seu sustento e de sua família", explica. "E, como vimos, quanto mais deprimidos os salários, menor tende a ser a demanda da maioria trabalhadora por bens e serviços, deprimindo também a produção agregada da economia (o PIB) e o nível geral de emprego. Então podemos dizer com muita segurança que a redução do salário mínimo real tenderá a reduzir o emprego, que é o oposto do que insistem em defender os economistas do governo."
Ou seja, além dos empregados, as mudanças também podem trazer prejuízos para os patrões, ao menos em setores da economia que dependem do consumo dos trabalhadores para se manterem aquecidos, como o varejo.
"Não adianta nada pagar salários menores se o patrão não conseguir vender as suas mercadorias. Por isso é que não se pode esquecer o efeito dos salários na distribuição do poder de compra agregado e, consequentemente, na demanda agregada por bens e serviços. Quando você reduz o poder de compra do salário mínimo definido em lei, você reduz a demanda por bens e serviços de todos os trabalhadores que recebem o salário mínimo e de pensionistas cujas rendas estão definidas em termos do salário mínimo", analisa Negreiros.
Edição: Nicolau Soares