Não foram poucas as vezes em que o Jair Bolsonaro (PL) encheu a boca para falar sobre o suposto fim da corrupção no governo federal depois que ele assumiu a principal cadeira do Palácio do Planalto. A realidade, porém, é bem diferente.
Trocas de ministros, interferências na Polícia Federal, sigilos: a atuação de Bolsonaro desde 1º de janeiro de 2019, quando subiu a rampa do Palácio, mostra que, se houve algo que realmente acabou, foi, na verdade a investigação sobre cenários de corrupção.
O Brasil de Fato lista aqui alguns casos em que, por ação ou omissão, o chefe do executivo trabalhou de forma a dificultar ou impedir investigações sobre casos de corrupção ligados diretamente a ele, a integrantes do Governo ou a familiares.
Ameaças de interferências na PF
"Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f******. minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança da ponta de linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira". A fala de Bolsonaro em reunião ministerial em 22 de abril de 2020 mostra claro o modus operandi do Governo "no tocante" à corrupção.
“Eu não posso ser surpreendido com notícias. (...) E me desculpe o serviço de informação nosso – todos – é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça, não é extrapolação da minha parte. É uma verdade”, afirmou o ex-militar expulso do Exército.
Dias depois da reunião, Bolsonaro exonerou o então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo. O caso foi, inclusive, o motivo que levou o ex-juiz Sergio Moro a pedir demissão do cargo de ministro da Justiça e da Segurança Pública. Ao entregar o posto, Moro disse que ouviu de Bolsonaro que gostaria de ter uma pessoa "do contato pessoal dele" chefiando a PF. Supostamente indignado, Moro deixou o Ministério. Em 2022, parece não se incomodar mais com a postura do ex-chefe. Agora senador eleito pelo União Brasil do Paraná, ele declarou apoio a Bolsonaro nas eleições presidenciais.
Trocas de diretores da PF
A interferência na Polícia Federal não ficou apenas na ameaça. Desde que assumiu o Governo, o presidente trocou o diretor-geral da Polícia Federal quatro vezes. Ou seja: a média de permanência dos ocupantes do principal cargo da PF, sob Bolsonaro, é de menos de um ano.
Márcio Nunes de Oliveira, atual titular do cargo, foi secretário-executivo do Ministério da Justiça, ao qual é vinculada a Polícia Federal. Foi superintendente-regional da PF no Distrito Federal entre maio de 2018 e abril deste ano, quando assumiu a direção-geral. Ele é homem de confiança do atual ministro da Justiça, Anderson Torres, que chegou à Esplanada dos Ministérios em março de 2021.
Antes dele, passaram pelo cargo Maurício Valeixo (indicado por Moro), Rolando Alexandre de Souza e Paulo Gustavo Maiurino. Bolsonaro ainda tentou indicar Alexandre Ramagem, ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas a nomeação foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Delegados afastados
Não foram apenas os diretores da PF que tiveram o trabalho cerceado por ação direta do Governo. Pelo menos cinco delegados foram afastados depois de atuarem em processos que envolvem aliados ou familiares de Bolsonaro.
Já em agosto de 2019, primeiro ano de governo, o delegado Ricardo Saadi foi afastado da superintendência da PF no Rio de Janeiro enquanto chefiava investigação sobre possíveis elos entre milícias do Rio de Janeiro e a família de Bolsonaro. Os trabalhos ganharam força depois de investigação sobre gastos irregulares feito pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que chegou ao gabinete de Flávio Bolsonaro.
Em abril de 2021, o delegado Alexandre Saraiva, que era superintendente da PF no Amazonas, foi afastado do cargo um dia depois de enviar ao Supremo Tribunal Federal (STF) notícia-crime contra o então ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, que teria atuado para obstruir investigações de crimes ambientais na Amazônia.
Outro caso de destaque aconteceu em dezembro de 2021, quando a delegada Dominique de Castro Oliveira, que atuava na Interpol, foi chamada de volta à Superintendência da PF em Brasília. Ela foi a responsável pela ordem de prisão no exterior do bloqueiro Allan dos Santos, aliado de primeira ordem de Bolsonaro.
Destino semelhante teve o ex-superintendente da PF no Distrito Federal, delegado Hugo de Barros Correa, que perdeu o cargo depois de atuação em inquéritos que investigam Jair Renan Bolsonaro, filho do presidente. Em maio de 2022, Correa passou a ser o responsável pelo processo interno de implementação de planos de saúde para funcionários da PF.
Em março deste ano, o delegado responsável pela Diretoria de Investigação e Combate à Corrupção, Luís Flávio Zampronha, perdeu o cargo. Quem ocupa o posto é responsável por ações que tramitam no STF contra políticos com foro privilegiado, entre eles o próprio presidente.
