Medo e delírio

Sakamoto: em comício na ONU, Bolsonaro mente sobre pandemia, ambiente e corrupção

Ele abandonou o tom mais radical de suas outras três participações no evento, mas não as mentiras

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O presidente Jair Bolsonaro durante discurso na Assembleia Geral da ONU - TV Brasil

Como esperado, Jair Bolsonaro usou o seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, na manhã desta terça (20), para fazer um comício de luxo voltado ao eleitorado brasileiro. Abandonou o tom mais radical de suas outras três participações no evento, mas não as mentiras.

Um discurso de chefe de Estado visto como pária, como é o caso de Bolsonaro, nunca não atrai muita atenção do mundo. Nesses casos, o púlpito da Assembleia Geral serve para o político se cacifar junto ao público interno de seu país, uma vez que a imprensa está com os olhos voltados para o momento.

Mas, desta vez, sua participação tornou-se ainda mais irrelevante por conta de o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que historicamente discursa logo a seguir do Brasil, ter alterado sua participação para a quarta - o que ajudou a esvaziar a audiência.

Bolsonaro iniciou a sua fala afirmando que seu "governo não poupou esforços para salvar vidas e preservar empregos" durante a pandemia, ignorando que ele demorou para comprar vacinas oferecidas pela Pfizer, combateu medidas de distanciamento social e menosprezou a vida humana. Em março de 2021, por exemplo, em um comício em São Simão (GO), ele ironizou as famílias e amigos que perderam pessoas para a doença: "Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?".

Por mais que ele tenha dito que o Brasil preserva a Amazônia e é referência ambiental para o mundo e que a imprensa brasileira e internacional mente quando relatam a devastação da região, dados do Imazon apontam que, entre janeiro e agosto deste ano, 7.943 quilômetros quadrados de floresta foram derrubados, a terceira pior devastação para o período dos últimos 15 anos.

Em um evento como a Assembleia Geral, pesa em desfavor do presidente o fato de que ele já é visto como vilão ambiental global por conta do fomento do desmatamento e das queimadas na Amazônia. Afinal, fotos de satélite e corpos de jornalistas e de ativistas não mentem.

Afirmou que liberou o auxílio emergencial para proteger a renda das famílias, relatando que foram 68 milhões de famílias beneficiadas. Ignorou, contudo, o papel do Congresso Nacional, que garantiu que o valor fosse de R$ 600 enquanto seu governo defendia R$ 200. E que ele suspendeu o benefício entre 31 de dezembro de 2020 e o início de abril de 2021, no momento em que as mortes diárias escalavam para 4 mil por dia.

Disse que a corrupção sistêmica foi extirpada no país e que o responsável por escândalos passados [referindo-se a Lula] foi condenado em três instâncias. Os pastores que cobravam propina em ouro para dar acesso ao Ministério da Educação ou os coronéis que cobraram propina para fechar contratos de compra de vacina contra a covid-19 devem ter aplaudido neste momento.

Afirmou que fez investimentos em ciência e tecnologia, apesar de ter cortado receita das universidades e de bolsas de pesquisa.

Bradou que a inflação está em baixa. Sim, o IBGE divulgou que o Brasil teve deflação de 0,36% em agosto, porém os alimentos continuaram subindo, registrando 0,24% de alta. Em julho, também houve deflação, mas a comida ficou 1,3% mais cara. Por exemplo, no mês passado, o leite longa vida caiu 1,78%, mas ainda acumula alta de pornográficos 60,81% nos últimos 12 meses. Tanto que, para muitas famílias virou produto de luxo, sendo trocado por soro de leite ou água.

Colocou-se como defensor da liberdade de expressão e disse que repudia a perseguição religiosa, mas focou a questão dos cristãos. Passou batido pelo fato de que ataques contra religiões de matriz africana vêm ocorrendo por algumas denominações religiosas evangélicas no Brasil, talvez pelo fato de que ele tem contado com o apoio delas.

Gastou um bom naco de tempo tentando convencer de que "gosta de mulheres", para usar uma expressão da própria primeira-dama, Michelle Bolsonaro - citada por ele, aliás, como exemplo de atuação no voluntariado. Repetiu que aprovou 70 normais legais em prol das mulheres. Mas criticou o que chama de "ideologia de gênero" (que, na verdade, deveria se chamar de "ideologia de igualdade de gênero") e também o direito ao aborto.

E, claro, chamou os megacomícios eleitorais de 7 de Setembro de "maior demonstração cívica da história do país", apesar de ter sequestrado o Bicentenário da Independência para defender que adversários fossem "extirpados" da vida pública. Horas depois dos comícios, aliás, um bolsonarista matou um petista em Confresa (MT) após um debate de cunho político.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Brasil de Fato