Nestas segunda e terça, 26 e 27 de setembro, completam-se oito anos do caso Ayotzinapa. Familiares das vítimas e organizações políticas mexicanas organizam anualmente a "Marcha do Anjo", uma caminhada que ocorre no dia 26 de setembro até o Zócalo, sede do governo, na Cidade do México. Já no dia 27, é realizada uma manifestação pública em nome dos desaparecidos, em Iguala, estado Guerrero.
"Como pai de família posso dizer que a primeira demanda é a aparição dos nossos filhos. Isso porque não podemos descartar a tese de que faleceram, mas também não podemos nos dar por vencidos", disse ao Brasil de Fato Clemente Rodríguez, pai de Christian Rodríguez, uma das vítimas de Ayotzinapa.
Em 2014, na noite de 26 de setembro, 42 estudantes da Escola Normal Rural "Raul Isidro" de Ayotzinapa foram atacados pela polícia do estado de Guerrero e desapareceram. Mais recentemente descobriu-se que uma 43a morte era de um militar infiltrado. Apesar de mais de 100 pessoas já terem sido detidas pelo envolvimento no crime, o caso permanece sem resolução e as famílias continuam atrás do paradeiro dos estudantes. O subsecretário de direitos humanos, Alejandro Encinas, afirmou que não há evidências de que os normalistas estejam vivos.
O caso se arrasta por oito anos com distintas versões oficiais e uma clara divisão entre os representantes do Poder Judicial. Por um lado, funcionários nomeados durante a gestão de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) tentam avançar nas investigações; por outro, funcionários vinculados à antiga gestão da Procuradoria Geral da República tentam colocar "travas institucionais", segundo denunciam alguns familiares e representantes de AMLO.
"Se chegou a um grande impasse. Ao mesmo tempo que AMLO criou a Comissão da Verdade, ele já disse que quer ter legitimidade com os militares", comenta a jornalista Luara Wandelli Loth, autora do livro "Sepultura de palavras para os desaparecidos" sobre o caso Ayotzinapa.
Em agosto, a justiça havia emitido 83 ordens de prisão contra funcionários públicos, entre eles 20 militares dos batalhões nº27 e nº43 da cidade de Iguala, estado de Guerrero.
O general José Rodríguez foi preso no dia 15 de setembro, acusado de desaparição forçada e delinquência organizada. À época do crime, Rodríguez era coronel e chefiava o 27º Batalhão de Infantaria.
"Concluiu-se que seis estudantes permaneceram com vida até quatro dias após o crime e foram executados e desaparecidos por ordens do coronel José Rodríguez", disse o subsecretário de direitos humanos do México.
Até então, o único militar preso era o capitão José Martínez Crespo, integrante do 27º Batalhão, que foi acusado de delinquência organizada e relação com tráfico de drogas. No mês passado, no entanto, também foram autuados 44 policiais, 14 narcotraficantes, além de representantes do poder Judiciário do estado de Guerrero.
Entre as autoridades civis, o ex-procurador responsável pelo caso, Jesús Murillo Karam, foi um dos detidos. Karam foi o autor da chamada "Verdade Histórica" - tese jurídica sobre o desaparecimento dos 43 normalistas (ainda não existia a informação que um deles era um militar infiltrado) divulgada pelo governo do ex-presidente Enrique Peña Nieto. A tese é apontada como uma montagem para ocultar vínculos de militares e a omissão do governo Federal sobre o caso.
As prisões recentes foram fruto dos levantamentos e denúncias reunidas pelo Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (GIEI), apoiado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Na última quarta-feira (21), o juiz Samuel Ventura Ramos absolveu 24 pessoas vinculadas à Procuradoria Geral da República. O subsecretário de direitos humanos acusou Ramos de "defender os testas de ferro da tese da Verdade Histórica", afirmando que somam 120 exonerados desde a abertura do caso em 2018.
"O sentimento que corre é que eles são intocáveis. Karam foi preso porque ele foi quem verbalizou a Verdade Histórica. Se não foi para encobrir o governo ele, no mínimo, inventou uma farsa jurídica e só por isso já deveria ir preso", defende a jornalista Luara Wandelli Loth.
Omar García, um dos sobreviventes de Ayotzinapa, eleito deputado pelo partido governante Morena, afirma que ainda existe um "pacto de silêncio" para proteger autoridades civis e militares de alto escalão do governo antecessor e, por isso "muita informação" ainda não foi entregue ao GIEI.
"Não é porque mudou o governo ou alguns do gabinete, e exista vontade política, que as velhas estruturas criminosas dentro do Estado se acabaram", declarou García a meios locais mexicanos.
Relação com militares
Entre os 43 desaparecidos também havia um militar infiltrado. Julio César López Patolzin foi enviado pelo Batalhão de Iguala para informar sobre as atividades do movimento estudantil na Escola Rural. Constam nos documentos, coletados pela investigação, mensagens de Patolzin avisando seus superiores sobre a viagem dos estudantes para Cidade do México para participar da mobilização de 2 de outubro de 2014.
