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Era Putin encara seus maiores desafios em meio a novos ataques contra Kiev

Kremlin faz alta aposta com convocação, anexação e novos ataques em momento delicado da guerra na Ucrânia

Rio de Janeiro |

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Putin em evento da Comunidade dos Estados Independentes - Ramil Sitdkov / Sputnik / AFP

Em 21 de setembro, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou uma mobilização "parcial" no país, convocando novos 300 mil reservistas para a guerra na Ucrânia. Na semana seguinte, Moscou oficializou a anexação das regiões de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye à Federação Russa. Junto a isso, Moscou voltou a realizar ataques massivos em todo o território ucraniano, inclusive na capital Kiev, em meio a dificuldades que o país vem enfrentando com a contraofensiva ucraniana. Este cenário impõe desafios inéditos ao presidente Vladimir Putin na sustentação de sua força política no país.

Se o dia 24 de fevereiro, data do anúncio da operação militar russa no país vizinho, já é considerado entre os russos como um divisor de águas que transformou a vida do país, a nova escalada na guerra da Ucrânia, que, na prática, traz a guerra para dentro da Rússia, enviando centenas de milhares de jovens russos para o front, e incorporando territórios ucranianos em disputa à Federação Russa, levou a uma nova inflexão no aumento da insatisfação com o conflito.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político Abbas Gallyamov observa que as novas ações de Putin prejudicam a lealdade que o presidente conquistou com parte da população ao longo do seu governo. De acordo com ele, o prolongamento do conflito vem gerando na sociedade um "estado de espírito" de um pessimismo no país.

"A mobilização atingiu fortemente a lealdade da população [a Putin]. Essa lealdade está diminuindo, e antes disso já vinha diminuindo. […] De uma maneira geral, desagrada à população que tudo se arraste por tanto tempo, que a guerra consuma mais e mais recursos, tanto econômicos quanto humanos, e, em parte, o estado de espírito na sociedade é de um certo pessimismo no país", declara.

O analista destaca, entretanto, a dificuldade de mensurar a insatisfação popular em números concretos na Rússia, considerando o "caráter repressivo" do atual regime. "As pessoas se recusam a falar com sociólogos, ou simplesmente mentem nas pesquisas. Então a deslegitimação está ocorrendo, ela foi acelerada, mas não é possível medir isso em cifras", acrescenta.

O grupo de pesquisa Russian Field, em seu mais recente estudo sobre o grau de apoio dos russos à "operação especial militar" no território da Ucrânia, mostrou que a maioria dos entrevistados (72%) segue acreditando que a Rússia está se movendo na direção certa. A opinião de que Moscou está indo na direção errada representa 18% dos entrevistados, enquanto outros 9% dos participantes do estudo acharam difícil responder à pergunta.


Forças de segurança fazem um cordão de isolamento em frente ao Teatro Bolshoi, em Moscou. / Alexander Nemenov / AFP

No entanto, o próprio estudo chama a atenção para o fato de que os resultados da pesquisa sobre questões relacionadas ao que está acontecendo na Ucrânia "podem não coincidir com a situação real", porque "os russos têm medo de falar sobre esse assunto". De acordo com a organização, "as recusas aumentaram e a sinceridade diminuiu".

Mas outro dado abordado pela pesquisa mostra que cerca de um terço dos entrevistados cancelaria a decisão de lançar uma "operação militar" no território da Ucrânia se tal oportunidade existisse. Metade dos entrevistados não mudaria nada no curso dos acontecimentos, enquanto outros 14% acharam difícil responder. A parcela daqueles que hipoteticamente cancelariam a decisão de iniciar uma "operação militar" é muito maior entre os jovens (54%).

O sociólogo russo Gregory Yudin argumenta que a recusa e o medo em responder pesquisa de opinião pública são um fator determinante nos estudos do país. Em texto publicado nas redes sociais, ele afirma que, embora a falta de resposta nas pesquisas seja um problema em muitos países, "isso afeta as pesquisas russas de forma desproporcional". De acordo com Yudin, os russos interpretam pesquisas como uma forma de "interação com o Estado, independentemente de quem faz a pesquisa". "Este não é o caso no Ocidente", completa.

