Eleita senadora pelo Distrito Federal, Damares Alves (Republicanos) conseguiu se projetar como a principal voz feminina de Jair Bolsonaro (PL) para sua agenda conservadora e de costumes. Ela se credencia por uma votação expressiva e pela inegável capacidade de mobilizar apoiadores e a mídia em torno de suas pautas. Segundo analistas, a ascensão da pastora evangélica da Igreja Pentecostal representa uma ameaça ao campo progressista em qualquer cenário no disputado segundo turno das eleições.
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A pastora da igreja Pentecostal soube surfar nas plataformas de projeção do conservadorismo e se sagrou aclamada com 44% dos votos válidos para seu primeiro mandato eletivo. Ela estabeleceu uma margem de 17% para a segunda colocada, a deputada Flávia Arruda (PL), com quem compartilhava o apoio formal de Bolsonaro, e com ainda mais sobras perante a professora e sindicalista Rosilene Corrêa (PT), que findou com 22% do eleitorado.
Na sede do Sindicato dos Professores do DF, a petista reforçou ao Brasil de Fato a forte conexão programática entre suas adversárias. “Lamentavelmente, entre nós três, somente eu sustentei um projeto progressista, feminista, que de fato teria um mandato para defender as mulheres. As duas sustentavam um projeto de retrocesso, conservadorismo e de machismo que tem o aumento do feminicídio, do desemprego da mulher, sobretudo da mulher negra e do desemprego que afeta ainda mais as mulheres”.
Em declarações concedidas após o sucesso no pleito de domingo (2), Damares já mostrou as garras para os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ao dizer que poderá investigá-los. Também se mostrou ambiciosa em assumir lugar de destaque no organograma que será formado no Senado.
“Dependendo dos planos da Tereza Cristina no Senado, Damares já se candidatou a ser presidente da Casa. E aí, ganhe Bolsonaro ou Lula, uma mulher como essa na presidência no Senado... só um exemplo básico, na atual configuração do Senado, nós não teríamos uma CPI da Covid, como não tivemos nenhum impeachment nos quase 200 pedidos enviados à Câmara”, supõe a cientista política Rosemary Segurado, professora da PUC de São Paulo.
Durante a campanha eleitoral e mesmo antes, a ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos manteve estreita amizade com a primeira-dama Michelle Bolsonaro. Juntas, atraíram boa parte dos disputados votos evangélicos, inclusive entre as mulheres, público em que Bolsonaro se sai pior. Mas o resultado das urnas mostra que não foram só deles, mas de muita gente que abraçou o pânico moral instaurado pela ultradireita mundo afora.
De acordo com Rosemary, a sublevação de ideologias “reacionárias” no período histórico brasileiro acompanha um fenômeno também visto em outros países onde a ultradireita conseguiu atrair muitos novos apoiadores. Ela menciona os Estados Unidos, que ainda se aglutinam em torno de Donald Trump, a Hungria, de Viktor Orbán, e a Itália, da recém-eleita Giorgia Meloni, do partido conservador Irmãos da Itália.
“A estratégia é contrastar bandeiras que são clássicas de uma perspectiva progressista republicana, não só de esquerda e centro-esquerda, sobre o tratamento a algumas bandeiras ligadas aos direitos humanos. Não é à toa que ela (Damares Alves) vai para esse lugar no ministério. E nas pautas ligadas às mulheres, há uma confrontação discursivo-ideológica sobre pautas que ganharam espaço a nível global, como a ampliação de direitos trabalhistas, por exemplo, e a autonomia sobre o próprio corpo”, identifica Rosemary.
Do lobby pentecostal ao topo da máquina pública
Nascida no Paraná e criada no Nordeste e no interior de São Paulo, Damares é reconhecida pela desenvoltura para discursar em público e naturalidade para expressar seus sentimentos, tanto no púlpito quanto fora dele. Uma naturalidade para cativar o público influenciada por seu falecido pai, Henrique Alves Sobrinho, que também foi pastor.
O conhecimento e habilidades políticas da futura senadora para um mandato de oito anos iniciaram após sua graduação em direito, dividindo sua rotina eclesiástica com a de assessora parlamentar para diferentes parlamentares também pastores.
Já partícipe de iniciativa com objetivo de prevenir a agressão infantil, Damares colocou a educação no centro do debate conservador e revisionista ao encampar o projeto “Escola Sem Partido”, enquanto dirigente da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure).