A Comissão para a Verdade e Acesso à Justiça do Caso Ayoztinapa, vinculada ao Executivo, concluiu que autoridades federais, estaduais e municipais estavam cientes da detenção dos cinco ônibus que transportavam os estudantes de Iguala à capital mexicana na noite de 26 de setembro de 2014.
A Comissão subordinada à subsecretaria de Direitos Humanos alegou ter interceptado telefonemas de militares do estado de Guerrero e encontrou mais de 400 evidências da relação entre a facção Guerreros Unidos e os militares do estado. A informação, no entanto, não foi corroborada pelo Grupo de Especialistas Independentes que se debruça sobre o caso há quatro anos.
"O governo mexicano reconhece que foi o Estado e os três níveis de poder. Mas falta muito de investigação para que se esclareça a verdade. Há muitas deduções que levaram às 83 ordens de detenção, mas quando detêm um funcionário, já aos três dias os liberam. Em algumas instituições há funcionários que postergam a votação, por isso o governo não consegue avançar ou por isso é que quando prendem um ex-funcionário [do governo de Peña Nieto], logo em seguida um juiz corrupto o libera", denuncia Clemente Rodríguez.
Até o momento, a Procuradoria Geral da República do México identificou apenas três dos 42 estudantes que desapareceram na cidade de Iguala.
Ao assumir a presidência em 2018, com um discurso para se diferenciar de seu antecessor, Andrés Manuel López Obrador criou uma comissão para tratar do caso Ayotzinapa e estabeleceu reuniões periódicas com as famílias.
Em março deste ano, AMLO havia anunciado que militares da Marinha estavam sendo investigados por supostamente terem adulterado provas durante as primeiras investigações, especificamente no lixão onde foram encontrados restos humanos, incluindo os dos três estudantes identificados até o momento.
"A instrução era investigar os chefes da Marinha que participaram dessa operação, e todos já prestaram depoimentos ao Ministério Público", disse Obrador, que criou a comissão para dar novo impulso às investigações.
"A Verdade Histórica" de Peña Nieto
A tese difundida pelo governo antecessor, de Enrique Peña Nieto, era de que policiais teriam entregue os estudantes a integrantes da facção Guerreros Unidos. Os narcotraficantes supostamente confundiram os normalistas com membros de um grupo rival e, por isso, executaram e incineraram os 43 estudantes - à época não comentavam que havia um militar infiltrado. Após cometer a chacina, abandonaram os restos mortais no lixão de Cocula e no Rio San Juan, estado de Guerrero, ao sul do território mexicano. Essa seria a "Verdade Histórica" defendida pelo Executivo e o Judiciário.
No entanto, já em 2018, o Alto Comissariado das ONU para os Direitos Humanos publicou um relatório denunciando que ao menos 34 detidos nas investigações haviam feito as confissões sob tortura.
Levantamentos dos advogados das vítimas, depoimentos de estudantes sobreviventes e de testemunhas atestam a presença de membros do 27º Batalhão de Infantaria da cidade de Iguala nos acontecimentos de 26 de setembro de 2014 - em patrulhas, presencialmente em distintos locais onde aconteceram os ataques, no hospital onde interrogaram normalistas e fazendo fotos e vídeos.
"Com a tese da 'Verdade Histórica' tentaram empurrar a responsabilidade para os escalões mais baixos: as polícias municipais, a prefeitura, um grupo criminoso local", comenta Loth.
Relembre o caso
Na noite do dia 26 de setembro de 2014, os estudantes da Escola Normal Rural "Raul Isidro" deixaram a área onde fica a escola e foram para a cidade de Iguala com o objetivo de se apropriar de alguns ônibus de linha com os quais pretendiam viajar até a capital federal para participar da manifestação em memória ao massacre de Tlateloco. Os atos acontecem anualmente, no dia 2 de outubro, convocados por federações estudantis para recordar o dia em que a polícia mexicana assassinou centenas de manifestantes em 1968.
Os cinco ônibus foram interceptados e alvejados pela polícia. Nessa noite morreram, baleados, três estudantes e três transeuntes. Dezenas de normalistas foram filmados sendo colocados à força em viaturas policiais e os estudantes raptados nunca mais apareceram.
Apesar de iniciarem as punições pelo Caso, a jornalista Luara Wandelli Loth considera que crimes políticos como o Caso Ayotzinapa poderão voltar a acontecer.
"A estrutura econômica que dá base para esse tipo de crime político permanece intacta. A mercadoria nesse caso é a droga, porque o acúmulo de capital não vê o que é legal ou ilegal. É um setor econômico que é protegido pelo exército e pelo aparato estatal, o que faz com que esses jovens que se envolvem com movimento estudantil sejam indesejáveis", conclui.
Edição: Arturo Hartmann