Wassef e Queiroz
Quando Fabrício Queiroz foi preso, em junho de 2020, Frederick Wassef ganhou os holofotes. Advogado do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, ele abrigou o foragido ex-assessor do chefe em uma casa em Atibaia (SP). Antes disso, tinha falado que não sabia do paradeiro de Queiroz. Detalhe: o ex-assessor permaneceu na residência por ao menos um ano, segundo a Polícia Civil.
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O advogado nunca teve cargo no Governo, mas é frequentador assíduo do Planalto desde o início do mandato de Bolsonaro. Ele disse que escondeu Queiroz "por motivos humanitários" e com a intenção de proteger o presidente. Wassef jura que Bolsonaro nunca soube de nada.
Sigilos de 100 anos
Os vários decretos de sigilo de 100 anos impostos por Bolsonaro ganharam espaço durante o período eleitoral. O tema foi citado em debates, inclusive pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que prometeu suspendê-los caso volte ao Planalto.
Em pelo menos quatro oportunidades o atual presidente lançou mão de uma brecha na Lei de Acesso à Informação (LAI) e vetou acesso a informações.
Em janeiro de 2021, o Planalto decretou sigilo de até 100 anos ao cartão de vacinação do presidente e a informações sobre as doses de vacinas já recebidas pelo chefe do Executivo. Não se sabe se porque ele não tomou mesmo a vacina contra a covid-19 ou se contrariou seu próprio discurso antivacina e tomou escondido.
Também em 2021, mas em maio, Bolsonaro voltou a lançar mão da brecha na LAI e decretou sigilo de 100 anos sobre processo interno para proteger o aliado Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, eleito recentemente para o cargo de deputado federal.
O Exército apurava a participação do general em ato político ao lado do presidente. A decisão foi da comissão formada por servidores do alto escalão de sete ministérios. A justificativa foi de que a divulgação do documento representaria risco aos princípios da hierarquia e da disciplina do Exército.
Os filhos, claro, não poderiam ficar de fora da farra do sigilo. No fim de julho de 2021, o presidente determinou 100 anos de segredo para dados de acesso dos filhos Eduardo e Carlos Bolsonaro ao Planalto. A decisão aconteceu em meio às investigações sobre um possível gabinete paralelo que orientava Bolsonaro na condução da pandemia, e que teria participação de ambos.
A justificativa para os sigilos foi que as informações solicitadas "dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem dos familiares do senhor Presidente da República, que estão protegidas com restrição de acesso, nos termos do artigo 31 da Lei nº 12.527, de 2011".
Em 13 de abril, em meio ao escândalo de corrupção no Ministério da Educação que mais tarde levaria à demissão do ministro e pastor Milton Ribeiro, um internauta usou as redes sociais para questionar Bolsonaro sobre a decretação dos sigilos. "Presidente, o senhor pode me responder por que todos os assuntos espinhosos/polêmicos do seu mandato você põe sigilo de 100 anos? Existe algo para esconder?"
O perfil do presidente respondeu em tom de deboche.
- Em 100 anos saberá. 👍
— Jair M. Bolsonaro 2️⃣2️⃣ (@jairbolsonaro) April 13, 2022
"Cara no fogo"
A saída do ministro da Educação Milton Ribeiro, em 28 de março deste ano, foi uma solução encontrada para tentar livrar Bolsonaro de mais um escândalo em ano eleitoral. Mas o presidente lutou o quanto pode para manter o aliado no cargo, mesmo sob diversas acusações de corrupção.
Em live nas redes sociais quatro dias antes do pedido de demissão ser entregue por Ribeiro, Bolsonaro afirmou que botava "a minha cara no fogo pelo Milton", e disse que as denúncias eram consequência de "covardia".
O ex-ministro se tornou o foco de investigações sobre escândalos de corrupção no Ministério da Educação envolvendo pastores aliados, que comandariam a distribuição de verbas. Pressionado pela bancada evangélica, Bolsonaro teve de ceder, e a carta de demissão entregue por Ribeiro encerrou a passagem dele pelo cargo.
Wal do Açaí defendida pela AGU
O hoje presidente usou estrutura do Governo federal para defender Walderice Conceição, a Wal do Açaí, suspeita de ter sido funcionária fantasma do gabinete de Bolsonaro quando ele era deputado federal.
A Advocacia-Geral da União (AGU), que representa o governo federal juridicamente, assumiu a defesa de Wal no processo que tramita na Justiça, e alegou que o fato dela nunca ter estado em Brasília quando era contratada como assessora era irrelevante, dado que "as regras vigentes expressamente autorizam a prestação de serviços no Estado Federado de representação". Na época, Bolsonaro era deputado pelo Rio de Janeiro, e Wal vivia no município fluminense de Angra dos Reis.
O Ministério Público Federal (MPF) cobra na Justiça a devolução de todos os salários pagos a Wal do Açaí durante todo o período em que foi assessora de Bolsonaro, entre 2003 e 2018.
Edição: Rodrigo Durão Coelho