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Em seu discurso de posse como ministra do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019, anunciou que acabaria com a “doutrinação” de crianças e adolescentes, a “sexualização” e até um suposto estímulo à diversidade sexual nas escolas, teoria difundida como ideologia de gênero. Motes que permaneceram sob fogo alto durante os quase quatro anos à frente da pasta.
Porém, o carro-chefe escolhido pelos cristãos conservadores seria outro, bastante requentado durante as campanhas presidenciais: a luta contra o direito ao aborto. Sob Damares, esse tema se chocaria com o princípio de laicidade do Estado.
Além de campanhas e discursos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) chegou a abrir uma apuração preliminar, em 2020, para investigar se a então ministra agiu para evitar a interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos no Espírito Santo.
“Você pensar em alguém assim representando o DF é muito grave. É assustador ouvir algumas coisas. Isso se dá porque ela faz da atuação dela um ativismo, ela é uma ativista. O Estado tem que ser laico, então como é que eu me coloco como uma representante falando em nome de Deus? (...) Isso é uma distorção. Mas nós estamos vendo uma lógica no Brasil em que isso está se sobrepondo”, lamenta Rosilene.
Alavancada pela estridência de sua base, Damares Alves consegue faturar politicamente mesmo com um corte de 90% da verba de combate à violência contra a mulher durante o governo Bolsonaro. De acordo com dados da pasta, o dinheiro destinado à proteção das mulheres caiu de cerca de R$ 100 milhões, em 2020, para R$ 30,6 milhões no ano passado e módicos R$ 9,1 milhões aplicados este ano.
Rosilene também critica a desidratação das políticas afirmativas durante a pandemia e o negacionismo que motivou até campanhas contra a vacinação de mulheres grávidas, além do silêncio da ex-ministra sobre o fato de o Brasil ter 8 em cada 10 mulheres nessa condição mortas pela doença no mundo. “Como é isso? Que moral tem essa pessoa para falar que representa e defende as mulheres?”, questiona.
Eleitores do DF ajudam a ampliar frente conservadora no Congresso
A onda destra que varreu a capital política do país, além de garantir a hegemonia de Bolsonaro no primeiro turno, também pavimentou o caminho para candidaturas da direita à Câmara dos Deputados. A deputada Bia Kicis (PL) foi reeleita com a maior quantidade de votos, mais de 214 mil, seguida pelo ex-apresentador de programas policiais na TV Fred Linhares (Republicanos), que se elegeu com 165 mil votos.
Das oito candidaturas eleitas à Casa, apenas duas são do campo progressista: a petista Érika Kokay, que havia sido a deputada federal mais votada em 2018, e o professor Reginaldo Veras (PV), que partiu de dois mandatos como deputado distrital. Em entrevista ao Brasil de Fato, Veras projetou um mandato de Damares mais projeto ao cenário nacional do que aos problemas regionais.
“Eu acho que vai ser uma gestão parecida com a da Bia Kicis. Zero de olhar para o Distrito Federal, 100% de olhar para o bolsonarismo, o que é bom que a população brasiliense aprenda. Ainda que a gente vá fazer uma representação federal, que a gente tenha que cuidar da federação, a gente não pode perder o olhar para a nossa comunidade”, registra.
Sobre a nova correlação de forças no Congresso Nacional, o deputado recém-eleito também projeta dificuldades para evitar que medidas mais urgentes à população sejam preteridas pela grita ideológica da sua colega no Senado. “São pautas que me preocupam bastante, considerando que a estrutura eleita no Senado e na Câmara é mais conservadora do que na legislatura anterior. E me preocupará ainda mais se o presidente Lula não for eleito”, alerta.
Vera considera que um eventual cenário do ex-presidente Lula nas urnas também abrirá campo para atuação de Damares e outros fiéis escudeiros ao atual projeto de poder. “Caso Bolsonaro venha a se reeleger, você vai ter um presidente empoderado, que não tem mais nada a perder porque não tem uma reeleição para disputar e ele vai ter uma grande base no Congresso, o que para nós do campo progressista representará um enfrentamento ainda maior”, conclama.
Se Lula se sagrar vitorioso no dia 30 de outubro, Rosilene espera que os campos democráticos e de esquerda iniciem uma força-tarefa para seguir conquistando mentes e corações mesmo após a posse. “Ou a gente, tanto Executivo e Parlamento, democratiza a participação popular ou daqui a 4 anos estaremos sofrendo uma nova derrota. Precisamos trazer as pessoas para que elas vivam juntas, entendam o que está acontecendo e sejam ouvidas”, defende a professora.
Edição: Daniel Lamir