"Portanto, aqueles que concordam em participar são mais propensos a serem leais ao Estado. Quanto maior a desconfiança no Estado, menos incentivos para participar de pesquisas. Pessoas mais jovens, homens em particular, são muito menos propensas a cooperar", analisa.

"No entanto, com esta guerra e especialmente com a mobilização, o medo tornou-se definitivamente um fator importante. Anteriormente, nos relatórios internos dos pesquisadores, os entrevistadores costumavam mencionar o medo como uma emoção comum entre os entrevistados que distorciam suas respostas. Agora esse índice tornou-se enorme", acrescenta Yudin.

Os russos querem vitória ou paz?

No dia 10 de outubro, pela primeira vez desde o primeiro mês do conflito, a Rússia voltou a realizar bombardeios em todo o território da Ucrânia, inclusive na capital Kiev., atingindo a infraestrutura de energia do país, mas áreas residenciais também não foram poupadas, gerando mortes de civis. Na última segunda-feira (17), a Rússia realizou novos ataques na capital ucraniana usando os chamados "drones kamikazes".

A mudança de abordagem na estratégia militar russa tem como causa a contraofensiva ucraniana, que ainda em setembro anunciou a retomada do controle de uma série de territórios na região de Kharkov, no leste do país. Porém, o golpe mais significativo e simbólico contra a Rússia foi a explosão na ponte da Crimeia, estrategicamente crucial para Putin, representando um dos principais símbolos da anexação russa da península em 2014.

A construção também tem uma grande importância logística, pois atualmente ela é usada para abastecer o exército russo no sul da Ucrânia. O comando militar ucraniano repetidamente afirmou no curso da guerra que a ponte deveria ser destruída.


Incêndio atinge ponte de Kerch que liga a Crimeia à Rússia, em 8 de outubro de 2022. / AFP

Assim, a mobilização, os referendos de anexação e os massivos ataques russos nos territórios ucranianos respondem a uma necessidade do Kremlin de demonstrar uma vitória em um conflito que se arrasta há quase oito meses sem uma perspectiva de fim.

Para o cientista político Alexander Khramchikhin, citado pelo portal Meduza, a mobilização foi quase certamente [anunciada] sob a influência da retirada das tropas russas de Kharkov, pois "ficou claro que não havia pessoas suficientes para manter a linha de frente e os territórios ocupados". "Ao mesmo tempo, a maioria da população não quer paz, mas vitória - e, aparentemente, o Kremlin começou a adivinhar isso. Além disso, nas condições atuais, qualquer paz parecerá uma capitulação completa da Rússia", analisa.

Já o pesquisador Abbas Gallyamov também sustenta que a maioria da população russa "ficaria feliz" com uma vitória no campo de batalha em relação à Ucrânia, e que as pessoas que ficariam insatisfeitas com o sucesso militar russo hoje representam uma parcela de 30-35%. No entanto, ele destaca que "não há cheiro de vitória".

Portanto, Gallyamov argumenta que a sustentação de um apoio ao governo não se resume a uma dicotomia entre "vitória ou paz", mas a uma "escolha entre a continuação da guerra de perspectivas incompreensivas ou a paz".

"Nesse sentido, a demanda por paz aumenta. Pelo aumento do entendimento que a vitória não está no horizonte, e se [a Rússia] quiser vencer, é preciso jogar mais e mais recursos, inclusive recursos humanos, através da mobilização. Nessa situação, cresce a demanda por paz", acrescenta. .

Segundo ele, os motivos que foram anunciados no começo do conflito, como a necessidade de resistir à ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a desnazificação da Ucrânia, só poderiam ser sustentados na opinião pública se fossem justificados por uma vitória rápida, fácil e sem sangue, "como no caso da Crimeia".

“Mas pelo aumento da compreensão de que não haverá uma vitória rápida e sem sangue, e que talvez não haja nenhuma vitória sequer, é claro que as pessoas começam a pensar mais seriamente: 'Nós precisamos dela? Pra quê tudo isso?'”, completa.

Edição: Thales Schmidt