Primeiro de janeiro, o sargento aposentado da Brigada Militar de Ijuí (RS) Vilmar Cabreira, de 57 anos, assassinou com tiros de arma de fogo a esposa Clairane dos Santos, de 40 anos, e a vizinha Fernanda Dornelles Coelho, de 24, durante a madrugada de 1º de janeiro, em São Borja (RS). 17 de janeiro, duas mulheres, mãe e filha, foram mortas a tiros pelo ex-companheiro da mais jovem, na cidade de Passo Fundo. 7 de fevereiro, uma mulher de 26 anos foi assassinada a tiros pelo ex-companheiro, em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre.
Cinco corpos de mulheres que tombaram em razão do gênero. No mês de janeiro de 2022, foram registrados 10 feminicídios consumados e 20 tentativas no Rio Grande do Sul, de acordo com o Observatório Estadual de Segurança Pública do RS.
Uma pesquisa feita pela Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (CEVID), do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), divulgada em janeiro deste ano, aponta uma realidade já conhecida: a maioria dos feminicídios são cometidos por companheiros ou ex que não aceitam o fim do relacionamento e acontecem na casa da vítima.
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Em 2021, o estado registrou 97 feminicídios, em 2020 foram 80. Pelo levantamento feito pelo projeto Lupa Feminista contra o Feminicídio, foram registrados 99 casos, dois destes de mulheres trans. De acordo com a Associação Nacional dos Travestis e Transexuais (ANTRA), ocorreram cinco transfeminicídios no Rio Grande do Sul em 2021.
Na última década (2012 até 10 de fevereiro de 2022), foram registrados 954 feminicídios no estado. “Os dados demonstram que o Estado mantém certa estabilidade, em altos patamares, em relação a esses números, com um pequeno recuo somente entre 2012 e 2014. Se tu for olhar o ano de 2018, por exemplo, ocorreram 116 feminicídios no estado”, destaca Thaís Pereira Siqueira, mestre em Psicologia Social e Institucional, psicóloga e consultora de projetos e integrante do Coletivo Feminino Plural, e coordenadora do Lupa.
Em 2020, ano que estourou a pandemia, o Rio Grande do Sul ocupou o 4º lugar no país em números de feminicídios.
Levantamento TJ-RS
O levantamento realizado pelo TJ-RS analisou o perfil de vítimas e agressores envolvidos em 176 processos que tramitam na Vara Especializada de Feminicídios da Comarca da Capital.
:: Força-tarefa de combate a feminicídios organiza ações no Rio Grande do Sul ::
Segundo a pesquisa, dos 176 processos, 34 envolvem feminicídios consumados. Em 69% dos casos, as tentativas ou assassinatos de mulheres envolvem os ex ou companheiros atuais das vítimas.
Dos crimes que acontecem nas casas das vítimas, 58% são motivados pela inconformidade com o fim dos relacionamentos e por sentimentos de posse e de ciúmes. Em 86% dos casos, as mulheres não contavam com Medidas Protetivas de Urgência (MPU). A maior parte são mulheres jovens de 18 a 38 anos, 63% brancas e 22% negras. Já os réus, 79% são brancos e 16% negros. As armas utilizadas nesse tipo de crime são as brancas (53%), de fogo (19%) ou as próprias mãos (17%).
“Os ex-companheiros serem os principais agressores, no caso assassinos (feminicidas), é uma questão de muito tempo já. A casa é identificada para as mulheres e crianças brasileiras como o local mais violento. Enquanto os homens estão vinculados à violência urbana, as mulheres nas suas mortes e diversos tipos de violência estão vinculadas à vida doméstica. Essa já é uma situação conhecida, o machismo aponta o quanto o corpo da mulher e suas vontades estão sujeitas à morrer em virtude do comportamento de companheiros”, salienta coordenadora da Força-Tarefa Interinstitucional de Combate aos Feminicídios, Ariane Leitão.
Conforme destaca Thais, é preciso estar atento aos feminicídios íntimos quanto a outros tipos de feminicídio. De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2021, ocorreram 3.913 homicídios de mulheres no país em 2020. Desse universo, 1.350 foram considerados feminicídios, os demais foram considerados homicídios de mulheres.
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“14,7% dos homicídios de mulheres foram cometidos por parceiro ou ex-parceiro e não foram considerados feminicídio. Foram em números brutos, 377 mulheres que foram mortas por alguém com quem possuíam um vínculo íntimo, mas que não foram situações consideradas feminicídio. Por isso as Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres são tão importantes e devem ser seguidas pelos órgãos de segurança pública e justiça”, expõe.
Casa de abrigo a local de risco
Além das consequências sociais, econômicas, a pandemia aprofundou a violência doméstica. Como destaca o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as mulheres sofreram mais violência dentro da própria casa e os autores de violência são pessoas conhecidas da vítima. Uma em cada quatro mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão.
O relatório anual da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE/RS), divulgado ano passado, mostra que, de outubro de 2020 a setembro de 2021, o número de peticionamentos (pedidos feitos pelos defensores públicos à Justiça), envolvendo violência doméstica, aumentou 257%. No total, foram 25 mil peticionamentos na área. A violência doméstica também foi o sétimo assunto mais frequente dos atendimentos, sendo responsável por 17 mil registros, contra 10 mil do período anterior – um aumento de 70%.
“O que a gente sabe também é que aumento na verdade é a ponta do iceberg. Porque o número de subnotificações é muito alto. Estima-se que haja quatro subnotificações para cada caso que chegue no sistema de justiça, que entra pela porta da delegacia de polícia. Então se sabe que os números reais da violência doméstica lamentavelmente são muito maiores do que esses”, enfatiza a defensora pública Luciana Artus Schneider.
Para a defensora, o isolamento resultante da pandemia agravou o quadro de conflitos domésticos. “O período pandêmico causou um empobrecimento das famílias gerado pelo alto índice de desemprego, pela inflação, a diminuição do poder de compra, aumento do preço das cestas básicas, gás de cozinha. Essa questão do empobrecimento também potencializou os conflitos dentro das famílias. A pandemia serviu então como um gatilho para o aumento de casos de violência doméstica. O excesso de convivência dentro de um ambiente acaba potencializando conflito ao invés de potencializar uma convivência sadia e harmoniosa dentro da família”, acredita.
Ausência de políticas para as mulheres
Com o advento da Lei Maria da Penha, uma rede para enfrentar à violência contra as mulheres foi se criando e sedimentando com as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), os Centros de Referência, que formam a porta de entrada para uma mulher em situação de violência buscar ajuda, assim como Unidades Básicas de Saúde, CRAS, CREAS, hospitais, Brigada Militar, defensoria pública.
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Apesar de haver uma estrutura, a rede de proteção foi sendo afetada pelo desmonte das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres. No estado, esse desmonte teve início em 2015 com a extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres e a total desarticulação da Rede Lilás.
“Alguns Centros de Referência e abrigos, por exemplo, foram ou estão sendo fechados. O Centro de Referência Estadual Vânia Araújo, por exemplo, foi fechado e a equipe se encontra trabalhando na garagem do CAFF (Centro Administrativo Fernando Ferrari). Hoje nós temos alguns serviços, mas não temos rede de fato, o que pressupõe um trabalho articulado que prevê estratégias efetivas de prevenção e políticas públicas com assistência qualificada às mulheres”, aponta Thais.
Para Ariane, o aumento da violência como também dos casos de feminicídio refletem a ausência de políticas para as mulheres e uma rede de atendimento aqui no RS. “Infelizmente, perdemos 97 mulheres no ano passado, mesmo denunciando e fazendo todo um trabalho de enfrentamento, não foi possível identificar nenhuma ação concreta do governador para enfrentar os feminicídios, ao contrário, só mais desarticulação da Rede Lilás”, frisa. Ela também destaca a não aplicação de recursos públicos para garantia de direitos humanos de mulheres e crianças.
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“É uma opção politica e ideológica deste governo. O governo Eduardo Leite sabe bem o que faz: a não articulação das políticas públicas, a falta de posse para o Conselho Estadual da Mulher, a ausência de orçamento para este espaço que fiscaliza as políticas públicas”, enumera. Ela também alertou para o descaso do governo federal, que vem cortando verbas de forma permanente para as políticas públicas para as mulheres, sobretudo as que enfrentam violência.
“A Lei Maria da Penha e as Diretrizes Nacionais de acolhimento às vítimas de violência, que é um documento nacional que não foi revogado, elaborado durante a época da existência do Ministério das Mulheres, determinam a destinação de orçamento. Enquanto essas normativas não forem cumpridas nós vamos continuar tendo um aumento nos feminicídios no RS e de todas as formas de violência contra a mulher”, frisa Ariane.
"É urgente o aumento de casas de acolhimento para as mulheres"
Para a defensora Luciana, ainda há muito que crescer e evoluir em termos de rede. “Nós vemos na prática que para a mulher sair do ciclo de violência ela precisa desse empoderamento, desse apoio. Tem muitas mulheres que não separam, que não saem do relacionamento por medo, pelo risco de perder os filhos. E isso é uma ideia que precisa ser desconstruída. É ai que entra a educação em direitos, muito importante para que aquela mulher, através da informação saiba os seus direitos e não tenha receio, não tenha que se submeter a um relacionamento abusivo por medo”, enfatiza, destacando a urgência do aumento de casas de acolhimento para as mulheres, especialmente no Interior.
“Precisaria de um lugar para ficar, protegido e preparado para recebê-la. Muitos municípios fazem convênios com hotel, pousada para suprir aquilo que mais se tenta evitar, que eu mesma já presenciei, que é uma mulher, com seus filhos pequenos dormindo no chão de uma delegacia de polícia. Isso nós não podemos admitir”, finaliza.
Do início deste ano até o momento, o Lupa Feminista contra o Feminicídio identificou através da imprensa, no mínimo 12 mulheres assassinadas por serem mulheres. “Somente com uma rede forte, articulada e estabelecida poderemos enfrentar de fato as situações de violência e realizar trabalho preventivo. Em nível nacional, temos um governo federal que não trabalha a favor das mulheres, ao contrário, quer revogar direitos e diminui cada vez mais o orçamento para as políticas para as mulheres”, afirma Thais.
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De acordo com a psicóloga, o trabalho vem sendo realizado de forma desarticulada entre os serviços existentes. “Os serviços direcionados às mulheres possuem cada vez menos importância. Vemos as equipes trabalhando e fazendo o que podem para manter os serviços em funcionamento. A política do governo estadual está concentrada na segurança pública, que é importantíssima, porém é insuficiente para o enfrentamento da violência contra as mulheres”, enfatiza.
“Nós já sabemos onde essas mulheres estão, onde a violência acontece e o perfil desses agressores. Nós precisamos trabalhar também do ponto de vista da prevenção, atuando nas escolas, com os grupos reflexivos de gênero (que a Lei Maria da Penha determina), que faz com o que os homens pensem sobre a violência”, conclui Ariane.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko